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ISBN 978-85-60944-12-5 versão

An 7 Col. LEPSI IP/FE-USP 2009

 

8/11 - COLÓQUIO - MESAS REDONDAS
A CRIANÇA: DIREITOS, SABERES E O INFANTIL

 

A criança, sujeito de direitos e objeto de saberes

 

 

Laurence Gavarini

Professora Titular em ciências da educação, Université Vincennes-Saint-Denis

 

 


RESUMO

A partir da experiência clínica de coordenação de grupos de análise de práticas profissionais que trabalham no campo sócio-educativo com crianças, elucidam-se as transformações ocorridas nestes últimos quarenta anos na figuração da criança e das relações entre as gerações.

Palavras chaves: infância em risco; maus-tratos; família contemporânea.


 

 

Há quinze anos, investigo diferentes aspectos relacionados à figura da criança em risco ou em perigo – criança vítima, exposta aos maus-tratos e aos abusos dos adultos. Considero que a mesma é sintoma de uma nova forma de se relacionar com a criança. Interessa-me compreender a sua construção no discurso social, bem como em particular no discurso sobre a prevenção e as ressonâncias do mal-estar infantil no trabalho dos profissionais da educação. Além dos efeitos em nossa subjetividade e nas próprias crianças, parece-me que essa representação participa da recusa da criança "freudiana", da sexualidade infantil, do inconsciente e da vida psíquica das crianças, ao tempo que não notamos uma diminuição do fenômeno real da violência corporal e psíquica endereçada às crianças.

Desenvolvi uma série de pesquisas de indagação empírica em torno da proteção da infância em risco, abordagem clínica de grupos de análise de práticas docentes, de médicos, de psicólogos e de enfermeiros escolares. Tenho articulado essas pesquisas no interior de uma reflexão teórica mais vasta que tomou a forma de uma genealogia, a partir dos anos 60, das mutações do lugar da criança na sociedade contemporânea.

Constatei a progressão dos saberes sobre a criança, acompanhada da recusa do infantil e da sexualidade na criança. Freud, há um século, apontou o interesse que havia em observar diretamente as crianças – coisa que ele tinha feito pouco – e a necessidade de se colocar em perspectiva as crianças reais com aquela criança reconstruída no après coup da cura psicanalítica. Meu projeto científico é compreender a infância da anamnese, a infância da qual Freud sabia que estávamos "estruturalmente separados"1.

Se a observação e os saberes sobre a criança progrediram consideravelmente, creio que isso não fez diminuir a alteridade da criança aos olhos do adulto. As fronteiras do familiar e do estrangeiro, da solidão e da inquietação se deslocaram sem que a relação com as crianças tenha se alterado de forma radical, como diz de Lajonquière2.

 

A paixão da criança

O trabalho genealógico desenvolvido concerne às mutações do estatuto e do lugar da criança na sociedade contemporânea. Centrou-se num período relativamente curto – os últimos 40 anos – no qual a relação com as crianças caracteriza-se pela "paixão" e que em francês carrega um duplo sentido: aquele de um amor exacerbado, mas também aquele do sacrifício.

Por que a paixão? Esse significante se me impus quando eu estava vendo as "Marchas Brancas". Essas passeatas que tiveram lugar após 1996 na Bélgica, primeiro, e, depois, em outros paises europeus como reação a uma série de crimes pedófilos, particularmente violentos e perpetrados após o seqüestro de meninas. Essas passeatas, nas quais se misturam adultos, militantes, profissionais e famílias acompanhadas com crianças, são forma impressionantes de procissões de jovens mártires. As pessoas desfilam nas cidades, em silêncio e vestidas de branco. Aqui vemos o sentido sacrifical da paixão na tradição cristã, associado por mim quando me encontrava em Portugal. Na oportunidade, a mídia não poupou detalhes do sacrifício das crianças mártires e abusadas. A paixão pode ser encontrada no seu sentido inverso, aquele da mobilização sem precedentes a favor de "a causa das crianças" nos tempos de Françoise Dolto. Porém, além do campo psicanalítico, a paixão adquiriu a forma de um entusiasmo pedagógico e educativo intenso a favor dos pequenos, como o "amor" das crianças, uma espécie de "bebêphilia" (a revista Autrement intitulou um de seus números com o titulo La Bébologie) organizadora de novos laços educativos, primeiro, no seio das famílias. Assim, se na França tradicionalmente o matrimonio fundava uma família, atualmente, é a criança que "faz" a família3. A paixão possibilita descrever os efeitos extremos que atingem a infância e as crianças. Ela condensa o amor e o ódio, uma espécie de ícone de dupla fase que se desenha na sociedade francesa e que projeta um clima de drama generalizado sobre a educação e seus dilemas.

A infância é reconhecida como um período determinante no que tange as desigualdades de origem, sejam, genéticas, sociais ou culturais. Escutamos na França os efeitos dessa paixão na produção da "criança rei" e das crianças todo poderosas. Eu diria que as crianças não são mais tidas em conta, hoje, que no passado, embora A Criança, espécie de mito, seja objeto de solicitações no discurso social contemporâneo e que a condição dos menores tenha evoluído na sociedade.

As próprias crianças possuem hoje uma representação de seu estatuto. A subjetividade infantil está marcada no tempo. A legitimidade do educador e dos pais não está mais dada no início. Ela passou a ser contratual em numerosas situações educativas, o que por sinal não deixa de criar problemas na família e, em particular, no domínio escolar. Nos últimos trinta anos, a criança virou no discurso social uma "pessoa" mesmo quando bebê. O bebê é uma pessoa após ter tido reconhecidas cientificamente suas "competências precoces" e as interações também precoces com os pais. A idéia sobre os determinantes na primeira infância de um sujeito fortemente construído pelos saberes científicos acompanha a representação social insistente da idéia do traumatismo fundada na vulgata psy, mais ou menos fiel à noção psicanalítica de trauma, alimentando uma crença coletiva em que tudo está em jogo nos primeiros três anos de vida. Já, no inicio, o nascimento dA Criança é desejado. A conceição foi programada pelos futuros pais num momento determinado. A Criança é falada por seus pais, pensada, nomeada, isto é, pré-nomeada no útero. Em termos sociológicos, poderíamos dizer que ela é individualizada antes mesmo de nascer.

Uma outra modificação na relação com a criança: os educadores estão mais propensos a afirmar que a criança é mal-tratada, não amada por seus familiares próximos, começando pelos seus pais. Novas formas educativas e de comportamento derivam desta nova condição da Criança: a fustigação, os tapas, assim, como as violências psicológicas, são consideradas práticas de maltrato que devem ficar no "porão" da pedagogia. Retomando um conceito caro a Pierre Bourdieu, pode se dizer que globalmente as crianças saíram da dominação dos adultos que encarnavam modelos educativos julgados autoritários e denunciados como repressivos. Em termo foucaultianos, pode se dizer, também, que as normas educativas atuais não são mais disciplinarias. As "boas práticas" não são mais arbitrárias, não impõem mais nada. E nesse sentido que podemos compreender os qualificativos "emancipação" e "libertação" das crianças, utilizados por Alain Renaut. No entanto, à falta de disciplina seguiu aquilo que Deleuze4 identificou nas sociedades ocidentais: o controle. Ele se exerce desde o inicio e em toda a vida cotidiana das crianças, sobre seus atos, seu desenvolvimento e sobre a vida psíquica.

O fato de que as crianças tenham se tornado sujeitos de direitos específicos enunciados na convenção internacional dos direitos da criança (ratificada pela França em 1989) tem contribuído à sua maneira na evolução das crenças sobre A Criança. O sistema jurídico francês em matéria de proteção da infância teve um papel decisivo. Em nosso Código Civil, a autoridade parental é definida pelo artigo 371-1 que determina que os direitos e os deveres dos pais têm por finalidade "o interesse da criança" e conclui anunciando um novo dever para os pais "Os pais devem associar a criança nas decisões que lhes concernem diretamente segundo a idade e o grau de maturidade". A criança pode ser consultada nas questões relativas à sua educação, mas também em caso do divorcio contencioso dos pais. A doutrina jurídica deixou de considerar as "necessidades da criança" à promulgação do "interesse da criança". Semelhante evolução desloca sensivelmente a filosofia do direito: do chamado à responsabilidade dos adultos perante as necessidades de uma criança, à idéia de uma dívida virtual do adulto para com a criança.

Porém, a pesar da dita evolução pedagógica, certos pais persistem manifestamente no desenvolvimento de práticas educativas julgadas inadequadas. Eles são freqüentemente interpelados pelas instituições por serem disfuncionais: pais que maltratam, inadequados, inaptos, pais que devem ser sustentados e apoiados no exercício da mesmíssima parentalidade. Outros pais, sem duvida a maioria, estão tomados na crença que fazem o correto, eles investem nA Criança num registro narcísico, colocando-a sob o império do Eu Ideal.

Em suma, as quatro últimas décadas constituem o teatro de um grande remanejamento na forma de nos relacionarmos com as crianças, com a palavra e o corpo delas. A evolução não é linear. Precisamos compreender os movimentos dialéticos e ambivalentes deste clima passional respeito das crianças.

 

Relação educativa e "abuso"

Um dos sintomas dessa evolução é a noção de "abuso". Pretendo discutir alguns aspectos relacionados a esta nova forma de pensar nosso relacionamento com as crianças, as relações intersubjetivas adulto/criança5 e, em particular, esta figura imaginaria "uma criança é abusada". Eu construo essa idéia graças à transposição da formulação freudiana de 1919 "uma criança é espancada", bem com utilizo o termo abuso num sentido mais amplo que a conotação habitual de abuso sexual.

Evidentemente, a violência real que coloca as crianças em risco existe. Como afirmarmos o contrário? Porém, as estatísticas não permitem sustentar categoricamente que essa violência tenha aumentado, ao menos, na França.

Há dez atrás que, conjuntamente a Françoise Petitot, nós estudamos o surgimento de um verdadeiro fenômeno social: o reconhecimento coletivo das possibilidades de que as crianças pudessem sofrer maus-tratos dos adultos, em particular, de seus próprios pais. A esse fenômeno social correspondeu a emergência de um neologismo no campo do trabalho social "maltratamento" (em francês: maltretance). Dessa forma, a ação parental pode ser, agora, em si mesma nefasta e produzir efeitos observáveis sobre a criança maltratada. Na obra que intitulamos La fabrique de l'enfant maltraité6, desenvolvemos a tese que esse neologismo possibilita reconhecer como violentas certas práticas que até esse momento tinham passado desapercebidas ou consideradas como secretos de família.

O abuso reenvia a uma representação mais ou menos simplista que possibilita que seja utilizada segundo uma lógica vitimaria que clausura e fecha a questão num registro causal, médico do traumatismo, do terror e do stress. Não temos mais que ver a importância dada hoje pelo DSM ao Post Traumatic Stress Disorder que organizado a partir do paradigma vitimário o conjunto de danos sofridos por um individuo que reclama uma indenização. O abuso poderá em breve ser totalmente enquadrado nesse paradigma. Nessa idéia já está embutida a figura da vítima que sofre passivamente física e psiquicamente uma dominação. Para ser verdade, no real, não pode se pensar tão só do ponto de vista psíquico e imaginário: uma vez que a explicação do abuso é reduzida a uma cena inter-individual inequívoca – abusado/vítima – acaba comprometendo ou tornando difícil o trabalho de elaboração psíquica, graças à psicanálise, do trauma, da sedução, da repetição, do domínio e da identificação com o agressor. Se o temo abuso tomou esta carga dramática, fica em suspenso o destino da sua significação sexual delitiva originária. Constitui uma espécie de modelo para uma nova educação não mais fundada na dominação e no poder. Fui levada a fazer hipótese que o abuso é um novo modo de subjetivação, uma nova forma de se pensar o outro, de pensarmos nosso relacionamento com as crianças que ultrapassa o registro sexual. Em suma, assistimos a um alargamento progressivo do sentido do termo abuso.

Creio que nos dias atuais, até a posição de autoridade é tida como um abuso independentemente de qualquer intencionalidade de fazer um dano. Porque essa posição determina uma ascendência sobre um outro e se materializa na assimetria dos lugares e estatutos sociais de adulto e criança. Nesse sentido, pode se escutar dizer que abusamos de uma criança caso não a consultemos sobre as decisões a tomar, caso não lhe digamos a verdade, caso imponhamos a obediência às coisas arbitrarias. O abuso parece estar intrinsecamente ligado à crise da ordem patriarcal que rege as práticas familiares e educativas e que autorizou, no tempo, a dominação das crianças, bem como das mulheres,

Um professor de escola passa a mão na cabeça de uma criança: ele pode ser acusado de ter ultrapassado a sua função de educador e de transitar o caminho do abuso. Quando uma criança é forçada a tomar um medicamento, os jovens educadores que trabalham em colônias de férias e integram os grupos de análise de praticas que eu coordeno relatam que esses episódios são tidos como o primeiro signo de abuso. De fato, essas representações e normas educativas, que dão lugar a uma prevenção reativa de todo gesto que possa visar ao erotismo da criança (tocar seu corpo, tomá-la em braços, dar um beijo, sentá-la sobre as pernas), misturam-se com uma desconfiança com relação à postura do adulto que tem ascendência sobre uma criança. O abuso é qualificado como um poder exercido sem o consentimento da criança. No paradigma do abuso, um, o ativo, é o abusado e, o outro, o passivo, a vítima do abuso.

Meu trabalho clínico, nos grupos de análise de praticas com profissionais da educação, permite-me afirmar que os riscos de abuso ou o seu fantasma pesam de uma maneira muito obsessiva nos profissionais. Eu diria que eles estão submetidos a uma espécie de "policia dos fantasmas". Eles estão sob suspeita das famílias e dos pais. Não poucas vezes inclusive estão sob vigilância dos próprios colegas. Suspeita, inclusive maior, quando se trata de homens que trabalham na pequena infância ou quando o ato educativo se mistura aos cuidados corporais. Vejamos alguns exemplos: um educador que trabalha numa creche diz não trocar mais as fraldas dos bebês se ele estiver só na sala. Um supervisor da Education Nationale reclama que os educadores sob a sua jurisdição não realizam mais passeios ao ar livre – aulas verdes – para não ser acusados de intenções ambíguas. Os psicólogos escolares preferem manter a porta aberta das salas de consulta.

Participando deste clima de suspeita generalizada, escutamos cada vez mais dizer que há crianças que abusam de outras crianças. Em certas escolas, escutamos inclusive que há crianças pedófilas, abusivas e estupradoras. Trata-se de todo um remodelamento da norma comportamental adulta respeito das crianças, em particular, no que tange ao corpo e à sexualidade.

No entanto, o mais bizarro, é que, paulatinamente, novas normas regem as interações entres a crianças. Os jogos de recreação, por exemplo, onde os meninos pequenos levantam a saia das meninas passam a ser percebidos sob o registro da dominação masculina. Um ponto de vista feminista afirma se tratar de uma incipiente afirmação da virilidade. Ele deveria ser condenado como abuso de um sexo sobre o outro? Parece-me que os adultos e, em particular, os educadores não sabemos mais como sujeitos qual é a justa distância nas relações entre crianças, na sua relação ao corto, aquilo que concerne à intimidade. As normas têm se deslocado e deixado cada profissional sozinho com a sua própria ética. O adulto educador pensa, geralmente, as atividades e gestos endereçados às crianças como suscetíveis de serem questionados, no que tange à intencionalidade: o equívoco e a ambigüidade sempre se fazem presente. Ele deve estar sempre vigilante do sofrimento possível da criança.

Um dos efeitos problemáticos desse clima é que o sofrimento das crianças, em particular, os sintomas de sofrimento psíquico, são correlacionados, sempre, com o fato de que a criança poderia ter sido vitima de um abuso ou um ato violento por parte de seus próximos.

No entanto, o mérito desse clima é ter chamado a atenção sobre o sentimento raramente questionado do "amor das crianças", tido longamente como a chave motivacional para alguém se dedicar às profissões educacionais. Em nome desse amor, o adulto durante varias gerações se sentiu autorizado a dispor do corpo e da alma de essas maravilhosas crianças.

 

A reflexão sobre as práticas profissionais virou uma necessidade?

A suspeita é muito problemática; ela funciona como um rumor que coloca em movimento fantasmas de ódio e inibições para pensar, conforme enunciam os profissionais que integram os grupos de análise que eu coordeno. Eles reclamam, muitas vezes, da falta de um espaço de elaboração e de reflexão perante a urgência. Os educadores, trabalhadores sociais e equipes de saúde, com os quais trabalho, muito evoluíram na forma de falar das famílias. O relacionamento não e simples entre as escolas e os pais. Ele vira tenso quando as práticas culturais das famílias são incompreensíveis do ponto de vista das normas educativas majoritárias, que fazem do "respeito" e do "interesse" as suas bandeiras. As famílias imigrantes constituem um caso exemplar. Muitos profissionais declaram nada compreender de como nessas famílias se exerce a autoridade. Eles dão de cara, verdadeiramente, nessas situações com a alteridade".

Os aspetos culturais das práticas parentais não são mais hoje, como o era há décadas atrás, um atenuante na estimação dos maus-tratos. Os educadores exercem uma espécie de tolerância zero perante a prática do "tapa no bumbum" ou, ainda, perante o casamento forçado de púberes imposto pela família. Esses fatos são considerados a partir de valores que, pouco a pouco, viram no registro moral, verdades universais.

E, então, importante, os profissionais pensarem coletivamente e fora de situações de urgência aquilo que eles pensam ser uma criança em perigo, valendo-se de parâmetros não simplesmente perceptíveis, mas, fundamentalmente, a partir de um posicionamento profissional, bem como de uma subjetividade dada à escuta. Em principio, eles se interrogam: a partir de quais modelos familiares, de quais normas educativas, comportamentais e afetivas, a partir de quais gestos, podemos estimar que uma criança corre risco? Mais ainda, a questão que eles são levados a trabalhar é: qual a ressonância pessoal da representação da criança em perigo, de uma criança abusada? Trata-se, antes de mais nada, de estar atento à própria fala como sujeito.

A avaliação virou uma questão maior para os profissionais, tomada entre a recusa, o drama e as projeções. Não é simples saber em principio aquilo que tange a cada um como sujeito quando termos como maltrato, pedofilia, criança em perigo, aparecem no seio de um grupo de analise de praticas profissionais.

E sabido, após Freud tê-lo posto em evidencia em diversos casos clínicos que tudo o que diz respeito à infância maltratada, à criança abusada não está isento da atividade fantasmática, dando lugar ao fantasma de fustigação. Essa representação de "bate-se uma criança" surge na pequena infância e é acompanhada de uma satisfação auto-erótica, sendo enunciada na cura psicanalítica de um modo anedótico, sem por isso saber-se quem é a criança fustigada. Freud mostra que esse fantasma de fustigação de uma criança se articula a efeitos sádicos e masoquistas diretamente ligados a experiência edipiana do sujeito. Françoise Petitot coloca em relação esse fantasma das formas atuais das campanhas relativas ao horror da pedofilia, lembrando que a sua mesma força "liga as pulsões sexuais à pulsão de morte, o voyeurismo ao masoquismo e ao sadismo" 7.

Então, como levar adiante uma avaliação? Como nomear os aspectos íntimos que entrelaçam a atividade fantasmática do adulto com a questão sexual e a sexualidade infantil? Como pensar, hoje, a sexualidade da criança com relação a seus camaradas, na fratria, respeito de seus pais, no interior desses movimentos de ternura, na sedução, nos quais a criança é ativa, nas atitudes que requerem as identificações na construção mesma de sua posição sexuada? Como trabalhar sem ser invadido pela lógica do abuso organizado a partir do fantasma da fustigação? Como manter-se fora da lógica vitimaria suscetível de parasitar a apreciação que os educadores podem se fazer das interações entre adultos e crianças?

 

Abuso e mutação da relação entre as gerações: expulsão da sexualidade e do sexual?

Não é um paradoxo que seja no interior de uma família em plena transformação, e neste tropismo de pais voltados para a criança, que a noção de criança abusada tenha se difundido. Sem corresponder forçosamente a um aumento da violência real, ela indica que a redistribuição das relações entre as gerações não é tão harmônica como o imaginam os estudiosos da dita família contemporânea. A família mudou, ela virou o local de uma maior paridade entre os sexos, os pais se equivalem em matéria educativa e de responsabilidade, as crianças circulam mais em casos de separação conjugal, elas são mais levadas em conta como sujeito. No entanto, isso não impede que pensemos que elas podem ser vítimas dos adultos, assim como que o pensem as próprias crianças de si mesmas. E nesta configuração familial renovada que se desenvolveu a consciência dos riscos que uma criança pode correr.

Progressivamente, o abuso virou um modo de subjetivação, uma nova forma de se pensar a infância e nossa relação a elas. O paradoxo esta em que os sociólogos como Singly descrevem essa família atual como o lugar do debate, da negociação, o lugar de uma pequena "democracia". Segundo ele a história caminha no sentido da auto-regulação na harmonia dentro de um clima asséptico. Mas, os fatos resistem.

Essa noção de abuso com os efeitos de não discriminação das reais situações de perigo, me conduz a afirmar que nós nos distanciamos da criança que Freud descobriu, com sexualidade, pulsões, sedutora e tomada no conflito psíquico. Estamos a caminho de pensar coletivamente que a família é simplesmente um conjunto de competências educativas e parentais suscetíveis de serem exercidas por qualquer adulto desejoso de "ter uma criança", sozinho ou com outros, independente de qual seja o sexo e o tipo de laço. Nós nos distanciamos de uma concepção estruturalista do parentesco, organizado como instância simbólica e sexual na qual se fundamentam para um sujeito desde o nascimento as prescrições, os interditos, concernentes à diferença dos sexos e à diferença entre as gerações. Trata-se de uma imagem curiosa, asséptica e puritana da família, uma figura anti-freudiana onde o sexual tange só respeito ao pathos. Trata-se de uma família que estaria alicerçada em laços eletivos e morais, nos quais o valor do consentimento é central, e não na regulação simbólica da questão sexual, com tudo o que isso implica na relação entre os homens e as mulheres, pais e mães, filhos, filhas, crianças, em lugares e com funciones diferentes ......

 

 

Tradução: Leandro de Lajonquière
1 cf G.Guillerault, rubrica « Enfant (psychopathologie de) » In : Kaufmann, P. L'apport freudien. Eléments pour une encyclopédie de la psychanalyse, Larousse, 1998.
2 Leandro de Lajonquière, « Vieux enfants, nouveaux infanticides », Cliopsy, Revue electrônique, nº1, 2009, http://www.revue.cliopsy.fr/
3 cf. Irène Théry « Peut-on parler d'une crise de la famille? » Un point de vue sociologique », Neuropsychiatrie Enfance adolescence, 2001, nº 49
4 Gilles Deleuze, Pourparlers, « Post-scriptum sur les sociétés de contrôle », Paris, Minuit, 1990.
5 Corresponde a um trabalho de pesquisa fundada em seguimentos de equipes escolares, bem como na coordenação de grupos de análise de práticas. Precedentemente, realizei uma pesquisa junto aos profissionais da proteção da infância sobre a tempaticad dos maus-tratos.
6 L.Gavarini et F.Petitot, La fabrique de l'enfant maltraité, un nouveau regard sur l'enfant et la famille, Eres, 1998
7 ) F.Petitot, « On bât un enfant: à propos de la maltraitance », in Jean-Pierre Lebrun, Les désarrois nouveaux du sujet, Erès, 2001