7A escola e os profissionais d'A criança"Ladainha de professor", qual o assento desse discurso? author indexsubject indexsearch form
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 ISBN 978-85-60944-12-5

An 7 Col. LEPSI IP/FE-USP 2009

 

8/11 - COLÓQUIO - COMUNICAÇÕES LIVRES

 

Entre educar e constituir: efeitos possíveis da educação de uma criança com transtorno grave de desenvolvimento

 

 

Aline Paiva Dantas Luz

 

 


RESUMO

A presente pesquisa propõe uma investigação acerca dos possíveis efeitos terapêuticos da educação, problematizando a função da escola em relação às crianças com transtornos graves de desenvolvimento. Com isso, questiona em que medida a escola pode produzir efeitos terapêuticos capazes de promover um deslocamento da posição subjetiva da criança autista, refletindo também sobre como a psicanálise pode fazer surgir um outro olhar na educação que implique uma mudança paradigmática da função educativa. Tendo em vista esse direcionamento, a pesquisa apresenta o caso de Ronaldo, um garoto de cinco anos, cuja relação transferencial que estabelece fundamentalmente comigo, orientadora educacional de sua escola, com sua professora e também com os demais membros da instituição, permitiu a construção de laços significativos que proporcionaram momentos de saída do seu fechamento autístico. Tomando como base a concepção de Alfredo Jerusalinsky (1993), aprofundada por Leda Bernardino (2000), sobre as psicoses não-decididas da infância, a aposta no poder subjetivante da circulação discursiva que permeia o espaço escolar, representou a possibilidade de se pensar num outro desfecho para a condição autista do garoto. Nessa perspectiva, a investigação realizou-se através do estudo do caso de Ronaldo, observação e escuta dos professores da instituição onde ele estudava, tendo em vista operadores da psicanálise.

Palavras-chave: Autismo; constituição psíquica; efeitos terapêuticos.


 

 

Introdução

A investigação cujo relato se segue é o resultado de um estudo iniciado há alguns anos atrás, a partir do questionamento sobre a função da educação, tendo em vista a concepção de que esta ultrapassa a função pedagógica. Este estudo iniciou-se com a problematização acerca do lugar que a educação ocupa na vivência da criança, considerando-se a perspectiva de que este lugar corresponde mais além do que um ambiente educacional-pedagógico no qual cabe à criança aprender o conteúdo curricular e ao professor ensiná-lo.

Para isso, tornou-se necessário trabalhar com a noção de educação que considera a não intencionalidade do ato educativo. Ou seja, que acredita que o processo de aprendizagem está atrelado a aspectos subjetivos que emergem na relação transferencial com a equipe escolar.

Como destaca Voltolini (2006)1:

"Destaca-se aí a função 'transferencial' de todo conhecimento que quer dizer que é no 'laço' sempre 'particularizado' com o outro que o conhecimento se constrói. Mas destaca-se também que o inconsciente participa da aprendizagem e que se neste caso Freud pôde atribuir a alguém a origem de suas idéias nem sempre este é o caso. É possível que aprendamos algo sem saber de onde isso veio".

Com isso, outros questionamentos se seguiram, principalmente com relação ao papel da escola na constituição das crianças, especialmente daquelas cujo percurso subjetivo aponta para um destino psicopatológico grave.

Nesse sentido, o acompanhamento do ingresso à escola de um menino de cinco anos, a quem chamei de Ronaldo, serviu como base que fundamentou a pesquisa. Ronaldo tratava-se de uma criança apática, que não estabelecia laço, não fixava o olhar, apresentava comportamentos estereotipados e extrema angústia no contato com o outro. Assim, pude perceber que estaria diante de um caso de autismo infantil e que, a partir daí, caberia definir qual o papel da escola na educação dessa criança, ou melhor, que educação seria esta, quais seriam os objetivos da educação dessa criança?

Tendo em vista a concepção de Kupfer (2007)2, que destaca o papel constituinte da escola e aposta no poder subjetivante dos diferentes discursos que circulam no campo social, capazes de sustentar lugares sociais para as crianças, compreendi que o ingresso desse garoto na escola poderia ser trabalhado de forma que preconizasse os aspectos relacionais do ambiente escolar. Assim, entendi que a escola poderia oferecer mais do que o ensinamento dos conteúdos relativos à série na qual ele ingressava ou o enquadramento sócio-normatizador característico, mas que Ronaldo poderia se beneficiar com as operações simbólicas que ocorrem no cotidiano escolar e que são constitutivas. Mais do que um lugar para o fazer educativo comum, fazer daquele um lugar para se ser sujeito.

Dessa forma, outros questionamentos se seguiram: em que medida a escola pode produzir efeitos terapêuticos capazes de promover efeitos constitutivos na criança com transtornos graves de desenvolvimento? Em qual momento a psicanálise pode fazer surgir um outro olhar por parte dos agentes do processo educativo, o qual possa implicar numa mudança de posicionamento frente às possibilidades da educação?

Essas perguntas foram sendo elucidadas à medida que a investigação foi se desenvolvendo, e outras foram surgindo, uma vez que pensar em efeitos terapêuticos da educação tendo em vista uma função constitutiva capaz de subjetivar crianças com transtornos graves pode parecer cair num idealismo bem distante do que ocorre no cotidiano escolar. Ademais, pensar em agentes educacionais capazes de ocupar funções simbólicas para essas crianças sem sobrecarregarem-se por uma responsabilidade parental torna-se muito delicado. No entanto, este trabalho mostrou que algumas modificações são possíveis, no discurso educacional e na subjetividade da criança, e são elas que dão sentido à concepção terapêutica da educação.

 

Função Educativa e Função Constitutiva

Na tentativa de entender melhor como se operam os efeitos terapêuticos da educação, tornou-se necessário considerar o que separei em termos de funções, de acordo com as possibilidades do exercício educacional. Dessa forma, não aleatoriamente, destaquei duas funções que antes não seria possível se pensar de forma combinada, principalmente no campo da educação.

Segundo Gadotti (2001)3, a educação sempre esteve vinculada à idéia de instrução, o que sugere que falar em função educativa nos remetia à noção de que caberia ao professor a exclusiva tarefa de transmitir aos alunos os conteúdos pertinentes ao currículo escolar. Nessa perspectiva, jamais poder-se-ia pensar nas implicações do professor – e de forma mais abrangente, da escola – na constituição subjetiva dos alunos. Tal função – que denominei aqui como função constitutiva – estivera unicamente associada ao exercício da função materna.

Nesse sentido, no que se refere às implicações do professor na constituição subjetiva dos alunos, foi possível tomar como base a teoria dos quatro discursos proposto por Lacan (1969-1970)4 no que tange a perspectiva do laço social na relação professor-aluno.

Lacan considera que a linguagem constitui o eixo central através do qual o laço social acontece, ou seja, é na cadeia do discurso que o sujeito se constrói. Assim, define quatro discursos que indicam o posicionamento do sujeito na linguagem. O discurso do mestre é aquele que se refere à supremacia do saber sobre o sujeito, portanto, permanece recalcado aquilo que é da ordem do sujeito. O discurso do analista, por sua vez, permite a emergência do recalcado, produzindo a queda do saber suposto para que o sujeito possa construir novos saberes. Já o discurso universitário se adéqua ao discurso do mestre por reconhecer um saber erudito no qual o aluno deve se assujeitar. Por fim, o discurso da histérica desafia o saber, ao se colocar na posição da insatisfação, provocando a dúvida sobre o saber do Outro

Kupfer (1989)5, após propor a idéia de uma educação psicanaliticamente orientada6, apresenta a discussão acerca de quais os determinantes psíquicos que levam alguém a ser um desejante de saber. Refere que, para Freud, as primeiras investigações infantis são sempre sexuais, na tentativa de responder às perguntas "de onde viemos" e "para onde vamos" e definir seu lugar no mundo. Esse lugar é, a princípio, um lugar sexual e que posiciona a criança em relação ao desejo dos pais. Ao final do Édipo, parte dessas investigações são reprimidas, e a outra sublima-se em "pulsão de saber". A questão principal destacada por Kupfer aponta para essas primeiras investigações como a mola propulsora para o desenvolvimento intelectual, mas ressalta que esses determinantes psíquicos não atuam sozinhos. Para ela, aprender supõe "a presença de um professor, colocado numa determinada posição, que pode ou não propiciar a aprendizagem" (Kupfer, 1989: p. 84).

Assim, a autora concebe a relação professor-aluno tendo em vista o dispositivo transferencial que é posto em operação, uma vez que considera que a relação de aprendizagem implica um investimento sobre o outro. E lembra que é necessário que o professor seja capaz de suportar as implicações que ser colocado nesse lugar produz.

"Mas conhecer do modo singular como se realiza esse desejo naquele aluno em especial é, na verdade, tarefa do analista. Nem o aluno quer, no fundo, que o seu professor saiba do desejo que o move (nem mesmo, por sinal, pode saber dele, já que se está falando sempre, não se pode esquecer, do desejo inconsciente, e não do desejo, por exemplo, de se tornar geógrafo, pois esse me é consciente). Tudo o que esse aluno quer é que seu professor "suporte" esse lugar em que ele o colocou. Basta isso" (Kupfer, 1989: 92).

Anos mais tarde, Kupfer (2007)7 desenvolve melhor sua concepção sobre as contribuições da psicanálise para a educação. Primordialmente, a psicanálise trouxe para o campo educacional a concepção de que o ato educativo está em congruência com a visão psicanalítica de sujeito. É pela educação que um adulto marca seu filho com marcas de desejo, por meio das quais o Outro primordial se intromete na carne do bebê transformando-a em linguagem. Assim, é através do discurso que o laço social acontece, atrelando o falante ao Outro. Nessa perspectiva, o ato educativo é concebido como uma prática social discursiva que também é responsável pela imersão da criança na linguagem, tornando-a capaz de produzir discurso e com isso armar laço social. Além disso, a psicanálise trouxe para a educação o entendimento de que transmissão de saber implica transmissão de demanda social além do desejo, assim como transmissão de marcas, como transmissão de estilos de obturação da falta do Outro.

A autora destaca ainda o fato de que as primeiras inscrições psíquicas serão responsáveis pelos desdobramentos futuros que acontecerão em relação à maneira pela qual a aprendizagem vai se dar. O que Kupfer quer dizer está em consonância à proposta lacaniana de que os significantes primordiais vão se ligando a outros significantes, produzindo uma rede simbólica que confere singularidade ao sujeito. Dessa forma, ela evidencia o fato de que a aprendizagem segue essa lógica, que é própria ao sujeito.

"Para pilotar esses deslocamentos, a criança precisará desenvolver estruturas mentais. Em seus atos inteligentes, porém, as marcas primordiais estarão sempre presentes, imprimindo-lhes singularidade. Tais marcas se farão notar, vez por outra, nos tropeços da aprendizagem, mas estarão presentes também em seu estilo próprio de aprender e de escrever. Serão as marcas que evidenciam a presença de um sujeito" (Kupfer, 2007: p.108).

No caso acompanhado, o olhar sensível da professora de Ronaldo permitia a ascensão dessa possibilidade, uma vez que esta, marcadamente, supunha haver um sujeito de vontade e de desejo na criança. Ela reconhecia que ele tinha vontade e, mais do que isso, falta de vontade. "É tudo muito sutil, muito de leve, mas tem". Segundo ela, Ronaldo parecia ter preferência pelas brincadeiras que envolviam o corpo e que, por isso mesmo, nas atividades pedagógicas, utilizava esse recurso, ou seja, antes de trabalhar um conceito, ela elaborava brincadeiras que remetiam ao corpo do garoto. Por exemplo, se o trabalho pedagógico dizia respeito a formas geométricas, ela propunha: "vamos fazer um círculo com o corpo", se estavam trabalhando com a cor azul, convidava-o a pintar o rosto de azul. Algumas atividades surgiam do próprio Ronaldo. Quando estavam trabalhando a cor verde, ele pegava um quebra-cabeça de sapos. A professora sempre tentava dar sentido às produções espontâneas do menino, significando a escolha do brinquedo como sendo o assunto que ele gostaria de falar. Na sua interpretação, acreditava que se ele estava pegando o quebra-cabeça era porque queria trabalhar com o sapo. Dessa forma, verbalizava para ele sua interpretação, a fim de que Ronaldo desse indício de suas preferências. Ela acreditava que talvez, naquele momento, aquela escolha ainda não fosse uma escolha legítima, mas achava que esta poderia ser uma maneira de ajudar Ronaldo a perceber que suas escolhas ou atitudes faziam diferença.

Nesse sentido, a relação que a criança estabelece com a aprendizagem pressupõe que sua subjetividade esteja em jogo nesse processo. Assim, Kupfer aponta para a escrita como uma aquisição que produz um ordenamento simbólico do psiquismo. É o que confere o caráter terapêutico da aprendizagem.

"Pode-se, então, concluir que o que está em jogo no trabalho de aquisição da escrita não é uma objetivação, mas uma subjetivação, por sua condição de fato na linguagem. Quando aprendem a escrever, as crianças colocam em jogo a operação significante que constrói uma escrita e as constrói pelo mesmo ato. É um exercício de 'letração', que as ordena, as reordena, a partir da interpretação do Outro" (Kupfer, 2007: p.109).

E complementa:

"Escrever é produzir um 'a mais', que é o fruto dos encontros sintáticos, das vírgulas, da posição das frases, de seu encadeamento. É por isso que se pode afirmar que a aprendizagem da escrita pode produzir efeitos subjetivantes que não são necessariamente os mesmos da linguagem falada" (Kupfer, 2007: p. 110).

Mannoni (1992)8, ao discorrer sobre as contribuições da psicanálise para o campo educacional, propõe a idéia de "clareagem"9, afirmando que a presença da psicanálise na instituição não deve ser indicadora do modo como as intervenções são produzidas. Considera inclusive, que, no caso de crianças com distúrbios de desenvolvimento, o trabalho dos profissionais menos familiarizados com a psicanálise ocorre de maneira mais satisfatória, produzindo melhores efeitos.

Nesse sentido, Kupfer (2007) considera que a noção de clareagem proposta por Mannoni limita as possibilidades da psicanálise na instituição, uma vez que, entendendo a psicanálise em seus movimentos institucionais e a educação em sua circulação discursiva, ao fazer a luz da psicanálise incidir sobre um objeto da educação, pode-se considerar que esses dois campos não conseguem mais se manter neutros, ou seja, um modifica o outro.

Zimmermann (2007)10, a partir de sua experiência institucional com adolescentes estados-limite, descreve de maneira precisa como é possível implementar um trabalho institucional respaldado na psicanálise. Ela considera que as intervenções produzidas na esfera educacional assemelha-se ao trabalho realizado em análise de historização do sujeito, que é descrito por Aulagnier (1989)11 como a tarefa de "transformar esses documentos fragmentados numa construção histórica que dá ao autor e aos seus interlocutores a sensação de uma continuidade temporal"(p.208).

De acordo com Zimmermann, uma vez que a educação ofereça um enriquecimento que possibilite aos sujeitos ampliarem sua rede de significações, isto a situa numa função que produz efeitos terapêuticos, pois há uma construção, mesmo sem que ocorra necessariamente um processo de interpretação. Ela pontua que o eixo norteador desse tipo de trabalho consiste em ajudar os profissionais envolvidos na tarefa educativa a efetuarem uma modificação do olhar dirigido aos alunos. E se refere a Laznik (2000)12 quando indica que esse olhar diz respeito ao que a autora descreve, na sua clínica com bebês, como olhar fundante, que consiste não só em olhar, mas em escutar o sujeito.

Dessa forma, Zimmermann considera que a psicanálise contribui para o trabalho institucional à medida que redimensiona as funções dos educadores, levando-os a entenderem que a tarefa educacional extrapola a objetividade pedagógica. Além disso, a autora também pontua que:

"O desafio do trabalho do psicanalista é contribuir para que seja criado um espaço em que dificuldades de aprendizagem não sejam vistas como algo estático e impeditivo de o sujeito atingir uma capacidade produtiva e, conseqüentemente, inserir-se no social de forma valorizada" (Zimmermann, 2007: p.114).

Zimmermann ainda complementa que o trabalho institucional amparado pela psicanálise visa a promover intervenções subjetivantes, ou seja, possui como premissa fornecer um olhar que favoreça ao sujeito emergir como tal. Pois quando se trata de sujeitos em constituição, ou mesmo com patologias graves, a psicanálise pode ajudar os profissionais de áreas afins a acionarem mecanismos institucionais que privilegiem a constituição do sujeito.

Isto não significa que o professor deva adquirir conhecimento em psicanálise para entender o aluno; mas sim, que a psicanálise pode proporcionar à instituição tolerância em relação à transferência com uma criança que não apresenta a mesma demanda que as outras. Além disso, a psicanálise enquanto teoria que fundamenta uma pesquisa, pode trazer elementos que dêem conta de compreender que para estas crianças existe um outro benefício que a escola pode oferecer, que não aqueles da ordem formal do currículo escolar.

Nesse sentido, o trabalho de Zimmermann situa-se em consonância com o de Kupfer ou mesmo com o de Mannoni, no que se refere à consideração de que a própria montagem institucional se vale de operadores que se põem a articular funções constituintes para o sujeito. Como aconteceu no caso de Ronaldo, cuja professora, embora não possuísse conhecimentos teóricos da psicanálise, pôde assumir uma função para além da educativa, uma função que produzia efeitos subjetivantes, através da qual, respaldada pela transferência, foi capaz de olhar para a criança e escutar sensivelmente sua demanda.

Zimmermann (2007) deixa claro que o que chama de trabalho de intervenção psicanalítica via instituição não é o mesmo que um trabalho clínico no qual a cura analítica por meio da transferência passa pela interpretação. No trabalho institucional, a característica clínica é a de aceitar as diferentes formas de inscrição do sujeito como marcas válidas de sua existência. Mesmo não estando num setting analítico, através da transferência, existe a possibilidade de se fazer alargar a rede de representações para que haja conexão com objetos externos.

Isso podia ser observado no relato da professora de Ronaldo, ao dizer que as horas mais importantes da rotina dele eram as de ir ao banheiro e as do lanche, pois eram as horas em que Ronaldo dirigia-se a ela, mesmo que fosse apenas para um uso instrumental do seu corpo.

A noção de construção em análise trata do trabalho de recomposição de uma história quando o paciente tem alguém que o ajude montando os elementos dela. Nesse ponto, a intervenção institucional assemelha-se à idéia desse trabalho de historização, uma vez que o educador promove a construção de um percurso, conferindo um lugar próprio à criança dentro da estrutura simbólica da instituição escolar.

Nesse sentido, para crianças em constituição, a construção de sua história pode ser posta em funcionamento através das atividades educacionais espontaneamente realizadas pela educadora com a turma.

Na tentativa de compreender o que produz o mal-estar na educação e definir o posicionamento do trabalho analítico no contexto educacional, Voltolini (2001)13 situa o discurso do mestre e do analista, tomando como eixo a teoria dos quatro discursos proposta por Lacan. Com isso, ele compreende que, embora ambos trabalhem com a queixa, o discurso do mestre mostra-se avesso ao do analista, pois o primeiro visa a consertar o que surge como conflito, o que considera uma forma a-subjetiva. Já o segundo se propõe a entendê-lo, fazendo advir um saber não sabido e, portanto, ampliando a dimensão do problema. Para o autor, educar implica governar, pois a instituição escolar necessita de uma ordem que a ponha a funcionar, o que representa um impasse ao discurso do analista. Mas seria impossível o discurso pedagógico (do mestre) produzir efeitos semelhantes aos produzidos pelo discurso do analista?

O autor considera que o ato fundado na ética analítica produz uma escuta que permite a transformação da queixa em enigma. Trata-se, portanto, de fazer surgir um questionamento não queixoso no qual o sujeito se sinta implicado no que sofre, o que é próprio do posicionamento analítico.

Portanto, para que o discurso do mestre produza efeitos semelhantes aos que a escuta analítica proporciona, seria necessário haver uma modificação na posição discursiva da escola. Caberia então à instituição escolar modificar-se estruturalmente para que as queixas transformassem-se em demandas.

 

Considerações Finais

A escola representa a oferta de muitas possibilidades para as crianças que a frequentam, entretanto não vem sendo utilizada no seu mais amplo espectro. Fica reduzida à função meramente formativa/instrucional o que limita as possibilidades de atuação profissional de seus professores. Além disso, são reduzidos os ganhos que as crianças podem adquirir em participar da circulação de saberes ofertado pela escola e, sobretudo, da circulação discursiva produzida na mesma.

Quando falo dos limites impostos à atuação profissional dos professores, refiro-me ao fato de eles terem de deixar de lado os aspectos subjetivos do aluno e voltarem-se apenas à formação básica dos mesmos. Trata-se de deixar de lado a importância da relação intersubjetiva – de inconsciente para inconsciente – para deterem-se apenas aos aspectos cognoscentes do alunado.

Isso significa que seu fazer educativo está posto sobre bases históricas de uma educação voltada para a produção e eficiência individual, tal como descrito por Gadotti (2001), na qual a subjetividade fica relegada apenas aos aspectos afetivo-emocionais, ou seja, às concepções pedagógicas acerca das influências da afetividade no processo ensino-aprendizagem.

Isto não significa que os aspectos afetivos não sejam importantes, afinal, desconsiderar o afeto seria negar a própria concepção psicanalítica a respeito da transferência. Este dispositivo é pensado por Kupfer (1989) no contexto educacional, como aquele que confere ao professor um lugar especial na relação com os alunos e me permite compreender a noção de função constitutiva da escola. E claro, os alunos precisam ser afetados pela educação, pois só assim conseguem se enlaçar no processo educativo.

No entanto, como aponta Gadotti (2001), as concepções pedagógicas possuem raízes na história da educação, aquela que enfatiza o desenvolvimento intelectual e a formação técnica. Com isso, não é dado o devido valor à importância da função da escola na constituição subjetiva da criança e os efeitos produzidos por ela, no psiquismo infantil, especialmente quando se trata de alunos com transtornos graves de desenvolvimento.

Esse conceito é definido por autores contemporâneos de orientação teórica lacaniana, que trabalham com as psicopatologias infantis, como Alfredo Jerusalinsky14 e Marie Christine Laznik15, que consideram que crianças que possuem autismo ou psicose apresentam falhas na constituição psíquica que desordenam suas operações simbólicas.

Dessa forma, quando se trata de crianças com transtornos graves de desenvolvimento, pensar a respeito do que a escolarização pode fazer por essas crianças é o ponto chave para nortear a proposta de educação. Tal como proposto por Kupfer (2007), esse delineamento é o que permite construir a noção de como a psicanálise pode contribuir nessa proposta. Assim, é importante desfazer a ideia de uma psicanálise aplicada ao campo educacional, pois ao fazer isso esbarraríamos na inconveniência16 da educação para a psicanálise. Ademais, a posição discursiva da educação, que a coloca no lugar de responder a demandas já formalizadas e não de fazer surgi-las, representa um impasse frente à possibilidade de um fazer analítico na escola.

Daí a necessidade de se diferenciar o fazer analítico do fazer educativo, como pontua Bernardino (2004)17 e também Zimmermann (2007), uma vez que tais discursos não apresentam o mesmo posicionamento. Mas a psicanálise possui alguns dispositivos que são colocados em funcionamento no contexto escolar mesmo que não haja uma transmissão da psicanálise para educadores.

De acordo com Kupfer (2007), a transferência é um fenômeno que acontece de maneira espontânea sem que os sujeitos se dêem conta da origem do laço que estão estabelecendo. Além disso, é importante lembrar que a aprendizagem se funda nas operações simbólicas que são construídas desde o nascimento, o que faz com que os processos mentais e intelectuais caminhem lado a lado com a constituição subjetiva.

Assim, Bernardino (2004) apresenta a concepção a respeito das psicoses não-decididas da infância, tendo em vista a impossibilidade de se definir o destino psíquico da criança, uma vez que esta se encontra num tempo cuja constituição subjetiva ainda pode apresentar novos desdobramentos. Esse é o aspecto que a educação precisa levar em conta quando lança o olhar para o seu aluno, especialmente aqueles cuja constituição psíquica está truncada. As crianças pequenas em idade escolar estão em processo de constituição e não com uma estrutura pronta – isto quer dizer que estruturas simbólicas estão se formando – assim como as crianças cujos traços apontam para um autismo. Isto indica a presença de falhas que interferem na colocação do aparato orgânico a serviço do simbólico. Portanto, é o que dificulta a aprendizagem e a produção intelectual, isto é, as demandas que a escola espera que a criança apresente, demanda de adquirir conhecimento.

Dessa forma, se a escola espera que a criança autista se beneficie desses mesmos atributos que as outras crianças, de fato, poder-se-ia pensar que a educação nada tem a lhes. No entanto, se mudarmos o foco da aprendizagem para a construção – que pode ocorrer em muitos aspectos – do educativo para o constitutivo, aí sim entraremos no terreno dos efeitos terapêuticos que a escola produz.

Como propõe Kupfer (2007), se a expectativa do professor de fazer com que a criança aprenda é reduzida, e seu olhar se desloca da objetividade para a subjetividade, ele pode começar a promover experiências de produção simbólica. Sair da objetividade do ato educativo para a possibilidade subjetiva que a escuta analítica proporciona. Mais uma vez, reitero que não se trata de um fazer analítico, mas sim a adoção de uma postura analítica. Para se tê-la, não é necessário se formar analista, nem mesmo rejeitar as concepções educacionais, apenas ampliar o olhar e oferecer outras possibilidades à criança autista, que não aquelas que exigem estruturas nas quais ela não dispõe.

No do caso apresentado, a professora respeitava os momentos de fechamento autístico da criança, mas ao mesmo tempo sabia acolher e transformar em demanda as brechas que o menino produzia.

Nesse sentido, para se pensar em que medida a escola pode produzir efeitos terapêuticos capazes de promover um deslocamento da posição subjetiva da criança autista é necessário ter em vista três aspectos.

Primeiramente, parti da consideração de Bernardino (2004) de que a estrutura psíquica da criança ainda está em formação, portanto seu destino psíquico ainda não está decido. Isso impede que se cruze os braços diante de uma suposta impossibilidade da ação educativa. É o que permite ao professor convocar a criança autista à relação, mesmo que a princípio esta não lhe dê qualquer indício de resposta.

Além disso, não se pode esquecer da importância de se ter uma criança que produz brechas nas quais o professor vai tentar encontrar sentido. Essas brechas foram apresentadas por Ronaldo, o que tornou possível as intervenções. Aí está o limite da "boa vontade" do professor. Por mais que o professor se coloque numa posição analítica de escuta, é preciso que a posição subjetiva da criança favoreça. Ou seja, é necessário que a posição subjetiva da criança permita a aproximação do outro, uma vez que o professor só consegue fisgar aquilo que emerge da criança. Não cabe a ele inventar um sentido e sim transformar as produções que surgem no contexto escolar em escolhas legítimas.

Por fim, os profissionais da educação precisam adquirir uma escuta sensível, tal como apontada por Kupfer (2007), capaz de enxergar aquilo que não está lá, se predispor a encontrar agulha no palheiro, transformar aquilo que escuta como ruídos em sons. Não se trata de uma tarefa fácil, principalmente por causa das exigências da escola quanto à produção intelectual das crianças. Ademais, considerando uma proposta de educação inclusiva, é importante lembrar que o professor terá de dar conta de outras crianças, que também se beneficiam dos efeitos terapêuticos da educação, além de cumprirem a exigência formativa da mesma.

Nesse sentido, o impasse em se trabalhar com essas crianças dentro de uma proposta de inclusão consiste no fato de o professor ter que manejar duas funções, além de outras que estão agregadas a estas: a função educativa e a constitutiva. Ou não seria justamente saber manejar o interjogo dessas funções?

Para que isso ocorra cabe à escola ser capaz de validar os discursos que permeiam essas funções e desconstruir a ideia de que exercer uma função constitutiva assemelha-se ao exercício da função materna. Não se trata disso. Mas sim de saber articular as exigências educacionais do mercado à atenção aos aspectos subjetivos das crianças. Lembremos de que crianças com autismo infantil se beneficiam primordialmente da circulação simbólica que subjaz o processo educativo. Assim, os efeitos terapêuticos da educação surgirão de uma maneira clara. Posicionando-se dessa forma, o professor poderá trabalhar com essas crianças de maneira espontânea, com o olhar voltado para o sujeito e não para os objetos construídos por ele. Olhar para o sujeito significa atentar para suas produções subjetivas e não para as objetivas.

Para se pensar esses aspectos, Zimmermann (2007) considera que não é necessário que o professor os indague, para isso existem os profissionais orientados pela psicanálise para fazê-lo. Cabe ao professor uma mudança de postura, de olhar, e não a aquisição de conhecimentos em psicanálise.

Todavia, para que tais mudanças não se restrinjam ao posicionamento do professor, e possam ser produzidas na escola de uma maneira geral, necessário se torna responder: seria possível modificar a posição discursiva corrente hoje na esfera educacional? E mais: seria necessário a presença do psicanalista na escola?

Ficam aqui algumas respostas, e muitas outras perguntas, na tentativa de entender qual o melhor caminho a seguir para que seja possível construir um saber acerca dos efeitos terapêuticos da educação.

 

Referências Bibliográficas

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GADOTTI, Moacir. História das idéias pedagógicas. São Paulo: Editora Ática, 2001.

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KUPFER, Maria Cristina Machado (1989). Freud e a Educação: o mestre do impossível. São Paulo: Scipione, 2005, 3ª edição.

____________________________. Educação para o futuro: Psicanálise e Educação. São Paulo: Escuta, 2007, 3ª edição.

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__________________. A Educação como "fato inconveniente" para a psicanálise. In: Psicanálise, Educação e Transmissão. Ano 6 Col. LEPSI IP/FE-USP, São Paulo 2006. Proceedings online. Available from: http://www.proceedings.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=MSC0000000032007000100006&Ing=en&nrm=abn

ZIMMERMANN, Vera Blondina. Adolescentes estados-limite: a instituição como aprendiz de historiador. São Paulo: Escuta, 2007.

 

 

1 VOLTOLINI, Rinaldo. A Educação como "fato inconveniente" para a psicanálise. In: Psicanálise, Educação e Transmissão. Ano 6 Col. LEPSI IP/FE-USP, São Paulo 2006. Proceedings online. Available from: http://www.proceedings.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=MSC0000000032007000100006&Ing=en&nrm=abn
2 KUPFER, Maria Cristina Machado. Educação para o futuro: Psicanálise e Educação. São Paulo: Escuta, 2007, 3ª edição.
3 GADOTTI, Moacir. História das idéias pedagógicas. São Paulo: Editora Ática, 2001.
4 LACAN, Jacques (1969-1970). O Seminário livro 17: o avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992.
5 KUPFER, Maria Cristina Machado (1989). Freud e a Educação: o mestre do impossível. São Paulo: Scipione, 2005, 3ª edição.
6 Primeira formulação feita pela autora na tentativa de propor um casamento entre psicanálise e educação, na primeira edição publicada em 1989. KUPFER, Maria Cristina Machado. Freud e a Educação: o mestre do impossível. São Paulo: Scipione, 2005, 3ª edição.
7 KUPFER, Maria Cristina Machado. Educação para o futuro: Psicanálise e Educação. São Paulo: Escuta, 2007, 3ª edição.
8 MANNONI, Maud. Um lugar para viver? Percurso: São Paulo, n. 9, segundo semestre de 1992.
9 Ao discorrer sobre a presença da psicanálise na escola Experimental de Bonneuil, fundada por ela na França, considerando a desnecessária imersão da criança na rede de cuidados "psi".
10 ZIMMERMANN, Vera Blondina. Adolescentes estados-limite: a instituição como aprendiz de historiador. São Paulo: Escuta, 2007.
11 AULAGNIER, Piera. O aprendiz de historiador e o mestre-feiticeiro: do discurso identificante ao discurso delirante. São Paulo: Editora Escuta, 1989.
12 LAZNIK, Marie-Christine. Psicanalistas que trabalham em saúde pública. Pulsional – Revista de Psicanálise, ano III, n.132, abril de 2000.
13 VOLTOLINI, Rinaldo. Do contrato pedagógico ao ato analítico: contribuições à discussão da questão do mal-estar na educação. Estilos da Clínica: revista sobre a infância com problema. Ano X, no 10, 1º semestre de 2001.
14 JERUSALINSKY, Alfredo. Psicanálise e Desenvolvimento Infantil: um enfoque transdisciplinar. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 1999.
15 LAZNIK, Marie-Christine e PEREIRA, Mário Eduardo Costa. Discussão sobre a articulação entre psicanálise e pesquisa. In: LERNER, Rogério; KUPFER, Maria Cristina M. (Org.). Psicanálise com crianças: clínica e pesquisa. São Paulo: Escuta, 2008.
16 Parafraseando Voltolini em VOLTOLINI, Rinaldo. A Educação como "fato inconveniente" para a psicanálise. In: Psicanálise, Educação e Transmissão. Ano 6 Col. LEPSI IP/FE-USP, São Paulo 2006.
17 BERDARDINO, Leda Mariza Fischer. As psicoses não-decididas da infância: um estudo psicanalítico. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2004.