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ISBN 978-85-60944-12-5 versão

An 7 Col. LEPSI IP/FE-USP 2009

 

8/11 - COLÓQUIO - MESAS REDONDAS
A ESCOLA E OS PROFISSIONAIS D'A CRIANÇA

 

A escola e os profissionais d'A criança

 

 

Rinaldo Voltolini

USP

 

 


RESUMO

Neste texto discute-se a criança enquanto produção discursiva que emblematiza a contemporaneidade, bem como os impasses a que são levados os vários profissionais que se ocupam dela. É por apresentar um gozo polimorfo, uma impunidade generalizada e um prazer imediato que a criança se torna o ícone de uma época calcada sobre as mesmas características. "A" criança é uma produção nascida da confluência dos vários discursos científicos que a tomam como objeto para descrever-lhe e fundar práticas em torno das crianças.

Palavras chave: Discurso, criança, contemporaneidade.


 

 

O século passado foi conhecido como o século da criança. A criação e o aperfeiçoamento de seus direitos, a melhor compreensão de seus processos de desenvolvimento, os novos hábitos sociais que as incluem, etc. formam alguns dos sinais que atestam o porque a criança foi escolhida para emblematizar este século.

O célebre livro de Phillipe Ariès, "A História social da família e da infância" (1981), um clássico entre nós, apesar das contestações que recebeu de sua área, por negligenciar certos achados que podiam modificar suas conclusões, por conduzir sua discussão com um método frágil e por deixar escapar cotejamentos importantes com outras áreas afins, continua sendo o portador de uma verdade inabalável: a superestima que nossa época tem pela criança.

Outras épocas como a Idade média, por exemplo, já a tinham celebrado. Os árabes acreditavam na consciência desperta do feto e incentivavam a relação com ele; os bebês recém nascidos eram protegidos dos ruídos e da luz intensa, possuíam mobiliário próprio, específico para suas dimensões e as grávidas obtinham tratamento diferenciado, dada sua condição.

Mas ainda que elas já tivessem sido respeitadas em outros momentos da história e não precisado esperar a modernidade para se tornarem inscritas no discurso social, conforme parece sugerir a obra de Ariès, jamais em outro momento elas foram tomadas como emblema de uma época. Nossa época parece se identificar com a criança. Não seria talvez porque nela, a semelhança do que se passa com as crianças, busca-se um "gozo polimorfo", sustenta-se uma "impunidade generalizada", espera-se um "prazer imediato" e ilude-se com um futuro libertador de "toda" nossa insuficiência?

Freud já havia pontuado em sua também já clássica referência sobre o "his majesty the baby" o lugar central, de majestade, devotado à criança nos dias de hoje, anotando o quanto os pais esperam que seus filhos realizem "o que eles não conseguiram realizar".

Mas não estaríamos em condição de invectivar que toda esta "hiperbolização" da infância guarda relações com os nossos principais impasses com ela? Afinal reclamamos hoje de uma "criança sem limite", mas que limites esperamos dela?

As novas patologias com as quais a marcamos se caracterizam pelo, excesso, o sem limite: "hiper"-ativa; "super"-dotada, etc., ou pela escassez, a deficiência: déficit de atenção.Ambos signos da dinâmica capitalista, que tem entre suas primordiais operações, a promoção do fator quantitativo (mais, menos; maior, menor) acima do qualitativo.

Todos sabem que a solução para os conflitos políticos é hoje esperada da economia e nos regozijamos com esta convicção.Tudo passaria por um controle dos "fluxos", seja na sociedade com problemas, seja no cérebro com problemas e, assim, o fator quantitativo prepondera.

Que a criança tenha sido elevada à adoração produziu conseqüências imprevisíveis e paradoxais. Nós a vemos enaltecida nos vários programas da "criança esperança", mas também no aumento exacerbado da pedofilia na atualidade. Não que haja estatísticas seguras disso, e sempre podemos pensar que o aumento exponencial das ocorrências deste fenômeno, nos dias atuais, se deve apenas ao aumento da transparência social dele (registra-se mais do que antigamente).

Não se trata, entretanto, de considerar uma estatística de casos, mas de observar seu crescimento enquanto elemento do discurso social. Os órgãos de proteção da infância preocupam-se muito mais, hoje em dia, com os temas da pedofilia e da prostituição infantil do que com a mortalidade infantil.

Aprendemos a adorar a criança viva e "objeto" de nossa satisfação.Daí a expressão "A" criança para destacar esta operação de fabricação de um objeto para nosso uso, conforme reza o tipo de gozo que o aparelho capitalista prescreve.

"A" criança não corresponde às crianças com as quais nos encontramos diariamente, ao contrário nos afasta delas, uma vez que aumenta nossa ignorância sobre elas nos predispondo para o encontro com um objeto e não com um sujeito. Que os pais e educadores em geral se sintam hoje desorientados frente às crianças é apenas a expressão mais cara disso.

Para construirmos "A" criança foi crucial o concurso da Ciência, escrita assim com maiúscula para indicar sua transformação num discurso mais do que em uma forma de saber entre outras.

Recortando em diversos pedaços, forjados a partir de "objetos de estudo" específicos, o desenvolvimento motor, psíquico, social, afetivo, neuromotor, fonoarticulatório, neurológico, ósseo, muscular, etc. a Ciência cria um Frankenstein. Ou seja, espera poder remontar a partir dos pedaços "A" criança "total", sem a divisão que salienta a psicanálise.

Para garantir a criança total, o trabalho dos vários profissionais especialistas é crucial, pois garantirá que nenhum aspecto foi deixado de fora.

Para esta criança há também uma instituição que lhe corresponde, a escola, feita "sob medida" para ela.Curiosa invenção capitalista, a escola sob medida é aquela que, a diferença da escola tradicional, feita para que "as crianças" se adaptassem a ela, é forjada para se adaptar "À" criança.

Não é de se estranhar a reclamação de que as crianças passam, hoje em dia, pela escola sem que a escola passe por elas, sem que , malgrado o tempo que restam na vida escolar, o tempo da infância e da adolescência, elas pareçam aprender nada. Talvez isto demonstre como nossa escola atual foi feita para que as crianças, tal como Peter Pan, "nunca deixem de serem crianças" Porque deveriam tornar-se adultas se todos nós perseguimos o ser criança como ideal?.

 

O discurso do capitalista e a criança

Há alguns anos o gênero da ficção científica realizou nas telas um interessante filme: "Inteligência artificial".

O filme, que de maneira geral cedeu às regras hollywoodianas para restringir o mínimo possível o público alvo e agradar o maior público possível, surpreende quando explora a imagem da criança como porta voz do empenho do mercado para satisfazer os sonhos humanos, realizando, assim, melhor os lucros.

Já habituados com um mercado específico "para" as crianças, somos surpreendidos com a imagem escancarada da criança como objeto pronto na prateleira para ser consumido.

O filme começa contando o drama de uma mãe que vê seu filho quase morto, desenganado pelos médicos e só mantido vivo, feito um cadáver, pelos altíssimos recursos tecnológicos a espera de uma nova descoberta da ciência que o redesperte para a vida.

Dilacerada pela dor da perda, a mãe considera a possibilidade, trazida pelo marido, de adquirirem um revolucionário robô criança (um clone, na verdade) produzido com espantosa semelhança a um menino humano.

Hesitante em aceitar, dividida entre a vontade de recuperar a maternidade e receosa de renegar seu filho, ainda vivo para todos os efeitos, aceita experimentar a situação. O robô precisa ser ativado, mas a decisão de fazê-lo é irreversível. Uma vez realizada esta ativação a operação não tem retorno e, portanto, a decisão deve ser meditada.

Após meditação e desconsolada com a situação de seu filho, a mãe termina por ativar o robô através da menção de uma seqüência de palavras que lhe servem de programação.

"Fabricado pela ciência para uma mãe", destaca-se no filme a irrelevância da figura do pai, que se resume, neste drama, a ser apenas aquele que confere os meios de aquisição do robô, desaparecendo, em seguida, completamente do filme.

Espantada com o resultado, a mãe segue atônita, tomada pelo vigor maternal que a experiência lhe devolvera, mas com a estranheza devida a "artificialidade" da situação.

Passado algum tempo seu filho redesperta milagrosamente e retorna a casa dando início a outro drama, o da relação com seu, agora, irmão e que termina de forma trágica.

Devido a alguns incidentes que envolveram a ambos, a mãe termina por concluir que o menino-robô representa uma ameaça a seu filho e num gesto difícil, tentando se convencer de que está lidando apenas com um robô, mas sem conseguir muito êxito nisto, expulsa, feito Laio e Jocasta com Édipo, o menino-robô de sua casa deixando-o no bosque.

Daí para a frente o filme segue contando a história deste menino-robô em sua saga "pinoquiana" de se tornar gente para recuperar o amor de mãe que ele havia perdido.. O que o menino-robô não sabia é que era por ter se tornado gente demais, resistindo a ser mero objeto do desejo alheio (de fato, David, o menino-robô, demonstrava uma posição desejante), que a mãe não suporta a convivência com ele.Era como boneco que ele havia sido desejado

Como de hábito, os filmes de ficção, em que pese sua pecha de irrealismo, não forjam imagens que já não estejam articuladas no desejo que caracteriza uma época.

A "criança-objeto pronta para uma mãe", fabricada pela ciência sem a intervenção do pai, não chega a ser um produto estranho ao nosso tempo.

Esta criança é mesmo a que chamamos de "A" criança, construção da ciência, com suas pautas de espera, suas palavras programadoras, etc.

Construída no entrecruzamento dos vários saberes científicos é como objeto que ela tomará sua forma e povoará o imaginário de todos aqueles que lidam com as crianças.

A escrita do discurso capitalista, quinto discurso elaborado por Lacan, revertendo a lógica que ele mesmo havia construído, na qual só eram possíveis quatro (O do Mestre, da histérica, universitário e do analista), permite-nos uma série de considerações sobre o peso da dinâmica capitalista nos laços sociais, em particular , para nós, as que incluem a criança..

Desenhado para apontar um deslizamento do discurso do mestre na contemporaneidade, depois de já ter considerado o discurso universitário do mesmo modo, o discurso do capitalista vem para escrever, entre outras coisas, "a primazia do objeto sobre o sujeito". "Os gadjets vencerão?", pergunta-se Lacan (1969-70 [1992]) num tom que parece apostar na resposta afirmativa.

Lacan retira de Marx alguns pontos que lhe permitem um cruzamento com o que a psicanálise revela a partir de sua experiência sobre a "impossível" relação do sujeito com o objeto. Impossível, porque sempre insatisfatória, dado que por estar atravessado pela linguagem o objeto não se deixa capturar pelo sujeito que, por sua vez, desliza sem cessar na linguagem. Uma vez que nos dividimos enquanto sujeito, fruto de nosso assujeitamento à linguagem, a satisfação, no encontro com o objeto, está suspensa inelutavelmente. Ela é sempre parcial, precária em relação àquela imaginada e tensionada por um objeto ideal que se acredita um dia ter possuído

A façanha que o capitalismo pretende realizar, daí seu caráter perverso adiantado por muitos autores, é a plena satisfação no encontro com o objeto. A redução, portanto, do sistema desejante, marcado pela falta, para um regime de completude no qual a satisfação poderia ocorrer plenamente.

No discurso do capitalista as setas, que nos outros discursos sempre foram escritas para marcar uma impossível circularidade, são alteradas, possibilitando o fechamento sobre si mesmo, fazendo um "círculo vicioso" (lembremos o destaque de Melman sobre a droga, o objeto que vicia, dizendo que ela é o produto capitalista por excelência) que leva ao consumo e nada mais. Mais importante do que o objeto consumido é consumir, imagem clara da dinâmica do vício.

Transformar os sujeitos em objetos é uma operação crucial para o capitalismo, porque é como objeto que eles podem ser mais bem manipulados em direção ao consumo. Podem até mesmo, como ressaltou Marx, ao longo de toda sua obra, serem consumidos.

"A" criança é um destes objetos a que se pede que "as crianças" se adaptem. Tal abstração reivindica as várias crianças para lhe dar substância, mas, também, a ciência para dar-lhe os contornos.

A ciência, que tem uma participação decisiva neste discurso, cede de sua dimensão investigativa (a do discurso da histérica, por exemplo) para realizar-se na dimensão da produção. Trata-se, neste caso, de construir sua força na oferta que faz de objetos para "aplacar o mal" que a carência generalizada, produzida pelo próprio impulso incessante da produção, coloca. Mas é ela também que identifica o mal, o mesmo que se proporá a controlar.

A ciência vira oferta de recursos de controle, sendo incapaz de refletir sobre os instrumentos que ela mesma viabiliza. Daí a necessidade da criação, ad hoc, dos comitês de ética para restringir-lhe a ambição

A "criança-estratégia", outro nome para "A" criança, proposto por Imbert (1992), serve para marcar este caráter de controle que a ciência estabelece em relação aos objetos que cria para a sociedade.

Como investir planejadamente numa criança, de modo a fazê-la "render" seu máximo, é o espírito da pedagogia contemporânea, seja aquela que alimenta os pais em suas dúvidas inseguras com os filhos, seja aquela que alimenta os professores em sua formação, já governada pelas ciências da educação.Como se sabe, a lei de diretrizes e bases da educação brasileira ressalta como principal objetivo educativo o "desenvolvimento das potencialidades do aluno".

Os termos desenvolvimento e potencialidades escondem mal o viés capitalista e sua vertente decidida da direção do rendimento.

Correlata à criação dos tais objetos, na verdade parte integrante dela, vem também a tecnização.

A definição d 'A criança serve para fins , sobretudo, instrumentais, como fica bem ressaltado na idéia de um menino-robô no filme. Que seja um robô demonstra o desejo de controle e sua natureza mecânica e não orgânica destaca o sonho capitalista de fazer equivaler ambas. Tudo giraria bem se girasse como uma engrenagem.

" A uma época na qual o discurso corrente- o disco corrente evocado por Jacques Lacan- está para as 'simplicidades gerenciais', para as 'propostas ingênuas para a manipulação ultra-moderna' e onde tudo visa a 'uniformização das práticas e dos discursos segundo os imperativos da ciência e da técnica', não se pode espantar-se de ver as práticas educativas e pedagógicas reivindicarem em alto e bom som, a total racionalidade e cientificidade de suas demarches, a inteligibilidade exaustiva de seu objeto, Daí, no campo educativo, o emprego crescente de uma tecnização, sublinhada por Neil Postman, que corresponde a esta etapa da racionalização na qual a técnica e sua eficácia tendem a ser consideradas como um fim em si mesma.. Desta tecnização Olivier Reboul, por sua vez, destaca cinco traços:

- o postulado de que a técnica pode resolver todos os problemas;

- a exigência de um controle total dos resultados com, por conseqüência, a eliminação de todo resto (de todo controlável de todo imprevisto);

- a redução do real ao que é mensurável;

- a supressão da escolha das técnicas, a opção de uma técnica única;

- a eficácia como valor supremo." (Imbert, 1996, p. 11) (tradução livre)

A fabricação de um homem por outro homem obceca nossa época como destaca Philipe Meirieu (2006). Ela reaparece no prestígio de certas lendas que perduram, tais como: Pinóquio, Frankentein e mesmo o caso do menino robô do filme.

A fabricação de uma criança "sob medida", segundo o que se deseja que ela seja quando crescer, é tida como empresa desejável e realizável, sendo a ciência o lugar tenente deste processo.

A manipulação técnica, marca registrada deste empreendimento, obedece a uma lógica de eficácia, tendendo a deixar de lado qualquer outra dimensão da discussão que não se encaixe neste perfil.

Neste sentido, o debate das diversas teorias "psis" sobre a criança na escola é falacioso, uma vez que detém poucas chances de influenciar verdadeiramente um sistema que reivindica o controle tecnicista do comportamento.

O behaviorismo, a despeito de sua fragilidade epistemológica, encontra neste contexto as razões de sua vitória.

"A Lamentável verdade, no que concerne ao behaviorismo e a validade de sua 'leis', é que quanto mais há pessoas, mais elas têm a tendência de "bem se conduzir" e de não suportar o não conformismo. Na estatística, o fato é posto em evidência pelo nivelamento das flutuações. A uniformidade estatística não é de modo algum um ideal científico inofensivo" (Arendt, apud Gori e Del Volgo, 2005 p.211)

"O que há de desagradável nas teorias modernas do comportamento, não é que elas seja, falsas, é que elas podem se tornar verdadeiras, é que elas são, de fato, a melhor tradução possível em conceitos de certas tendências evidentes da sociedade moderna" (idem, p. 214)

"A" criança pode receber em sua construção o aparato das várias teorias psicológicas, mas é para sustentar uma estratégia em relação a ela que estes aportes vão ser buscados.

"A" criança é fundamentalmente criança-estratégia. Tudo que nela escapar ao controle tende a ser apagado, ou reinterpretado dentro da estratégia montada.Afinal, o controle das flutuações rumo a norma é imprescindível.

 

A escola "sob medida"

Para a criança-estratégia, uma instituição "sob medida".

O termo "sob medida" serve bem para indicar a pretensão de complementaridade que subjaz todo empreendimento capitalista.

Para a criança certa a escola certa: a escola especial para a criança especial, a "regular para a regular" (destacando novamente o caráter de regulação, de estabelecimento de uma média, do empreendimento capitalista), em todo caso, sob medida.

Em todo caso, também, ainda que faltem recursos, em termos ideais esta escola deve ser assistida por vários profissionais além do professor, os mesmos que participaram em sua ciência de origem do projeto de construção d'A criança. Se não for possível a presença do profissional, pelo menos seus "multiplicadores", em geral, os próprios professores constituídos nos cursos de aprimoramento, dados por estes profissionais aos professores interessados.

O que não pode faltar é o discurso da ciência no cotidiano escolar.

Lembremos a operação realizada por Maud Mannoni (1988.) em Bonneuil, de valor insituinte de seu trabalho, e que consistiu em suspender os "banhos de tratamento" para permitir o ato educativo.

A presença maciça do discurso científico, flagrante para estas crianças especiais, mas não restrita a elas, tende a deslocar a relação com elas para o nível objetal, aquele que recorta o corpo da criança desde o objeto específico traçado pela ciência.

A escola tende, assim, para o consultório ou o laboratório em seu funcionamento. Esgarçada pela dilaceração de sua função simbólica na contemporaneidade fica presa fácil da colonização científica que lhe assedia.

A pedagogia, ao precisar manter o estatuto de ciência da educação e esgarçada pela presença das ciências da educação, das quais fica inevitavelmente tributária, crê recuperar sua identidade e unidade na didática, ou seja, exatamente no trabalho técnico-metodológico.

Não é casual que sua identidade e unidade vão encontrar garantias neste ponto. Ao contrário, é mesmo a confirmação de sua inserção capitalista tal como construíamos acima.

Desde aí ela aceitará de bom grado, estimulará até, o afluxo das outras ciências afins, sem que estas já não poderiam mais incomodar sua especificidade.

Uma vez que o processo metodológico foi entendido como supra-disciplinar, quer dizer, que há procedimentos comuns na metodologia do ensino de qualquer disciplina, independentemente de suas características particulares, a pedagogia está garantida em seu papel de administradora do processo educativo.

Ela deve traçar quais são as necessidades educativas d'A criança e buscar no concurso das várias ciências da educação, na medida certa, a providência a ser tomada.

A medida em que a criança se hiperbolizou contemporaneamente, o espaço escolar, inevitavelmente, também, e assistimos a um afluxo de questões e discussões sobre a criança no interior da escola que jamais encontrou precedentes. Sem arbitrar quanto à qualidade destas discussões, o que importa ressaltar, é que elas só ocorrem com tanta freqüência à medida que são entendidas como pertinentes ao trabalho educativo.

As crianças de hoje precisam ser zeladas quanto a seus direitos, protegidas de adultos que podem lhe ser perniciosos, trabalhadas quanto a sua saúde psíquica, mas também física, acompanhadas em suas possibilidades de lazer, etc.

O fato é que esta hiperbolização das necessidades d'A criança faz com que a escola gaste um grande tempo e atenção em sua consideração, podendo, com isso, deslocar-se da dimensão propriamente ensinante.

A "promoção" do termo professor para o de "educador" indica bem esta tendência hiperbolizante.O termo educador sugere maior amplitude de ação do que o termo professor.

Acontece neste caso o mesmo que aconteceu para a questão política que, em vez de ser entendida como uma atividade de todos, sem restrições, foi assimilada a um exercício profissional de poucos, que se supõem dotados para isso.

No caso do educador, que é função de todos na sociedade, seria o professor, um profissional específico, a assumir o papel desviado exclusivamente para ele.

Sua especificidade ensinante se dilui no turbilhão de funções que se acredita serem suas atribuições.

O termo "necessidades educativas" também alude a uma operação fundamental do discurso capitalista, a saber, a "transformação do desejo em necessidade".

O desejo é impossível, como destacávamos acima, pois sua satisfação não encontra objeto ideal. Para o desejo não há um objeto que lhe corresponda. Todos os que se apresentam como possíveis não recuperam o brilho daquele que um dia foi tido como ideal.

Quanto à necessidade, ela tem objeto que lhe aplaca, que lhe complementa, traduzindo uma satisfação em termos possíveis. O capitalismo vive desta ilusão, uma vez que pretende apresentar o produto sob medida, aquele que você precisava, ou ainda, aquele que você descobre que precisa no momento em que o vê fabricado.

A escolha pelo termo "necessidades" para se referir aos recursos que são postos em jogo no trabalho educativo, não representaria, no fundo, esta adesão da escola, enquanto instituição, à crença capitalista da coisa sob medida?

Talvez fosse interessante refletir sobre o fato de que, no filme inteligência artificial, que trata todo tempo de criança, não tenha uma só menção à escola. As crianças que ali aparecem nunca vão à escola. "A ficção científica faria desaparecer a escola?"

 

Referências Bibliográficas

ARIÈS, P., A História social da criança e da família. Editora Guanabara, Rio de Janeiro, 1981.

GORI, R et DEL VOLGO, M.J., La santé totalitaire: Essai sur la médicalisation de l'existence. Èditions Denoel, Paris, 2005.

IMBERT, F. Vers une clinique du pédagogique. Matrice Pi, Paris, 1992

========= L'inconscient dans la classe: transferts et contre-transferts. ESF Éditeurs, Issy-les-Moulineaux, 1996

LACAN, J., Seminário XVII: O avesso da psicanálise. J.Z.E., Rio de Janeiro, (1969-70) [1992]

MANNONI, M., Educação Impossível. Francisco Alves, Rio de Janeiro, 1988

MEIRIEU, P., Frankenstein pédagogue. ESF Éditeur, Issy-les-Moulineaux, 2006.