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ISBN 978-85-60944-12-5 versão

An 7 Col. LEPSI IP/FE-USP 2009

 

8/11 - COLÓQUIO - MESAS REDONDAS
A CRIANÇA: DIREITOS, SABERES E O INFANTIL

 

De como jogamos fora a criança com a água suja de amoródio

 

 

Leandro de Lajonquière

Professor Titular da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo. Bolsista Pq do CNPq

 

 


RESUMO

A diferença existente entre os termos "estrangeiro", "selvagem" e "extraterrestre" possibilita ao autor elucidar a implicação subjetiva na educação das crianças e, portanto, a forma de o adulto se haver com o retorno infantil que a chegada ao mundo de uma criança coloca em causa. Dessa forma, o autor interroga a profusão atual de direitos em prol das crianças.

Palavras chaves: infantil; infanticídio; direitos das crianças.


 

 

Nestes últimos anos, surgiu entre nós uma série de idéias singulares no que diz respeito à vida junto às crianças.

Dizemos, por exemplo, que as crianças, hoje, são mais inteligentes e rápidas que as de antigamente, que sabem o que querem e que têm opiniões. Isso acontece de tal maneira que costumamos duvidar que se trate, de fato, de crianças ou, em outras palavras, que a sua maneira de ser continue respondendo àquela que, há um tempo atrás, entendíamos por infância. Assim, pensamos que nós adultos devemos "adaptar" e "modernizar" a nossa forma de recebê-las no mundo – a mesmíssima educação -, pois aquilo que nós podemos saber, mais ou menos, por havermos sido uma vez, crianças, não só não é parâmetro de nada, senão que também deve ser deixado precisamente de lado, por ser "coisa do passado". Damos por descontado que agora, finalmente, "amamos nossas crianças" e que a melhor prova disto é que lhes pedimos suas opiniões e incentivamos a participação em vários assuntos da vida cotidiana.

Pensamos que a infância, bem pode estar em vias de extinção ou, talvez, que ela esteja sendo mais curta para as crianças diferentes de agora. Também pensamos que os adultos, mais conscientes e esclarecidos que os de antigamente, devemos tolerar hábitos, interesses e gostos singulares e muito novos. Em suma, acreditamos que viajamos no tempo montados sobre uma linha evolutiva que iria da conhecida e obscura tolerância ao infanticídio medieval ao reconhecimento legal dos chamados interesses dA Criança, graças a um amor iluminado pelo avanço científico especializado.

Não tenho dúvidas de que os tempos mudam. No entanto, me permito duvidar de que o rumo da vida junto às crianças evolua numa direção tão clara e distinta quanto se pensa hoje em dia.

Duvidar da evolução de nossos hábitos e costumes não significa que esteja convicto do contrário, ou seja, que a linha da história seja, então, a historia de uma degradação ou de uma degenerescência. Neste sentido, nem evolução, nem degradação, apenas formas históricas de vida que sempre dizem algo da forma como nos sonhamos sempre outros e, portanto, de sonhar a "relação" de constante amoródio com esses seres baixinhos que chamamos crianças e que são o produto desse mal-entendido que habita a vida sexual dita adulta e insiste em "fazer famílias".

Por outro lado, isto tampouco quer dizer que tudo dá no mesmo. Se o tempo atual parece caracterizar-se por algo, creio que seja pelo fato de que nosso espírito se reconforta facilmente sabendo-se capaz de promulgar leis para garantir a integridade da dita infância.

Até que ponto - tranqüilos de espírito – nós rechaçamos a possibilidade que o infanticídio esteja ainda presente entre nós?

Refiro-me a um infanticídio ao qual, talvez, devamos qualificar de simbólico. Hoje em dia, o mundo dos velhos peca por certa omissão com relação aos pequenos, agora, "largados" espiritualmente.

A insistência atual na bondade democrática e no amor dos adultos, longe de indicar o reconhecimento da necessária implicação na vida em comum com estes seres pequenos que vieram ao mundo depois de nós, creio que indica nossa recusa em manter aberto o interrogante que ela sempre abre: Como chegar a estar seguros de algo e falar disso a uma criança?

Semelhante interrogante é a outra face da impossibilidade de se estabelecer uma proporção entre pequenos e velhos, ou seja, uma proporção entre as gerações. A falta de proporção – de rapport – entre as gerações, por sua vez, reinscreve a falta de rapport entre os sexos. Depois de tudo, um Pedrinho só pode botar os pés no mundo após ter se passado algo entre um senhor e uma senhora.

Da impossibilidade de se estabelecer essas proporções nunca nada se quer saber. Não obstante, hoje, em particular, nada queremos saber desta, de uma maneira um tanto cínica, camuflada de exacerbada preocupação pela igualdade de gêneros e elucubrações psicopedagógicas. Talvez seja por isto que, hoje, caímos facilmente na tentação de educar as crianças – recordando Freud (1929) – como se os estivéssemos mandando a uma expedição polar, vestidos com roupas de verão e equipados com mapas dos lagos italianos.

***

Quando a cegonha deixa uma criança no colo de uma senhora, esta se depara com o fato de aceitar, ou não, ser mãe desse pequeno que chega ao mundo sempre mais ou menos estrangeiro com relação àqueles que já o habitam faz tempo. De fato, os bebês dormem de dia, são mais sociáveis de noite, choram por coisas que os grandes não entendem, fazem todo tipo de caretas, falam uma língua que não parece ser de fácil compreensão, dentre outras coisas meio esquisitas à vida adulta já feita cotidiana e familiar.

Que uma criança seja recebida como se fosse um estrangeiro, não é equivalente a que o seja como se fosse um extraterrestre ou um selvagem. Do indivíduo considerado um selvagem, aquele que se toma por civilizado pretende manter certa distância. Se o considera um bom-selvagem, então, quererá estudá-lo de forma minuciosa e científica para, assim, saber da exata medida da diferença que há entre ambos e, dessa maneira, apagar o estranho mistério que tanto anima um quanto angustia ao outro. Ao contrário, se se trata de um mal-selvagem, o civilizado tentará livrar-se da temerária estranheza organizando uma campanha de extermínio. Por outro lado, do extraterrestre no fundo nada queremos saber, tão só queremos manter sempre a mesma distância que, ao mesmo tempo, nos permita adorá-lo, sonhá-lo, como também fugirmos dele caso lhe ocorra aproximar-se um pouco mais de nós. Em suma, tanto um quanto o outro são tratados diferentemente de um estrangeiro ao qual lhe supomos, com maior ou menor simpatia, que possui coisas de um Outro mundo para nos contar.

No entanto, uma mãe fala para seu bebê a quem acolhe com a hospitalidade com a qual se recebem os estrangeiros na espera que o bebê aprenda a sua língua materna e, dessa forma, possa contar a ela sobre essas coisas de esse Outro mundo estrangeiro de onde veio, para dessa forma serem menos estranhos entre si e, portanto, serem mais familiares.

Uma mulher projetada ao querer de Mulher, costuma se deparar na vida com um homem. Como prova do mal-entendido do comércio entre os sexos, aparece um bebê, que reinstala a diferença irredutível entre a Mulher e uma mãe. O pequeno ser reabre a causa do desejo e, assim, se faz marca da falta de proporção ou relação sexual que habita o mundo dos adultos. Uma mãe ultrapassa, ou não, a encruzilhada de dar o fruto desse des/encontro no sexual ao homem, candidato a inventar o lugar de pai e cujo desejo viril aquela consente em causar. De fato, as mulheres/mães ejetam os homens a se aventurar como pais. Uma mulher "metaforiza um pai", vive a experiência da produção de uma inversão condensada e deslocada da posição contrária àquela de se "demandar ao pai" o donativo de um objeto impossível – um bebê como sutura do narcisismo infantil. Mais ainda, a metáfora cavouca um eco no registro do sentido e, assim, se produz um esvaziamento do saber sobre o ser do pai. Em suma, o bebê recém chegado ao mundo lembra os adultos estes dois enigmas: o quê quer a Mulher e o que é um pai.

A chegada de um pequeno ser implica numa reacomodação do mundo, pois se instala uma diferença que, feita tensão temporal, causará o "devir adulto". Todo adulto quando se dirige a uma criança, lhe demanda deixar para trás a condição estrangeira de infans – ser privado de palavra. Não há vestígios históricos de que as culturas não tenham colocado sempre as crianças numa certa quarentena do mundo adulto e, dessa forma, que os adultos não tenham simbolizado, para si próprios e para as crianças, a diferença real, isto é, a falta de proporção ou de relação entre uns e outros.

A introdução de um bebê numa história em curso instaura uma tensão no campo do discurso entre o lado de lá, o do infans, e este outro daqui, o do adulto. Ambos os termos não são pontos de uma linha genético-evolutiva rumo a uma razão mais ou menos iluminada, senão que são posições no discurso em relação ao desejo, a palavra Outra.

Para que um velho advenha no lugar de um pequeno ser é necessário, portanto, que aquele outro, que já está ali velho, tome como metáfora o inevitável desencontro com esse pequeno ser no mundo. Quando o infans deixa de ser tal, pois agora é gente velha, a infância passa a existir como perdida, fazendo-se presença de uma ausência num mundo sempre velho. Uma infância só existe como perdida, desconhecida, recalcada e, assim, não cessa de não escrever-se, de não inscrever-se, de insistir em "nós". Ela insiste como diferença temporal – enigma – e, assim, nos faz estranhos ao presente, nos faz estrangeiros com relação a nós mesmos.

Quando um ser velho se depara com uma criança, olha-se nela como se fosse num espelho. Olha, olho no olho, e, assim, pretende que da profundidade desse olhar lhe retorne a própria imagem ao avesso, ou seja, espera ver-se não sujeito à castração, espera voltar no tempo para usufruir até a última gota do que restou da infância "perdida" – o infantil. Justamente, o adulto investe narcisicamente a criança na esperança, sempre vã, de esgotar esse infantil que não cessa de não retornar para, assim, finalmente, saber tudo sobre "sua" infância e, dessa forma, ser um adulto de "verdade verdadeira" - como falam as crianças -, e não simplesmente gente velha.

O saber não sabido, depositado na conta da criança, faz dela um estrangeiro de quem queremos escutar suas histórias de um Outro mundo. Isso é de fato impossível, pois pretendemos que nos conte desse estrangeiro que habita em nós mesmos. Do isso só podemos saber em parte, por um lado, à medida que as crianças, permanecendo sempre um pouco estranhas, nos devolvem na vida o fato de sermos sempre estrangeiros a nós mesmos e, por outro, nós assim demos a isso acolhida. Não obstante, o mal-entendido entre as gerações derivado da falta de proporção não impede o diálogo; ao contrário, o alimenta, enquanto torna possível uma educação.

Educar é transmitir marcas simbólicas que possibilitem ao pequeno sujeito gozar um lugar de enunciação no campo da palavra e da linguagem, a partir do qual lhe seja possível lançar-se às empresas impossíveis do desejo. O desdobramento de uma educação, de uma filiação simbólica de humanização e familiarização pressupõe que o adulto receba a criança como se fosse um estrangeiro, passível de se tornar mais ou menos familiar, mas nunca totalmente familiar.

Uma educação é de fato possível para além de sua própria impossibilidade, também em germe nos sonhos dos grandes. Todos nós, pequenos de outrora, "pegamos no tranco" na travessia, à medida que invertemos a demanda educativa, cavoucando cada um de nós um lugar para-si nos sonhos dos outros.

A maioria das crianças consegue usufruir de uma educação, para além da impossibilidade da Educação, na precisa medida da infantil e estrangeira estranheza que venham a guardar para-si, apesar de se tornarem mais ou menos familiares a outros, num mundo sempre velho, onde tudo o que é familiar é um pouco estranho e tudo aquilo que é estrangeiro nos é também um pouco familiar.

No entanto, às vezes, uma educação pode se tornar de difícil acontecimento quando para o adulto resulta ser de fato impossível desdobrar o des/encontro com uma criança ou, se preferirmos, a impossibilidade de direito inexorável à Educação. Essa impossibilidade adulta pode dar lugar a diversas suposições de excepcionalidade infantil. Dessa maneira, os seres pequenos ficam a mercê da falta de oportunidade de serem diferentes da maneira como são supostos. A suposição da excepcionalidade lança a criança para fora do laço social onde o familiar e o estrangeiro são lados de uma mesma fita de Moebius.

A educação tanto de um selvagem quanto de um extraterrestre são, a priori, fatos de difícil acontecimento. São contradições em seus termos. Uma educação só pode acontecer se no des/encontro com uma criança, os adultos se permitem deparar-se com o retorno da (im)própria estranheza de si mesmos, que tem suas raízes na falta de proporção ou diferença sexual. Tanto o selvagem quanto o extraterrestre são figurações da impossibilidade em acolher o retorno da diferença. Ambos são o avesso da suposta mesmice do "nós mesmos". Nem um nem outro podem habitar o mesmo mundo do sujeito que se ilude ser idêntico a si mesmo.

***

Pretender adaptar a educação às crianças "tão diferentes de hoje", é mau agouro. Não há educação possível se o pequeno ser está marcado a fogo pela selvageria ou a extraterritorialidade. Por isto, se as crianças ficam à margem é porque simplesmente as deixamos de lado quando renunciamos ao ato de educar. As deixamos de lado para nada virmos a saber delas, daquilo que nos faz estranhos a nós mesmos.

A renúncia dos velhos ao ato de educar é uma forma de infanticídio. A renúncia a dirigir-lhe, em nome próprio, a palavra a uma criança não é um gesto passível de ser buscado ou evitado voluntariamente. Não obstante, a propensão ao infanticídio simbólico tampouco é uma condenação dos deuses. Que assim seja é, então, a marca de como não reconhecemos às crianças o único direito que conta, ou seja, o direito a pleitear uma educação.

Para que os seres pequenos possam pleitear um simples lugar no mundo, em uma história, devemos dar-nos o tempo para que, em seus pequenos detalhes, nossa vida cotidiana tenha algo estranho, algo estrangeiro ao presente, à realidade, ao mercado, ao que se passa na TV. Devemos nos dar o tempo para dar tempo ao tempo do estrangeiro reviver o familiar. Esse é nosso dever, ao menos até que os pequenos de hoje consigam conquistar para-si um pouco de velhice.