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ISBN 978-85-60944-12-5 versão

An 7 Col. LEPSI IP/FE-USP 2009

 

8/11 - COLÓQUIO - COMUNICAÇÕES LIVRES

 

A recepção higiênica do bebê: um estudo a partir de manuais de puericultura publicados no Brasil entre 1918 e 1968

 

 

Ana Laura Godinho Lima

 

 


RESUMO

Este trabalho discute as maneiras como os pediatras escreveram em seus manuais de puericultura sobre quem é o recém-nascido e as prováveis implicações desses discursos na relação inicial entre a mãe e o seu bebê. Dito de outra maneira, busca-se perceber como os médicos apresentavam às mães a criança recém-nascida: suas características, seu comportamento, suas necessidades. Entende-se que as informações científicas sobre o bebê fornecidas pelos especialistas orientavam as mães sobre como interpretar os sinais e as reações do bebê e como agir diante de suas manifestações. Traziam respostas para as dúvidas das mães sobre a aparência, a atitude, o choro, o sono, a fome do neonato. Fundamentados em seus conhecimentos e em sua vasta experiência clínica, os médicos ofereciam explicações científicas e orientações práticas. Tendo em vista os principais objetivos dos compêndios de puericultura, que eram reduzir as elevadas taxas de mortalidade infantil e ajudar a constituir uma população saudável, os autores favoreciam uma relação inicial mãe-bebê caracterizada pela observância rigorosa de recomendações higiênicas. A pesquisa incide sobre 16 manuais de puericultura publicados no Brasil entre 1919 – ano de publicação das Consultas Práticas de Higiene Infantil, de Fernandes Figueira - e 1968, ano de surgimento da revista Pais e Filhos, publicação que permitiu ampliar significativamente a divulgação dos conhecimentos da puericultura no país. A análise fundamenta-se nos escritos de Michel Foucault e outros autores contemporâneos sobre o conceito de governamentalidade.

Palavras-chave: relação mãe-bebê; manuais de puericultura; história da infância.


 

 

Introdução

Segundo Winnicott,

A mãe não precisa ter uma compreensão intelectual da sua tarefa, uma vez que está preparada para a mesma, em sua essência, pela orientação biológica em relação ao seu próprio bebê. É mais o fato de sua devoção ao bebê do que seu conhecimento autoconsciente que a torna suficientemente boa para obter pleno êxito nas primeiras fases da criação do filho. (1982, p. 215)

No entanto, vivemos em um mundo onde é vasta a oferta de conhecimentos da pediatria e da psicologia infantil para as mulheres que vivem pela primeira vez a experiência da maternidade. O acesso fácil à informação é considerado uma das vantagens mais importantes da vida contemporânea e, no que diz respeito à criação dos filhos, mais do que simplesmente benéfica, a instrução é frequentemente vista como necessária. É assim que pensa, por exemplo, Samuel Schvartsman, professor associado de Pediatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo e autor do prefácio do livro A Saúde de Nossos Filhos, produzido pelo departamento de pediatria do Hospital Albert Einstein. Segundo ele,

Na época atual, apenas o instinto e as características imanentes são insuficientes para uma atenção adequada, pois as pessoas, a família, a sociedade e o ambiente estão cada vez mais difíceis e complexos. É imperiosa a necessidade de aprender e, mais do que isto, de aprender bem como se cuida adequadamente do desenvolvimento de uma pessoa – especialmente no período-chave, que vai desde a fecundação até o fim da adolescência. (2005, p. 11)

Basta ir a uma livraria, uma banca de jornal, uma loja de brinquedos ou mesmo uma farmácia para se dar conta da profusão de informações – e também de artigos de consumo – disponíveis às mães e os demais interessados nas questões relativas à infância e à maternidade. São revistas, livros e DVDs que apresentam as vantagens e as indicações de cada tipo de parto; fornecem orientações para os cuidados com a saúde durante a gestação, ensinam a cuidar do bebê; oferecem sugestões para a decoração do quarto e a aquisição do enxoval; ensinam a brincar com os pequenos ou incentivam a prática da Shantala – massagem para bebês – e da natação como forma de promover o desenvolvimento da criança e estreitar o vínculo mãe-bebê. Há ainda uma quantidade cada vez maior de produtos, tais como brinquedos e produtos de higiene, que prometem não apenas facilitar o dia-a-dia de cuidados com o bebê, mas também aproximar mãe e filho nas atividades da rotina: o banho, a alimentação, a história antes de dormir e assim por diante. Para isso, o produto, seja um shampoo, um chocalho ou uma mamadeira se fazem acompanhar de um folheto instrutivo, em que a mãe é orientada sobre como proceder de modo a aproveitar cada momento para estreitar as relações afetivas com o bebê ou ensinar-lhe algo. Nesses materiais, aconselha-se a mãe a tomar o filho nos braços e olhar para ele enquanto o amamenta, a conversar com o bebê durante o banho ou a troca de fraldas, a sentar com ele no chão para explorar um determinado brinquedo. Sendo assim, é irônico que grande parte desse material procure simultaneamente valorizar a espontaneidade da mãe e a naturalidade do vínculo mãe-bebê, como se pode observar no seguinte anúncio de uma linha de produtos infantis, veiculado na revista Crescer:

Instinto materno é escolher sempre o melhor para o seu filho. Foi pensando nisso que criamos a linha Philips AVENT: uma linha de cuidados para bebês recomendada por mães e médicos do mundo inteiro. Agora no Brasil com produtos que acompanham as diferentes fases da experiência que é ser mãe. É por isso que Philips AVENT é a melhor escolha para mães e bebês. (Crescer, março,2009, p. 88)

O texto, que no anúncio é apresentado como a legenda da linda fotografia de uma mãe que observa seu bebê dormindo, inicia pela referência ao instinto materno, mas logo sugere que as leitoras devem seguir a recomendação de mães e médicos do mundo inteiro, ou seja, sua decisão deve ser tomada racionalmente, baseada na experiência de outras mães e no conhecimento científico dos médicos. De fato, não apenas nas propagandas, mas também em reportagens e textos especializados é possível observar a coexistência de conselhos que apelam ora para a racionalidade, ora para a intuição e o instinto da mulher-mãe. É como se o instinto materno não fosse mais considerado suficiente ou como se as mulheres tivessem perdido o contato com a sua natureza maternal e precisassem da ajuda dos especialistas para recuperá-lo.

Este trabalho apresenta uma reflexão sobre os efeitos da informação especializada na relação mãe-bebê e defende a hipótese de que, desde o início, essa relação está longe de ser apenas natural, na medida em que a espontaneidade materna traz a marca cultural das experiências vividas; dos conhecimentos acumulados; das expectativas socialmente partilhadas. Entende-se que para as mães instruídas que habitam os grandes centros urbanos, os conhecimentos especializados tendem a ser ainda mais decisivos do que os conhecimentos tradicionais ou religiosos, transmitidos de geração a geração. Isto porque, na maioria dos casos, a mulher faz o acompanhamento médico pré-natal durante toda a gestação. Chegado o momento, o parto ocorre em um hospital, assistido pelo médico, que presta também os primeiros cuidados ao recém-nascido. A mãe recebe depois o bebê pelas mãos da enfermeira, que já lhe transmite alguma informação sobre o neném, posiciona-o corretamente para mamar; ajuda a decifrar as causas do seu choro; ensina a dar o banho, a trocar a fralda, a fazer o curativo no umbigo. O primeiro contato estabelecido entre a mãe e o bebê é, portanto, medicamente regulado. Se, por um lado, os conhecimentos especializados contribuem para esclarecer uma série de dúvidas que angustiam as gestantes e mães, por outro lado é provável que também criem expectativas e mesmo medos que nem sequer chegam a ocorrer às mulheres menos informadas. E tudo isso pode vir à tona quando o bebê nasce. As mães mais bem informadas dificilmente se tranquilizam ao finalmente vê-lo e tocá-lo, mas precisam que o neonatologista venha assegurá-las de que o bebê está bem. Depois esperam ansiosas pelo resultado do "teste do pezinho", mais tarde, pelo boletim escolar. Assim, estão sempre à procura desses sinais exteriores, as avaliações dos diversos especialistas em desenvolvimento infantil, para que possam enxergar a criança diante delas.

As considerações aqui apresentadas baseiam-se no exame de 16 manuais de puericultura escritos por pediatras brasileiros e publicados entre 1919, época em que começavam a se difundir esses materiais e 1968, quando surgiu a revista Pais e Filhos, inaugurando uma nova era na difusão desses conhecimentos entre as famílias. O recurso a discursos produzidos desde o início do século XX atende ao objetivo de elaborar uma história do presente. Trata-se de reconhecer que a nossa maneira de pensar e de viver a relação mãe-bebê nada tem de natural, mas constitui o resultado de modos de pensar e organizar as experiências surgidos em tempos e espaços determinados, visando atingir objetivos específicos. Como tem sido afirmado por diversos pesquisadores que empregam o referencial teórico de Michel Foucault, os conhecimentos especializados não são, portanto, neutros ou universais, mas sim históricos e contingentes, produzidos para atender a demandas específicas. São, além disso, produtos de relações de poder que operam exclusões, ao estabelecer os parâmetros da normalidade/anormalidade, da saúde/doença e, assim, da superioridade/inferioridade. (Hultqvist; Dahlberg, 2001). Admitir que as nossas concepções e práticas não estão fundamentadas em fatos universais, mas repousam sobre contingências históricas, conhecer o contexto de emergência das nossas verdades, pode ser um convite à reflexão. Fosse outro o contexto, outras seriam as nossas convicções. Pode-se imaginar, então, modos distintos de estabelecer crenças e orientar a vida. É curioso, por exemplo, verificar que há apenas algumas décadas atrás, nos anos de 1930 e 1940, em vez de incentivar a troca afetiva entre as mães e seus bebês, os pediatras afirmavam que o bebê deveria permanecer sozinhos no berço a maior parte do tempo, saindo de lá apenas na hora das mamadas, do banho e da troca de fraldas (Gonzaga, 1935, p. 15). O doutor Vicente Baptista era um dos pediatras que condenavam as tentativas dos pais em comunicar-se com os filhos pequenos:

A criança, em seus primeiros meses, deve viver isolada, não só porque o sossego físico e espiritual contribue para o bom desenvolvimento, como porque o isolamento evita o contágio das mil e uma infecções do adulto. É preciso que os pais compreendam que o filhinho necessita de repouso e só será prejudicado com as 'festinhas' tão do nosso agrado. É mesmo pecado o nosso mau vezo de conversar com os bebês, que nada entendem e apenas desejam paz. (Baptista, 1933, p. 38).

A seguir, apresentam-se brevemente algumas características gerais dos 16 manuais de puericultura consultados. Depois disso, procura-se tecer considerações sobre a parte dos manuais referente à descrição do recém-nascido, com vistas a identificar que informações os pediatras julgavam importante transmitir às mães, e como procuravam fazê-lo.

 

Os manuais de puericultura e seus objetivos

Os principais objetivos dos manuais de puericultura examinados, segundo os seus autores, era o de divulgar os princípios da higiene infantil de modo a contribuir para a redução das elevadas taxas de mortalidade infantil e favorecer a formação de indivíduos saudáveis, em condições de contribuir para o desenvolvimento da nação. Os livros eram dirigidos prioritariamente às mães, mesmo que alguns deles pretendessem atingir também outros interessados, inclusive políticos e mesmo médicos, como era o caso de Higiene da Criança, escrito pelo doutor Waldemar Lages e publicado na Bahia:

Pretendi um trabalho que pudesse ser útil às mulheres brasileiras antes e depois do casamento, lendo como interessadas ou estudando os vários assuntos em programas escolares; pretendi que os responsáveis pelo nosso destino, ao lê-lo, meditassem com interesse nas minhas afirmativas e nas possibilidades aventadas no conteúdo desta obra; mais ainda, e pretendi ser útil aos estudiosos de um modo geral, aos médicos, citadinos ou do interior que, deste ou daquele modo, têm às vezes necessidade de repassar um assunto tão importante ou se iniciar numa senda tão valiosa qual a que dirige e representa o alicerce da nossa nacionalidade, isto é, o problema da criança. (Lages, 1941, p. I)

Dentre os 16 manuais, doze deles foram escritos com o propósito de constituírem guias maternos. Dentre esses, há um que simula as conversas entre uma futura mãe e o pediatra no consultório, cada capítulo correspondendo a uma das consultas feitas ainda durante a gestação. Outros quatro compêndios examinados foram produzidos a partir de textos redigidos inicialmente com outros objetivos. O mais antigo do conjunto, Consultas Práticas de Hygiene Infantil, escrito pelo Dr. Fernandes Figueira e publicado em 1919, reúne as respostas redigidas pelo autor a 103 consultas realizadas por carta. Apresenta-se a questão, tal como formulada para o doutor, e a seguir a resposta. Há ainda dois manuais que consistem na reprodução de palestras inicialmente proferidas pelo rádio e um que foi produzido a partir da compilação e da revisão de uma série de artigos originalmente publicados em dois jornais paulistas.

Com exceção do livro Prepara teu filho para a vida, dedicado exclusivamente ao tema da saúde mental da criança, todos os outros tratavam de temas relacionados à saúde infantil em suas dimensões física e mental, tais como: características do recém-nascido, amamentação, alimentação, banho, organização do enxoval e do quarto, passeios e vida ao ar livre, desenvolvimento físico e mental, formação de hábitos e disciplina, doenças frequentes etc. Era comum ainda que os autores se referissem a anomalias de origem hereditária ou congênita e que aconselhassem os pais a efetuarem exames pré-nupciais como forma de garantir a concepção de um bebê sadio. Uma vez constatada a gestação, orientava-se a mãe a realizar os exames pré-natais indicados. De modo que, frequentemente, os ensinamentos contidos nos guias maternos extrapolavam a puericultura. Os pediatras consideravam que começar a se preocupar com a saúde do bebê a partir do nascimento era demasiado tarde. A esse respeito, o manual ABC das Mães, do Dr. Francisco Laport, era especialmente enfático:

Devemos, de inicio, frisar o seguinte: só muito antes da criança nascer, podem os pais cooperar com sucesso para o nascimento de um bebê sadio.

Quantas vezes temos consolado mães que chorando nos procuram, trazendo uma criança fraca e doente, reconhecendo só então, serem elas as causadoras diretas de tanta desgraça! (Laport, 1941, p.7)

A ação dos médicos no campo da puericultura era movida pela convicção de que tanto a felicidade das famílias como o futuro da nação dependiam da saúde das crianças. Sendo assim, era preciso tornar as mães - responsáveis diretas por cuidar dos futuros cidadãos da pátria – suas aliadas. Por meio da escrita dos manuais, os doutores procuraram convencê-las de que a sua felicidade e a de seus filhinhos dependia da sua disposição para fazer escolhas racionais, baseadas nos conhecimentos científicos proporcionados pela eugenia, a higiene pré-natal e a puericultura. Essa orientação científica estava presente nos textos dedicados à descrição do recém-nascido normal.

 

O recém-nascido, suas partes e o seu funcionamento

À descrição do aspecto do recém-nascido costumava ser dedicado um capítulo inteiro dos manuais de puericultura. Nessa parte, os autores referiam-se ao nascimento como sendo uma brusca transição entre o ventre materno e o meio externo ameaçador, que exigia o nascituro a uma série de adaptações para poder respirar, manter a temperatura corporal e alimentar-se por si próprio. O mundo em que deveria sobreviver o novo indivíduo era perigoso e apenas por meio da solicitude dos adultos à sua volta, poderia a criança superar as primeiras horas e os primeiros dias de vida, em que era particularmente vulnerável às doenças e às infecções.

Vivendo comodamente uma vida parasitária até então, o pequenino ser vem à luz mal habituado à vida exterior. Após o parto, sofre o organismo uma transformação radical.

O recém-nascido não tem, como os pequeninos animais, desde as primeiras horas, meios que lhe permitam viver por si mesmo. Muito ao contrário, ele tem que lutar com uma série de perigos que o ameaçam. (Laport, 1941, p. 9)

Enfatizava-se, portanto, a extrema dependência e fragilidade da criança ao nascer, e, como consequência, a necessidade imperiosa da dedicação dos pais e do acompanhamento médico no período inicial da vida: "São-lhe indispensáveis os cuidados e a proteção que só a dedicação e o amor dos pais, secundados pela fiscalização de um profissional bem avisado lhes podem garantir." (idem). Já estava bem presente, portanto, na década de 1940, a ideia de que, além de dedicação e amor, era preciso conhecimento especializado para propiciar ao bebê um bom início. Naquela época, contudo, a justificativa mais recorrente para a necessidade desses conhecimentos era a debilidade da criança ao nascer, enquanto atualmente fala-se na complexidade da família, do ambiente e da sociedade, como se pode observar no texto de Schvartsman, citado anteriormente.

A seguir, os autores referiam-se ao aspecto do bebê recém-nascido, geralmente descrito como sendo feio, esquisito e frágil. Vicente Baptista, autor do manual Higiene e Alimentação da Criança, afirmava: "Em verdade, o recém-nascido, quer dizer o bebê, em seu primeiro mês de vida é uma feiúra, principalmente na primeira semana" (Baptista, 1933, p. 45-46). Recorrendo não apenas a palavras, mas também a fotografias e outras ilustrações, mostrava-se que os recém-nascidos estavam muito longe de se parecer com os adultos ou mesmo com os bebês de seis meses ou mais. As proporções do corpo; o aspecto da pele; a deformação da cabeça em decorrência da passagem pelo canal do parto; a presença das fontanelas; o milium facial; o inchaço das mamas ou dos genitais, tudo isso era apresentado como sendo particularidades do nascituro. O recém-nascido parecia, assim, um bebê anormal, se bem que suas imperfeições eram passageiras e, embora pudessem ser inquietantes para a jovem mãe, não preocupavam os pediatras experientes. O Dr. Ewaldo Mário Russo, por exemplo, em sua palestra intitulada "O recém-nascido e suas reações habituais", elaborava a seguinte descrição:

A criança ao nascer tem uma aparência feia. O rosto é vermelho e inchado, sua pele tem uma cor rósea viva e é recoberta de finos pêlos, denominados penugem. Durante os primeiros dias de vida, a pele adquire uma tonalidade amarelada, devido a uma icterícia que se desenvolve, normalmente. Por esse motivo é denominada icterícia fisiológica do recém-nascido. A pele entra logo em descamação, continuando assim durante todo o primeiro mês de vida. Também a penugem desaparece durante o primeiro mês. Às vezes notam-se pequenas elevações tendo seu centro esbranquiçado, semelhantes aos chamados cravos existentes durante a época da puberdade, principalmente na pele do rosto. Sua cabeça é grande e desproporcional ao tamanho do corpo. (Russo, s.d., p. 165-166)

A descrição, nesse tom didático, transformava o recém-nascido num objeto a ser observado e conhecido cientificamente, cuja descrição se fazia por meio de uma nomenclatura especializada, que a mãe era convidada a aprender. Informava-se a seguir o peso e o comprimento do bebê normal e explicava-se que o peso diminuía um pouco logo após o nascimento, antes de voltar a aumentar progressivamente. Frequentemente nessa parte incluía-se uma tabela que registrava o peso e a altura de meninos e de meninas, mês a mês. Depois das informações sobre o aspecto geral e as medidas normais, passava-se a um exame mais minucioso do bebê, focalizando-se cada parte do corpo e descrevendo-se suas características e funções. Também essa análise pretendia demonstrar que o recém-nascido realizava de modo imperfeito ou incompleto suas funções, não estando ainda completamente adaptado à vida.

Contam-se 30 a 60 atos respiratórios por minuto, quando no adulto são apenas 16 a 18; além disso, influencia-se facilmente o ritmo respiratório pelo sono, pelo choro, pela agitação. A respiração, feita de preponderância à custa do músculo diafragma, portanto de tipo abdominal, é superficial e com ritmo irregular. (Almeida Junior; Mursa, 1938, p. 29)

Do mesmo modo eram descritos os sentidos da criança recém-nascida, que, segundo os autores, vinha ao mundo incapaz de estabelecer contato com as pessoas ou o ambiente por meio da visão, da audição e do olfato. Explicava-se que apenas o tato e o paladar estavam presentes desde o início, sendo o paladar o sentido mais eficiente, aquele que habilitava o bebê a reconhecer o sabor do leite materno, o único alimento visto como apropriado para o bebê. Em O Livro das Mamães, Almeida Junior e Mário Mursa declaravam que "O sentido da audição é rudimentar. O do olfato tardiamente aparece; mas o do gosto existe desde logo" (1938, p. 32). Segundo o Dr. Octavio Gonzaga,

No recemnascido não existe o olhar activo, primeiro por falta de interesse e de atenção, segundo porque os mecanismos musculares dos olhos não estão ainda perfeitos. Falta-lhes coordenação dos movimentos e revela-se deficiência na capacidade de acomodação. O primeiro olhar não é mais do que uma divagação; na quinta semana aparece a fixação dos objetos e aos dois meses a direção voluntária do olhar e na qual a criança procura projetar os objetos no seu campo visual. (1935, p. 18)

Diante do exposto, pode-se indagar: o que restava de humano num recém-nascido assim descrito – o aspecto geral, as medidas, as partes, o funcionamento precário? Em que bases uma mãe instruída por esses manuais poderia iniciar uma relação pessoal com o seu bebê? Como ver ali o menino parecido com o pai? Como não se dar conta do aspecto estranho, feio e frágil do corpinho, medindo aproximadamente 50 cm e pesando 3,5kg? A leitura dos manuais parece indicar que justamente o que não se esperava é que as mães buscassem tão cedo estabelecer uma relação pessoal com o filho. Na visão objetiva do pediatra, o recém-nascido não era ainda reconhecível como um novo membro da família, mas pertencia a uma categoria à parte:

É um pedacinho de gente do sexo masculino. As titias já o acharam o retrato do pai, em oposição à vovó que descobriu nele o jeito da mamãe. Enquanto eu... não o acho parecido nem com um, nem com outro. A meu ver, um recém-nascido só se parece... com outro recém-nascido (grifos do autor) (Sampaio, 1937, p. 3).

Nesse trecho, embora comentasse com benevolência a tentativa dos parentes de situar o bebê na linhagem familiar, o pediatra mostrava não tomá-la a sério ao dizer que, na sua percepção, o recém-nascido era ainda apenas um recém-nascido. Em várias passagens desse e outros volumes, observa-se ainda que os pediatras aconselhavam as mães a evitar, combater mesmo, todo tipo de aproximação social do novo bebê.

Entre nós constitui hábito anti-higiênico o fato de todos os parentes e conhecidos irem visitar o recém-nascido, segurando-o e, às vezes, beijando-o. Quem tiver amor ao seu filho deve proibir terminantemente que se lhe toque, seja quem for. A visita só poderá contemplar o bebê, de longe (Fortes, 1940, p. 32).

Vinte e oito anos depois, a recomendação médica permanecia a mesma, como se pode ver no trecho a seguir:

O recém-nascido deve receber poucas visitas. O ideal seria que não recebesse nenhuma visita, porque cada pessoa pode estar incubando alguma doença infecciosa sem o saber e já ser contagiante. Por outro lado, o recém-nascido não faz nenhuma questão de ser visitado, mesmo porque, quase sempre, está dormindo (grifo dos autores) (Alcântara; Marcondes; Machado, 1968, p. 89).

No início, qualquer tipo de contato com a criança só se justificava para atender a demandas de alimentação e limpeza. O infans não era ainda um interlocutor, mas um organismo que, segundo os médicos, tendia a desenvolver-se melhor, em suas dimensões física e psicológica, em isolamento. Mesmo à mãe era vedado o acesso ao bebê por mais tempo do que o exigido para amamentar, mudar as fraldas e dar o banho. A própria amamentação não se prolongaria por mais tempo do que o necessário para satisfazer as necessidades nutricionais do bebê, de modo que os costumes maternos de dar o peito para acalmar um bebê chorão ou deixar o bebê ao seio por mais tempo do que o necessário, eram vistos como péssimos hábitos, perigosos não apenas para a saúde do sistema digestivo, como também do sistema nervoso da criança, que se acostumava assim a ser exigente e indisciplinada.

O intervalo entre as mamadas deverá ser regular. O hábito de dar o peito quando a criança chora é, além de incômodo, errado. É indispensável dar tempo para que o estômago digira o leite recebido e se esvazie, antes de receber nova dose de leite; além disso, dando o peito com intervalos regulares, a criança poderá dormir enquanto faz a digestão do alimento recebido e assim descansará, evitando dispersar energias, e dará sossego à mãe (Piza, 1939, p. 15).

É de se perguntar se as informações e instruções contidas nos manuais de puericultura contribuíam para tornar mais confiantes as mães ou, pelo contrário, concorriam para torná-las cada vez mais inseguras, vendo perigo em tudo: no ambiente, nos familiares, até mesmo em si próprias. Uma vez concluindo que podia ser perigosa à saúde e ao desenvolvimento de seu filho, a leitora estava pronta para submeter-se de bom grado às exigências médicas e até para solicitá-las ao pediatra de sua confiança. A mãe passaria a pensar bem antes de agir: ao pegar no colo o bebê; ao posicioná-lo no berço para dormir; ao preparar o banho; ao dar de mamar. E esse pensar passaria a ser, cada vez mais, uma consulta mental ao doutor ou ao livro, com o objetivo de responder a questões como essas: qual a opção mais segura? O que contribuirá mais para o desenvolvimento do bebê? De que modo estarei educando melhor?

 

Considerações finais

Os manuais de puericultura continuam a ser produzidos e provavelmente são mais consultados atualmente do que o foram no século passado. Os conhecimentos especializados sobre a infância multiplicaram-se, bem como os materiais disponíveis, já mencionados. Hoje em dia busca-se caracterizar o recém-nascido como uma pessoa em desenvolvimento, já em condições de se relacionar com a mãe. À medida em que o ultrassom tornou possível conhecer características do bebê ainda no útero, passou-se a afirmar que também o bebê começa a conhecer a mãe desde a vida intra-uterina. O bebê ainda não nasceu, mas já é menino ou menina, tem nome e um comportamento identificável graças à tecnologia do ultrassom, que permite observar se o feto é agitado ou calmo, se chupa o dedo etc. Ao contrário do período em que foram publicados os manuais examinados nesse texto, já não se considera perigoso o contato físico entre o bebê e os adultos que lhe são próximos, geralmente os pais e os avós. Atualmente, e graças à produção de conhecimentos especializados no campo da psicanálise, o que se considera perigoso para a formação do sujeito é justamente ele ser tratado como um organismo ou uma máquina, com quem não se fala e para quem são providos apenas cuidados físicos. Incentiva-se a mãe a acariciar o bebê e a conversar com ele desde o início, ainda durante a gestação. E, assim, o que ontem era considerado desejável, hoje se tornou perigoso, o que no passado era considerado ameaçador, hoje é visto como necessário. Mas nem tudo se transformou. Permanece a percepção de que é preciso aprender sobre o desenvolvimento infantil e seguir as orientações dos especialistas para compreender o próprio filho, atender às suas necessidades e ser uma boa mãe.

 

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