7Autoridade e amor: algumas reflexões sobre a transmissão de saberEfeitos terapêuticos do discurso escolar author indexsubject indexsearch form
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 ISBN 978-85-60944-12-5

An 7 Col. LEPSI IP/FE-USP 2009

 

8/11 - COLÓQUIO - COMUNICAÇÕES LIVRES

 

Articulações sobre o tratar e o educar na obra freudiana

 

 

Camille Apolinário Gavioli

 

 


RESUMO

Esse trabalho pretende discutir o tratar e o educar na obra freudiana. O interesse pelo tema surge do trabalho desenvolvido na Associação Lugar de Vida - Centro de Educação Terapêutica que é uma instituição que trabalha na intersecção Psicanálise e Educação. Nesse sentido, o nome da instituição, por conjugar o terapêutico e o educativo, revela alguma proximidade entre os termos e é esse eixo da proximidade que, particularmente, nos interessa.
Em Freud, vemos uma longa discussão a respeito do tratar em psicanálise e sua relação com a educação. Da mesma maneira, são muitos os autores pós-freudianos que até os dias de hoje debatem essa intersecção. São muitos os educadores e psicanalistas que constantemente questionam a especificidade do tratar e do educar, articulação especialmente problematizada com a inclusão escolar. Isso demonstra a importância do tema, bem como a pertinência de um estudo mais aprofundado do que está em jogo aí. Paralelamente a isso, soa intrigante o fato de haver tantas produções que abordam a intersecção entre os campos sublinhando a diferença entre eles em detrimento da proximidade. Nesse sentido, poderíamos pensar que existe algo da ordem de um mal-estar sobre o qual a psicanálise precisa se pronunciar.
Tomamos então o eixo da proximidade entre tratar e educar para debater essa relação. Que laço a proximidade nos permite vislumbrar?

Palavras-chave: tratar, educar, proximidade.


 

 

O presente trabalho tem como propósito discutir a relação entre tratar e educar na obra freudiana considerando a proximidade entre os campos. Para isso, tomaremos alguns trechos no texto de Freud de modo que seja possível ilustrar como essa proximidade ocorre. Propor uma discussão por esta via é importante na medida em que as publicações que versam sobre a relação psicanálise e educação sublinham a diferença em detrimento da proximidade entre os campos. Por que falar tanto sobre a distinção? Essa questão nos pareceu sintomáticai.

Falar em proximidade implica considerar a existência de uma distinção conceitual clara entre os termos. Contudo, uma atenta leitura do texto freudiano, nos permite ver que essa distinção nem sempre foi tão clara assimii.

Para ajudar a debater o assunto, poderíamos caracterizar a relação entre tratar e educar em termos de diferentes tipos de laços. Ou seja, um primeiro tempo de indistinção conceitual, definido em termos de uma aliança pela via da complementaridade e, um segundo momento, onde o laço se faz a partir de uma diferença entre tratar e educar mais estruturada.

Interessa dizer que na discussão sobre os diferentes laços, tomamos como eixo a proximidade, a qual é diferentemente qualificada, conforme os dois momentos que propomos. Também é importante mencionar que embora falemos em dois tipos de enlace, trata-se de uma laboriosa mudança paulatinamente construída. Não há um ponto isolado na obra que nos permita falar 'no' momento de virada, o que se constata é que há momentos.

Para dar prosseguimento ao presente texto, o fio histórico parece interessante na medida em que por esta via é possível trazer alguns pontos que demonstram como chegamos à idéia de diferentes laços.

Primeiramente, é preciso lembrar, que historicamente a psicanálise é uma teoria relativamente nova e surge da estreita interlocução com outras áreas do conhecimento. Ou seja, o tratar em psicanálise vai se construindo a partir do tratar em medicina e de uma articulação com o educar e, é esta última o objeto de nosso interesse.

A teoria psicanalítica – sua conceituação e técnica – está permanentemente em construção, razão pela qual a psicanálise e sua prática clínica revelam, especialmente no início das proposições de Freud, uma dependência maior em relação a outros saberes. Talvez seja mais adequado dizer que essa dependência inicial e constituinte é plenamente justificável como uma condição que o nascimento de uma teoria implica, e que irá conferir à psicanálise sua especificidade e também a proximidade em relação aos saberes em que se apóia para constituir-se.

Paralelamente a essa perspectiva, é preciso lembrar que à medida que o tratar vai sofrendo reformulações ao longo da obra freudiana, sua relação com o educar também passa por alterações.

Acompanhando o texto freudiano, observamos que o tratar, em alguns deles, se define por acepções próprias ao educar, o que leva a interpretar que a relação entre tratar e educar caracterizou-se inicialmente pela complementaridade. O tratar tomava o educar numa relação de sinonímia. Nesse sentido, vemos que o tratar vai sendo definido em estreita ligação com o educar e seu fim. Temos então, um primeiro laço que se dá pela via da complementaridade. Em outras palavras, o período de indistinção conceitual clara – aqui, essa indistinção é considerada desde o ponto de vista do tratar em psicanálise.

Nos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905b) e em Uma recordação de infância de Leonardo da Vinci (1910b), por exemplo, Freud se apóia no educar para falar do tratar, que muitas vezes é expresso em termos educativos. Nesse sentido, alguns autores importantes como Millot, no clássico livro Freud Antipedagogo (2001), afirmam que Freud descreve o tratamento analítico como uma reeducação.

Em 1905a, no texto Sobre a psicoterapia, Freud fala em correção e eliminação quando descreve o tratamento. Falar em corrigir e eliminar remete à idéia do educar, na medida em que educar é de alguma maneira, conduzir a determinado caminho previamente estabelecido ou de alguma forma baseado num consenso. Ou seja, à educação parece ser atribuído um sentido de adestramento, de adequação, e essa é apenas uma das conotações possíveis para o ato de educar.

Freud (1905a) também coloca que no trabalho de tornar o inconsciente consciente, que é como ele descreve então o tratamento analítico, o analista realiza um trabalho educativo. Ou, ainda, aparece a idéia do tratamento analítico como um aperfeiçoamento educativo (1910a).

O fato de Freud apoiar-se no educar para definir o tratar parece também indicativo de que, nesse gesto, Freud revela mais do que incipiência da psicanálise, dado o momento de construção da própria teoria psicanalítica, para definir o tratamento e, assim, construir uma diferença. Nesse momento, Freud define um tipo de relação da psicanálise com a educação. Mas o que isso quer dizer?

Freud não está discutindo a educação como ofício; dirige-se à educação justamente porque seu entendimento, em um dado momento de suas formulações, é o de que ela pode ajudar na prevenção de doenças nervosas, o que é uma preocupação de Freud e, portanto, da psicanálise.

Lembremos que Freud discute a educação a partir do interesse desse campo para a psicanálise, e é por isso que sua visão da educação é parcial. Cabe dizer também que Freud nunca se propôs a fazer um tratado sobre a educação, seu interesse sempre foi bastante específico. Aliás, na intersecção com outros campos, é próprio da psicanálise não se propor a construir um discurso, ou um tratado, ao contrário, seu propósito é desconstruir, questionar e subverter o instituído.

Freud está empenhado em expandir a psicanálise, buscando conhecimentos que lhe ensinem sobre o psiquismo. Esse é um dos motivos que leva Freud a viajar a outras áreas do conhecimento e a educação figura como uma entre outras mais. Nesse sentido, temos a religião, a biologia e a arte, para citar algumas. O que propomos é que a existência da proximidade entre tratar e educar marca, de alguma maneira, a especificidade dessa relação.

Considerando a postura freudiana, vale dizer que sua abordagem se caracteriza pelo rigor, pelo caráter inconclusivo e interrogativo, tal como revelam os títulos de seus artigos. Entre eles temos: Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise (1912), Observações sobre o amor transferencial (1915), Algumas reflexões sobre a psicologia escolar (1914), entre outros. Nesse sentido, destacamos os termos 'recomendações', 'observações' e 'algumas reflexões'.

Dito isto, poderíamos nos deter na aproximação entre tratar e educar, pela tomada do educar como instrumento do tratar. Ou seja, por um longo período, a educação acaba reduzida a um fim instrumental no campo do tratamento analítico e, em certa medida, isso acaba descaracterizando-a - quando pensamos em sua relação com a psicanálise. Importa mencionar que o tempo ao qual nos referimos não se restringe ao início das formulações freudianas. No texto de Freud, esse período fica mais evidente quando o tratamento analítico está atrelado à profilaxia, como veremos logo adiante. Também é preciso dizer que embora seja possível observar a mudança no laço entre tratar e educar na obra freudiana, há autores pós-freudianos que persistem na interpretação da relação entre essas duas posições baseada nesse laço inicial.

É em termos do fim profilático, tão importante durante um período no tratamento, que a proximidade se faz notar. Ou seja, se, num período, o tratar tem como objetivo a profilaxia, o educar, como atributo do tratar, acaba tendo o mesmo fim.

Em determinado momento, a educação cumpre um papel benéfico e de acordo com o esperado do ponto de vista do social e do indivíduo, mas essa compreensão não perdura. Logo, Freud começa a questionar os limites da empreitada educativa. Isso se expressa, especialmente, através das críticas ao papel excessivamente repressor da educação e, também, mas em menor grau – ao menos na época dessa discussão –, em termos do alcance profilático da educação. Aqui vemos a educação mudar de papel: se num momento ela previne a neurose; em outro, ela é sua causa.

O questionamento a respeito do alcance e, conseqüentemente, do interesse pela educação se dá a partir de outro questionamento, a saber, do tratamento. Freud percebe que é impossível a harmonia dos instintos sexuais com o social, e encontra na sublimação uma saída, a qual é viabilizada pela educação. Nesse movimento, a educação passa do lugar de geradora de neurose, a ser o meio através do qual o sujeito pode encontrar uma solução para o conflito psíquico.

Há uma expressão que aparece em alguns textos de Freud e que, a nosso ver, sinaliza uma virada em termos do laço entre tratar e educar – a pós-educação – e é nesse sentido, que interessa trazê-la. Ou seja, a partir do termo 'pós-educação' podemos situar uma proximidade diferentemente qualificada.

Vejamos então alguns fragmentos em que Freud escreve sobre o tratamento analítico e faz uso dessa expressão para defini-lo.

Portanto, de modo muito geral, os senhores podem conceber o tratamento psicanalítico como essa espécie de pós-educação para superar as resistências internas. Mas em nenhum ponto essa pós-educação é mais necessária, nos doentes nervosos, do que no tocante ao elemento anímico de sua vida sexual. É que em parte alguma a cultura e a educação causaram danos tão grandes quanto justamente aí, e é também aí, como lhes mostrará a experiência, que se encontrarão as etiologias das neuroses passíveis de ser dominadas; quanto ao outro elemento etiológico, a contribuição constitucional, ele nos é dado como algo inalterável. (Freud, 1905a, p. 252, grifo do autor)

O trecho merece algumas reflexões. A primeira, quanto aos danos que a educação causa, e a segunda, quanto ao termo pós-educação.

Quando Freud fala que a educação causa danos e propõe uma pós-educação, poderíamos pensar que o manejo a ser feito é da ordem e do campo da educação, e Freud está discutindo o tratamento. O educar é aqui um atributo do tratar. Como então caracterizar essa educação e a assim denominada pós-educação?

Trata-se de uma intervenção cujos efeitos esperados parecem ser superiores em termos de qualidade, já que a educação teria causado muitos danos. Essa pós-educação remete à idéia de dominar as resistências internas, de ser eficaz no sentido de eliminá-las. Parece que, em certa medida, a educação falhou e agora haverá a reparação ainda no campo educativo, que acaba se confundindo com o campo do tratamento. Retomemos nossa pergunta: que concepção de educação é essa?

Poderíamos dizer que o ato de educar aqui é concebido na perspectiva idealizante, sem brechas para limites ou falhas como condição inerente à sua atuação. A educação acaba descaracterizada, aproximando-se mais de um ideal pedagógico. Educar é reprimir, ou, dito de outra maneira, é promover o recalque. E isso pode ser dito a partir de um ponto de vista psicanalítico. O educador não visa o recalque no ato educativo, o recalque é um dos efeitos da prática educativa. A repressão sempre vai ocorrer e isso em si não caracteriza o educar como bom ou ruim. Entretanto, Freud acaba considerando a educação nesses termos, boa ou ruim, conforme seus efeitos em relação ao propósito almejado – que, nesse momento, é preciso lembrar, é a profilaxia.

O que se espera, então, é que o educar suponha o fracasso, do contrário, estaríamos na pedagogia ou na educação enlouquecedora de Schreber, como Mannoni discute no livro Educação Impossível. "Sabe-se que, em torno da idéia de perfeição, desenvolve-se com freqüência um monumento teórico que oculta, sob as roupagens da ciência, um método que se pode classificar de delirante" (Mannoni,1988, p. 47, grifo do autor). É a propósito de uma reflexão crítica sobre a pedagogia – aqui entendida como o monumento teórico e científico –, e a idéia de perfeição sobre a qual ela se sustenta que Mannoni escreve. Para a autora, toda educação científica é enlouquecedora. Sua crítica refere-se à crença de que a educação pode ser técnica e cientificamente operada.

Feitas essas considerações, retomemos o texto freudiano para dele extrair outros elementos e prosseguir nesta discussão.

Em 1916, vemos persistir a definição do tratamento analítico como um tipo de educação, aqui denominada 'educação posterior'. Prevalece uma certa indiferenciação entre tratar e educar, bem como a noção do educar como atributo do tratar.

Nesse trabalho de educação posterior, [o analista] provavelmente nada mais faz do que repetir o processo que, de início, tornou possível qualquer espécie de educação. Lado a lado com as exigências da vida, o amor é o grande educador, e é pelo amor daqueles que se encontram mais próximos dele que o ser humano incompleto é induzido a respeitar os ditames da necessidade e a poupar-se do castigo que sobrevém a qualquer infração dos mesmos. (Freud, 1916, p. 326)

Anos mais tarde, em outro texto, Freud descreve a atuação do tratamento analítico como uma segunda educação, caracterizando-o, mais uma vez, a partir de atributos da prática educativa. "Dessa forma, o tratamento analítico atua como uma segunda educação do adulto, como um corretivo da sua educação enquanto criança" (Freud, 1926, p. 258).

São muitos os textos em que o tratamento analítico é expresso em termos educativos, e não é possível, pelo propósito deste trabalho, discuti-los todos aqui. Os recortes trazidos revelam um tipo de laço entre tratar e educar, definindo assim um tipo de proximidade. Ou seja, tais trechos demonstram uma certa indistinção entre essas duas posições. Assim, acompanhamos o interesse específico de Freud pelo educar, e o caráter complementar em que o educar é tomado no campo do tratar.

No momento, interessa trazer outros trechos em que Freud fala em pós-educação, mas agora a expressão tem uma outra conotação. Vejamos esse outro sentido.

Tomemos alguns trechos do texto Introdução a 'The Psycho-analitic Method', de Pfister (1913b), e depois ao Prefácio a 'Juventude desorientada', de Aichhorn (1925), que retratam momentos em que Freud faz uso da expressão pós-educação. Embora, em termos de data, trate-se de períodos distintos e de variações significativas em alguns pontos, ainda assim é possível ver um fio comum a partir da expressão pós-educação.

Em Introdução a The Psycho–analitic Method, de Pfister, vemos uma distinção entre tratar e educar e a proximidade expressa em termos do fim profilático. É especialmente interessante o fato de que Freud atribui à psicoterapia psicanalítica o poder de desfazer algo que a educação não pôde prevenir, na medida em que nos faz pensar em termos de um antes e de um depois, que o termo pós vem nomear. Vale lembrar que essa discussão prossegue paralelamente ao tema da aplicação da psicanálise – conforme atestam textos contemporâneos – e acerca do interesse da psicanálise pelas ciências não-médicas. "A educação constitui uma profilaxia, que se destina a prevenir ambos os resultados — tanto a neurose quanto a perversão; a psicoterapia procura desfazer o menos estável dos dois resultados a instituir uma espécie de pós-educação" (Freud, 1913a, p.356).

Freud fala que a terapêutica entra em cena depois de uma ação educativa; condição (poderíamos pensar) que o leva a atribuir ao tratamento analítico a expressão, pós-educação. A psicoterapia entra para desfazer um 'resultado indesejável'.

Uma possível acepção da expressão pós-educação, nesse contexto, consiste em uma noção de educação como algo consumado e, por isso, o tratamento analítico se caracterizaria como pós-educação, como uma intervenção posterior à educação, que já teria cumprido seu papel. Remete à idéia de que há uma pré-condição ao tratamento analítico, e que faz referência ao que se passa do lado do paciente. Nesse sentido, o tratamento ocorre num segundo momento ou após essa primeira etapa educativa ter sido consumada; dessa maneira, o tratamento parece estar vinculado a uma intervenção reparadora.

Caberia então supor que a intervenção leva o nome de pós-educação, mas sua acepção está ligada não mais ao campo da educação – conforme tratado anteriormente –, mas ao do tratamento. O educar parece tomado como atributo do tratar, mas diferentemente de outros momentos em que seu uso se prestava a um fim próprio ao campo educativo.

Nesse sentido, vale relembrar a importância da profilaxia no tratamento analítico e o grande peso atribuído à educação. O que era expresso através da suposição de um mesmo fim profilático para a educação, na medida em que Freud toma o educar para pensar o tratar.

Pois bem, poderíamos pensar que há um primeiro momento em termos da constituição subjetiva, que poderia ser caracterizado pela operação do recalque. Pensando em termos do desenvolvimento, também é possível concluir que se definiria como primeiro, uma vez que ocorre no período da infância, ou ainda, em um sujeito que teve uma educação primeira, a qual, por sua vez, pode ser entendida como o que possibilita às crianças serem civilizadas e dirigirem suas moções sexuais para outros fins que não a atividade sexual. A psicoterapia pode entrar em ação posteriormente, para 'desfazer' o que a educação não pôde prevenir. Aqui poderíamos pensar, analogamente, na idéia que Freud introduz com o termo Nachträglichkeit, traduzido para o português como a posteriori. Ou seja, em um processo a partir do qual surge uma nova significação de um contexto histórico e subjetivoiii.

Há um outro trecho que sustenta o sentido proposto para o tratamento psicanalítico como sendo uma intervenção posterior à educativa.

A educação e a terapêutica acham-se em relação atribuível, uma com a outra. A educação procura garantir que algumas das disposições [inatas] da criança não causem qualquer prejuízo ao indivíduo ou à sociedade. A terapêutica entra em ação se essas mesmas disposições já conduziram ao resultado não desejado dos sintomas patológicos. (Freud, 1913a, p. 355)

Freud fala da especificidade da educação e da terapêutica, do trabalho do educador e do médico – referindo-se ao analista –, o qual lida com estruturas já rígidas, enquanto o primeiro parece lidar com um material ainda intocado, caracterizando assim a precocidade e a anterioridade da intervenção educativa em relação à psicanalítica.

Vemos assim demonstrado o estabelecimento de uma distinção conceitual mais clara na relação entre tratar e educar. Ou seja, o tratar já guarda uma especificidade maior em termos conceituais e clínicos e assim não depende tanto do arcabouço conceitual do educar para definir-se. Aqui a proximidade pode ser vista em termos de um antes e um depois.

No prefácio ao livro de Aichhorn, Freud (1925) fala na educação como um trabalho 'sui generis', e que "[...] não deve ser confundido com a influência psicanalítica e não pode ser substituído por ela" (p. 308) e diz que o objetivo do trabalho da educação "[...] é orientar e assistir as crianças em seu caminho para diante e protegê-las de se extraviarem" (p. 307). Já a análise, define-a segundo algumas precondições, que nos levam novamente ao sentido proposto para o tratamento analítico de uma 'pós-educação' – ou seja, quando algo já se constituiu a partir do trabalho da educação e que, embora leve no nome o termo educação, indica apenas que o tratamento acontece após a instalação do que é do campo educativo. "Não devemos deixar-nos desorientar pela afirmação – incidentalmente uma afirmação perfeitamente verídica – de que a psicanálise de um neurótico adulto é equivalente a uma pós-educação" (Freud, 1925, p. 308).

Aqui Freud escreve sobre a especificidade do tratamento analítico tomando como referencia a expressão pós-educação, ou seja, há uma mudança no sentido conferido ao tratamento analítico.

A partir da discussão em torno da pós-educação, Freud vai se questionando a respeito daqueles que se ocupam das práticas educativa e terapêutica. Freud anuncia uma parceria entre tratar e educar.

Esse debate estende-se para a questão do exercício da psicanálise por profissionais não-médicos. Ao considerar que o estudo e a formação em psicanálise podem tornar um não-médico analista, Freud descarta de vez a perspectiva de que a proximidade do tratar e do educar aconteça pela união numa só figura do analista e do educador, idéia que foi aventada a partir do caso Hans.

Há vários destinos sugeridos à psicanálise a partir do tema da aplicação. Freud fala em uso dos conhecimentos da técnica psicanalítica quando sugere a formação psicanalítica, e em uso dos conhecimentos teóricos quando propõe que os educadores os tomem para melhor exercerem a tarefa educativa. Desse modo, observamos que o fim da psicanálise não se limita ao fim profilático ou ao tratamento analítico. A proximidade se caracteriza nesse contexto pela colaboração entre o analista e o educador, a partir de então considerados responsáveis, respectivamente, pelo tratamento e pela educação.

Freud fala ainda em análise do educador e com essa proposição ressitua o lugar do inconsciente. Com isso, a dimensão do imprevisível e do incontrolável podem – ao entrar em cena na discussão pela realocação da importância do inconsciente – ser consideradas na transmissão que ocorre no ato educativo.

A introdução do inconsciente nos conduz à questão dos limites e do impossível. Ou seja, nossa submissão ao inconsciente, àquilo que foge ao nosso domínio, e que é condição inerente ao ser humano, faz Freud considerar o limite no alcance dos resultados desejados e, assim, o impossível no tratamento.

No prefácio à obra de Aichhorn (1925), Freud alinha junto ao governar e ao educar, a partir da proposição kantiana da 'sociabilidade insociável' do homemiv, a definição de profissão impossível para a psicanálise. Nesse gesto, vemos a proximidade entre tratar e educar marcadas pelo impossível.

A proximidade pelo eixo do impossível, ao contrário da idéia que o próprio termo poderia remeter - ou seja, o que não é possível ou a paralização - permite uma série de outras formulações, conforme discussão proposta por alguns autores (Voltolini, 2006; Kupfer, 1989). Aqui, o impossível é pensado em termos de um mal-estar estrutural, por isso inevitável, e não apenas fruto de contingências de determinado momento. Isso, por sua vez, não significa pensar em termos de tarefas inexeqüíveis. Ao contrário, ressaltamos a perspectiva de criação, de invenção, que a impossibilidade requer frente à inadequação inerente à condição de sermos sujeitos desejantes, ou, em outras palavras, submissos ao inconsciente.

Não é nosso propósito discorrer sobre essas questões aqui, contudo, a perspectiva de criação que o impossível implica indica uma via interessante para prosseguir em estudos que abordem a relação entre tratar e educar. Nesse sentido, parece importante apontar esse aspecto antes de concluir.

A título de conclusão, interessa dizer que em nossa pesquisa, tomamos o fio histórico para articular a construção da especificidade do tratar paralelamente a maneira em que o educar entra nessa relação, mostrando que à medida que a psicanálise conta com um arcabouço teórico e conceitual próprios a relação com a educação pode ser entendida diferentemente.

Foi nosso propósito apresentar alguns recortes do texto de Freud que pudessem promover uma reflexão crítica a partir de uma perspectiva pouco abordada, a da proximidade. Procuramos demonstrar também que o laço entre tratar e educar acontece devido à proximidade entre essas duas posições e que há diversas maneiras dessa articulação ser feita. Nesse sentido, apontamos que há uma persistência na interpretação da relação psicanálise e educação baseada no laço inicial. Ou seja, fazer esse percurso, permitiu constatar que há conseqüências na maneira em que essa relação se deu inicialmente e que essa relação pode ser revista desde outras perspectivas.

 

REFERENCIAS

FREUD, S. (1905a[1904]) Sobre a psicoterapia. In: Edição Standard Brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Tradução sob a direção de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1969, v. VII. p. 241-254.

_______. (1905b) Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. In: Edição Standard Brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Tradução sob a direção de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1969, v. VII, p.128- 231.

_______. (1910a[1909]) Cinco lições sobre a psicanálise. In: Edição Standard Brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Tradução sob a direção de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1969, v. XI.

_______. (1910b) Uma recordação de infância de Leonardo da Vinci. In: Edição Standard Brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Tradução sob a direção de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1969, v. XI.

_______. (1912) Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise. In: Edição Standard Brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Tradução sob a direção de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1969, v. XII, p. 125-133.

_______. (1913a) O interesse científico da psicanálise. In: Edição Standard Brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Tradução sob a direção de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1969, v. XIII, p. 169-192.

_______. (1913b) Introdução a 'The Psycho-Analytic method', de Pfister. In: Edição Standard Brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Tradução sob a direção de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1969, v. XII. p. 355-357.

_______. (1914) Algumas reflexões sobre a psicologia do escolar. In: Edição Standard Brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Tradução sob a direção de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1969, v. XIII, p. 247-250.

_______. (1915[1914]) Observações sobre o amor transferencial. In: Edição Standard Brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Tradução sob a direção de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1969, v. XII, p. 177-188.

_______. (1916) Alguns tipos de caráter encontrados no trabalho psicanalítico. In: Edição Standard Brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Tradução sob a direção de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1969, v. XIV, p. 325-348.

_______. (1925) Prefácio a 'Juventude Desorientada', de Aichhorn. In: Edição Standard Brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Tradução sob a direção de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1969, v. XIX, p. 307-308.

_______. (1926[1925]) Psicanálise. In: Edição Standard Brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Tradução sob a direção de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1969, v. XX, p.253-259.

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KANT, I. (1784) Idéia de uma História Universal de um ponto de vista cosmopolita. Organização de Ricardo Ribeiro Terra e tradução de Rodrigo Naves e Ricardo R. Terra. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

KUPFER, M. C. M. Freud e a educação: o mestre do impossível São Paulo: Scipione, 1989.

MANNONI, M. Educação Impossível. Trad. Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: F. Alves, 1988.

MILLOT, C. Freud antipedagogo. Trad. Ari Roitman. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.

VOLTOLINI, R. A educação como "fato inconveniente" para a psicanálise. In: Psicanálise, Educação e Transmissão, 6., 2006, São Paulo. Anais eletrônicos... Disponível em: <http://www.proceedings.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=MSC0000000032007000100006&lng=pt&nrm=abn>. Acesso em: 08 Out. 2008.

 

NOTA

i Para um maior aprofundamento nesse debate consultar Gavioli, C. A. Sobre laços entre tratar e educar: uma discussão a respeito da proximidade. Dissertação (Mestrado), Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, 2009.

ii É preciso dizer que neste caso, o texto utilizado é exclusivamente a tradução da edição brasileira da Imago, e que por isso, há que se considerar os limites e problemas que a tradução impõe.

iii [...] aquilo que é nachträglich evoca um trânsito entre presente e passado. Pode ocorrer uma manifestação retardada (postergada) do passado, o qual, 'fermentando' ao longo do tempo, só mais tarde se faz sentir, criando um 'efeito retardado'; ou, em vez disso, pode ocorrer um retorno ao passado (...), realizando-se um acréscimo a posteriori de novos significados a serem agregados aos antigos eventos. (Hanns, 1996, p. 87)

iv Freud refere-se a um pequeno escrito de Kant, de 1784, de título Idéia de uma História Universal de um ponto de vista cosmopolita, articulado em torno de nove proposições. A proposição mencionada é a de número 4.