7Articulações sobre o tratar e o educar na obra freudiana"Do pedido de compreensão, à posição do analista" índice de autoresíndice de assuntospesquisa de trabalhos
Home Pagelista alfabética de eventos  




ISBN 978-85-60944-12-5 versão

An 7 Col. LEPSI IP/FE-USP 2009

 

8/11 - COLÓQUIO - COMUNICAÇÕES LIVRES

 

Efeitos terapêuticos do discurso escolar

 

 

Carlos Eduardo Frazão Meirelles1

Psicanalista, Mestre em Psicologia pelo Instituto de Psicologia da Universidade de são Paulo

 

 


RESUMO

Trata-se de uma elaboração teórica de experiências práticas na educação infantil. A pesquisa interroga as condições pelas quais uma escola pode proporcionar efeitos terapêuticos a um sujeito. Discute o caso de uma psicose infantil cujos efeitos de abrandamento do gozo e socialização no universo infantil, apontam para uma suplência exercida pela escola.

Palavras-chave: 1. Psicanálise 2. Educação 3. Psicoses


 

 

A invenção de Freud de um método para o tratamento dos sintomas neuróticos, não foi apenas um método de eficácia terapêutica. Revelou uma instância psíquica inconsciente no ser humano, com leis próprias distintas da consciência. Uma descoberta2 que ultrapassa a prática clínica, na medida em que apresenta uma nova concepção sobre o sujeito.

A extensão da psicanálise a outras experiências humanas que não a clínica, foi uma questão para Freud — seus estudos sobre a sociedade e suas instituições3, a civilização enquanto tal4, a religião5, abordagens variadas de textos literários6, dentre outros.

Uma experiência que Freud não deixou de considerar, ainda que de modo breve, foi a educação. No texto "O Interesse Científico da Psicanálise" (1913/1996), Freud considera que as pulsões perversas da primeira infância não devem ser temidas ou suprimidas pelos educadores, pois de qualquer forma não serão eliminadas, serão reprimidas e retornarão como neurose.

Nossas mais elevadas virtudes desenvolveram-se, como formações reativas e sublimações, de nossas piores disposições. A educação deve escrupulosamente abster-se de soterrar essas preciosas fontes de ação e restringir-se a incentivar os processos pelos quais essas energias são conduzidas ao longo de trilhas seguras. Tudo o que podemos esperar a título de profilaxia das neuroses no indivíduo se encontra nas mãos de uma educação psicanaliticamente esclarecida (FREUD, 1913/1996, p. 191).

Nos "Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade" (1905, p. 167), Freud considera que durante o período de latência

erigem-se forças anímicas que, mais tarde, surgirão como entraves no caminho da pulsão sexual e estreitarão seu curso à maneira de diques (o asco, o sentimento de vergonha, as exigências dos ideais estéticos e morais). Nas crianças civilizadas, tem-se a impressão de que a construção desses diques é obra da educação, e certamente a educação tem muito a ver com isso.

Estes comentários permitem considerar, primeiramente, que não apenas o analista interfere, em sentido amplo, na pulsão e no inconsciente. A psicanálise interfere pela análise — a decomposição do sintoma, a associação livre sob transferência, a interpretação e o ato, com intuito de cura. Outros discursos também incidem no inconsciente, de formas distintas, seja no campo das representações ou das pulsões, com destinos variados, terapêuticos ou não, ainda que desconheçam a ação. O discurso parental, por exemplo, age na constituição do sujeito do inconsciente; um texto literário pode fornecer material para corroborar uma fantasia latente e dar forma a um sintoma; a educação, seguindo a tese freudiana, pode favorecer a substituição de objetos da pulsão, pela via de formações reativas ou sublimações, diques seguros para a pulsão na civilização. Uma ilustração paradigmática seria o procedimento de "oferecer argila em lugar de permitir que uma criança manipulasse suas fezes" (KUPFER, 1995, p. 44). É uma interferência na pulsão (substituir ao invés de reprimir), não pela via da análise, mas pelos recursos próprios da educação, que comporta um efeito psíquico de proteção contra a neurose. A educação encontra um esclarecimento pelo saber psicanalítico sem, com isso, tornar-se uma psicanálise propriamente dita.

A prática na educação infantil demonstra a validade da tese freudiana. Um exemplo destacado que encontrei, foi de G. um garoto de cinco anos cujos impulsos sádicos custavam muito trabalho aos educadores. Enquanto cada criança tinha seus brinquedos eleitos para diversão no parque, ele tinha como diversão atormentar, transtornar, angustiar os colegas, utilizando os brinquedos e a imaginação a esse serviço. Alguns atos revelavam também seu interesse pela região anal, associado a um prazer olfativo por maus cheiros, em oposição a seus colegas que reagiam com repulsa e asco. Em um dado momento, dentre as diversas ofertas de objetos que uma escola realiza diariamente, um em especial, o futebol, absorveu o interesse de G..

Aos cinco anos de idade G. era completamente alheio ao tema futebol, recusando a brincadeira e desconhecendo suas regras elementares. A chegada de novos alunos que gostavam e praticavam o jogo favoreceu a transmissão e envolvimento dos que desconheciam. G. entusiasmou-se sobremaneira e de modo surpreendente aos que o conheciam. Ao mesmo tempo em que notava-se a expressão de seus traços sádicos no estilo de jogo que adotava — algo como um volante lutador, guerreiro, de marcação cerrada, que se atira na bola, chuta com violência, valente nos encontros físicos7, mas sempre dentro das regras —, esvaziaram-se as satisfações sádicas em outras atividades realizadas na escola, ainda que não desaparecessem por completo. Meses depois, quando já distinguia-se um antes e um depois na história do sujeito, os educadores ficaram sabendo que o futebol participa de um mito familiar do sujeito: o avô tentou ser jogador, encontrando pequeno êxito e por um curto período de tempo; o pai também tentou, fracassando por não ser bom o suficiente e escolhendo uma profissão correlacionada ao esporte; e agora ele, G., estava imbuído do desejo de ser um grande jogador.

A concessão a uma lei do desejo familiar da linhagem masculina foi correlata a um ajustamento à lei social. Os impulsos sádicos encontraram trilhas seguras de expressão, e mesmo a possibilidade de se converter em uma elevada virtude, dadas as qualidades futebolísticas que demonstra em tão tenra idade. A ação escolar foi tão somente de apresentar um objeto socialmente viável e valorizado para satisfação substituta das pulsões. Ofertou-se um laço social pela bola, como se oferta tantos outros objetos a todas as crianças diariamente. A este garoto o futebol serviu em especial. É preciso uma escolha inconsciente de cada sujeito para os objetos substitutivos ofertados pela escola cumpram a função esperada por Freud. O desejo dos novos garotos e do próprio educador permitiu a sustentação de um jogo onde antes era bagunça.

O caso de G. permite aventar uma hipótese diagnóstica de perversão, por sua posição de objeto na fantasia como "instrumento de gozo" (LACAN, 1962/1998, p. 786) do Outro. Considerando o matema de Lacan (id., ibid., loc. cit.) para a fantasia perversa, & , G. estaria como instrumento () que enlouquece e transtorna os colegas (). Também, seu interesse pela região anal, articulado ao prazer olfativo por maus cheiros, indica um destino diferente do recalque para esta modalidade de pulsão. Embora Freud se refira privilegiadamente à estrutura neurótica em seus comentários sobre a educação é tarefa considerar o que seria o correspondente em relação às estruturas perversa e psicótica. No caso de G., o que poderíamos chamar de efeitos terapêuticos — o esvaziamento de atos agressivos nos laços sociais em pró de uma satisfação substituta no futebol — segue a tese freudiana de substituições por objetos socialmente compartilhados, diques seguros para a pulsão. Não parece, a princípio, haver uma diferença significativa em relação à neurose. Ambas as estruturas compreenderem uma fantasia fundamental, ainda que inversas, e têm acesso ao simbólico como operação de substituição. Como considerar uma educação psicanaliticamente esclarecida com sujeitos cuja relação com a pulsão não é ordenada por uma fantasia, e cuja posição na linguagem não opera com substituições metafóricas?

***

Jacques Lacan considera que a questão preliminar a todo tratamento possível da psicose é a "foraclusão do Nome-do-Pai no lugar do Outro" (1959/1998, p. 582). Com isso, localiza a psicose como uma questão do campo da linguagem, uma posição no Outro que se especifica pela foraclusão do significante do Nome-do-Pai. Foraclusão não é exatamente ausência do Nome-do-Pai, é uma inclusão fora, isto é, algo que faz parte da estrutura, mas rejeitado em seu interior. Uma exclusão interna. Isto porque o que está foracluído do simbólico retorna no real8, e não propriamente inexiste não retornando em parte alguma.

A foraclusão do Nome-do-Pai não pode ser considerada um déficit do sujeito, uma deficiência. É uma forma de negar a castração, assim como o recalque e o desmentido. A psicose é uma estrutura possível ao sujeito tanto quanto a neurose e a perversão, não implicando por princípio uma condição mórbida ou subalterna às demais estruturas9. Estruturas de sujeito não distinguem normalidade e anormalidade, para tal seria preciso cortar dentro de cada estrutura. Seria mais adequado considerar em cada posição na linguagem uma potência e um fracasso que lhe seriam próprios. As produções sofisticadas que por vezes sujeitos psicóticos apresentam não se realizam apesar da estrutura, mas por meio dela própria. Não há, portanto, que se lamentar, a princípio, o fato de um dado sujeito estruturar-se na psicose, nem mesmo o fato de uma psicose infantil. Há que se lamentar o estado autístico a que algumas se restringem, por exemplo, ou a desintegração imaginária que por vezes lhes ocorre.

O significante Nome-do-Pai, na neurose, é aquele que, dentre todos os outros significantes, substitui o desejo da mãe produzindo uma significação fálica. Isso quer dizer que no ponto em que o sujeito é desejado pelo Outro, advém um significante que re-situa este desejo. Re-situa na medida em que esclarece que não é o sujeito o horizonte do desejo do Outro, que a criança não é a razão de existir desse desejo. Quando o que Outro deseja encontra um significante como resposta, o sujeito tem esclarecido que ele ou ocupou este lugar, como outros que ocupam e desocupam, ou ele detém este significante em alguma circunstância — ou ele é o falo, ou ele tem o falo. A substituição do desejo do Outro por um significante ordena assim um lastro de significação na estrutura do sujeito. A fantasia inconsciente do neurótico é este lastro. Isso se apresenta nas produções de linguagem do sujeito. Fundamentalmente é uma linguagem com ponto de basta, termo do estofador, um nó que amarra diversas redes de nós. Há uma amarração do sentido por uma significação fálica, uma representação que responde pelo desejo do Outro.

Quando ao invés do Nome-do-Pai substituir o desejo do Outro ele é foracluído, não se produz um lastro para a significação deste desejo, levando as produções de linguagem a uma amarração distinta da do ponto de basta.

A Verwerfung será tida por nós como foraclusão do significante. No ponto em que é chamado o Nome-do-Pai, pode pois responder no Outro um puro e simples furo, o qual, pela carência do efeito metafórico, provocará um furo correspondente no lugar da significação fálica (LACAN, 1959/1998, p. 564).

Ao invés das formações do inconsciente encontradas na neurose, nas quais o desejo é interpretável, produzem-se outros fenômenos, dentre as quais Lacan distingue os "fenômenos de código e fenômenos de mensagem" (LACAN, 1959/1998, p. 543).

Em relação ao código, há a produção de neologismos — "novas palavras compostas, mas numa composição conforme as regras da língua do paciente" (id.,ibid., p. 544). É uma significação do sujeito que interfere na estrutura da palavra, sendo que "é o próprio significante (e não o que ele significa) que é o objeto da comunicação" (id. ibid., loc. cit.). Uma palavra como pitilatéia, inventada por L., de cinco anos: "Vamos, fuja, corra, os alienígenas estão vindo para a pitilatéia!". Não se tratava de um nome para uma nave, um planeta ou algo assim, era pitilatéia, uma palavra que não remetia a nenhuma outra, permanecendo fechada em sua própria significação, hermética. Este fenômeno certamente causa dificuldades ao laço social, entre os colegas da mesma idade, por exemplo, mas revela também uma liberdade de criação própria da psicose.

Em relação aos fenômenos de mensagem, produz-se um vazio ou uma invasão de sentido. No caso de L., um fenômeno de mensagem que lhe ocorria era ouvir ao pé da letra as falas que lhe eram dirigidas, com impacto real em seu corpo. Não havendo uma fantasia como lastro da significação do desejo do Outro, e sim um furo neste lugar, o sentido por vezes o invadia, com os significantes valendo por si, e não como substitutos de outros significantes não manifestos. Não entendia ironia, por exemplo. Isso implicava L. a certo valor concreto da linguagem: Um dia foi recebido na entrada da escola: "Oi. Puxa, você cortou o cabelo". Ele, bravo, quase a chorar, grita em protesto: "Não! Não cortei! Foi a moça do cabeleireiro que cortou!". Ele ficou desesperado porque ouviu como se estivesse sendo acusado de algo que não fez. Ou então na brincadeira de dizer, "Posso morder sua barriga?" 10, ele se desesperava, chorava, batia, dizia que não podia, temendo uma devoração real.

A foraclusão do Nome-do-Pai implica a anulação do funcionamento substitutivo, metafórico da linguagem. Como seria possível lidar com os fenômenos próprios dessa posição na linguagem?

É a falta do Nome-do-Pai nesse lugar que, pelo furo que abre no significado, dá início à cascata de remanejamentos do significante de onde provém o desastre crescente do imaginário, até que seja alcançado o nível em que significante e significado se estabilizam na metáfora delirante (Lacan, 1959/1998, p. 584).

Uma metáfora delirante seria um significante metonímico que cumpriria uma função de amarração estável da significação do Outro, suprindo a função do Nome-do-Pai anulada pela foraclusão. Colette Soler considera que é "o significante do ideal que faz suplência ao Nome-do-Pai" (2007, p. 205), "ali onde faltava o Nome-do-Pai vem o I maiúsculo do ideal" (ibid., p.201), seria preciso "fazer o Ideal entrar no lugar do Nome-do-Pai e no lugar da significação fálica" (ibid., p. 202). Não se trata do Ideal no mesmo estatuto da neurose, aquele que advém ao fim do complexo de Édipo como herança simbólica, mas antes de um significante que pela lógica própria do delírio venha a adquirir uma função unificadora da imagem corporal, estabilizadora da significação, delimitadora do gozo. Não seria, portanto, um ideal simbólico, substituto a um desejo, mas antes um ideal imaginário, "remendo do imaginário" (ibid., p. 207), com função unificante. "O curável na psicose é equivalente a tentar barrar, delimitar, temperar, apaziguar o gozo que invade o sujeito. [...] Usar o recurso da linguagem na direção de cifrar o gozo, significantizar o real" (QUINET, 1997, p. 101). Nisso estaria "o valor terapêutico da psicanálise" (id., ibid., p. 99).

***

Detenho-me agora no caso de L., um garoto de cinco anos, que encontrou efeitos terapêuticos significativos ao longo de um ano letivo em uma escola normal. Por esta razão, avalio que seja importante o esforço de extrair considerações sobre a educação realizada sob esclarecimentos da psicanálise11. A escola em questão não é terapêutica ou especial, e também não se afirma orientada pela psicanálise. Porém, é permeada por ela em diversas instâncias12, podendo ser considerada suficientemente esclarecida sobre as principais teses de Sigmund Freud e outros.

L. o sofreu muito para separar-se da mãe nas primeiras semanas do ano letivo em que ingressou na escola. As longas cenas de despedida e encontro com a mãe davam mostras de um amor intenso entre eles — "Eu não quero ficar, mãe, só quero ficar com você...", em tom amoroso e sofrido. Nos espaços da escola, não se comunicava e não brincava. Circulava sozinho, procurando folhas de árvores para picotar, ficava chacoalhando-as próximo aos olhos, ou simplesmente com elas, ao chão, deitado, esparramado, rolando, ensimesmado. Recusava tudo e mantinha-se alheio ao que transcorria à sua volta. Estabelecia o olhar com os semelhantes, mas em alguns momentos rompia a simetria, com seus olhos vacilando em ângulos desconexos, fazendo-se ao mesmo tempo um corpo inerte, impenetrável aos apelos de qualquer um. Para ele não havia um objeto substituto para a mãe, um universo de fantasia que lhe permitisse brincar. A libido não corria por deslocamentos. Ou satisfazia-se sensorialmente no próprio corpo, ou realizava atividades como repetir como máquina os nomes dos animais dos livros.

Embora a demanda dos pais à escola não incluísse menção significativa a esta condição do filho, mas sim, de modo deslocado, a um traço orgânico que se revelou secundário, à escola sim destacou-se este conjunto de traços, tornando-se uma questão preliminar à educação propriamente dita. Seria preciso interferir na condição autística do sujeito para criar condições ao aprendizado. Efetivamente, o que ocorreu foi que as próprias exigências da escola serviram para interferir na condição do sujeito.

Inicialmente foi preciso manejar o seu desespero diante da ausência da mãe. Algumas referências da realidade abrandavam sua angústia: "Você vai depois de tal atividade", ou, "nós vamos fazer isso, aquilo outro daí a sua mãe chega". Se por um lado ajudou-o a suportar a falta da mãe, por outro fixaram-se como repetições esvaziadas de sentido, uma anulação da cadeia significante. Perguntava a toda hora o que já sabia: "Eu vou embora depois do quê?". E sempre a mesma resposta: "Vai depois de tal". Caso não lhe dissesse, se desesperava. Pergunta e resposta, tal que uma remete à outra e nada mais, sem deslocamento, sem conversa. A inoperância simbólica sustentava um par — o eu que pergunta e o outro que responde.

As intervenções, de uma forma geral buscavam incomodá-lo em seu gozo autístico, ao mesmo tempo tentando encaminhá-lo para qualquer atividade da infância, ou qualquer porção de linguagem que cifrasse seu gozo, viabilizando algum laço com o Outro.

Nos primeiros meses sucederam-se vários pares de pergunta e reposta. Logo que entrava pelos portões da escola, perguntava ao educador: "Quem vem me pegar hoje?". A satisfação ficava por conta da resposta que era reencontrada sempre a mesma: "Sua mãe". Não adiantava dizer que ele já sabia a resposta, exigia o ato de complementaridade. Quando já suportava melhor a ausência da mãe, outras pessoas passaram a buscá-lo na escola. Num dia, foi-lhe respondido com displicência a primeira pessoa ocorrida à mente. Como não era a resposta certa, ficou furioso. Foi uma oportunidade para acentuar a disparidade nos pares que busca aglutinar, mostrando que o adulto interpelado não teria como saber o que foi decidido na casa dele sobre quem viria pegá-lo. No dia seguinte, e nos demais, passou a chegar dizendo: "Quem vem me pegar é tal pessoa".

Após acolher suas produções, dosava-se a angústia para descompletá-las, de preferência encaminhando para as atividades escolares ou do universo infantil: "Vai olhar no quadro de rotina", "pergunta para uma criança". Seguia, no seu entendimento ao pé da letra, agindo como que mecanicamente à sugestão, sendo, porém, conduzido a situações que lhe implicavam algo além: uma criança que lhe dirigia a palavra, lhe interpretando de um modo ou de outro, um pega-pega que lhe envolvia por todos os lados, um avião de papel cruzando os ares, um desenho no mural despertando atenção em especial, situações as mais variadas que estão sempre acontecendo em uma escola, um verdadeiro grande Outro vivo. Deslocamentos foram se produzindo e ele deixando de perguntar para simplesmente contar.

Para envolvê-lo em brincadeiras, brincávamos com ele, não poupando-o dos efeitos significantes que sofria de modo particular. Situações assim: "Oi menino?", e ele não respondia em seu isolamento. "Oi menino?!". E ele nada. "Oi gafanhoto!". E ele bravo, possuído: "Eu não sou um gafanhoto, eu sou um menino!!!". "Mas eu te chamei de menino e você não respondeu e quando te chamei de gafanhoto respondeu!?". Um jogo com sua dificuldade de se deslocar no nome, na identificação. O que serviu para transmitir a ele um sentido para além do concreto, em pelo menos em um dado momento crucial, foi a identificação imaginária com outras crianças. Um espelhamento propriamente, de brincar com uma criança neurótica na frente dele (de querer morder a barriga, por exemplo), para que a reação da criança neurótica servisse como referência de significação para ele. Após esse procedimento, passou a entender de algum modo o que era uma brincadeira, passou a suportá-las, e encontrou seu próprio estilo de humor — dirigindo-se, inclusive, ao grupo de colegas, e levando-os à gargalhada.

O primeiro desenho que distinguiu-se de rabiscos, surgiu poucos dias após um estudo de campo em um sítio educativo sobre abelhas. Muito interessado ao longo das salas, pelas imagens, explicações e abelhas de verdade, chegou a um estado de euforia ao fim do passeio nos brinquedos temáticos do pátio. Nunca havia transparecido tanta diversão. Nos dias seguintes, na escola, foram feitos registros do estudo de campo, quando então desenhou uma abelha. Logo seus desenhos se tornaram uma proliferação de abelhas, ocupando todos os espaços da folha, um enxame propriamente.

Após a leitura de um livro infantil — sobre uma menina com teorias sobre como os bebês são feitos — deixou de desenhar abelhas e passou a desenhar uma mulher com um nenê na barriga. Em "Sobre as Teorias sexuais das Crianças" (1908a/1996, p. 193), Freud escreve que a primeira grande pergunta da vida, em termos intelectuais, é "De onde vêm os bebês?". O livro parece que ofereceu material simbólico para ele se orientar nesta pergunta. Dentre várias histórias, muitas outras que já haviam sido apresentadas, esta lhe serviu em especial. O desenho da mãe com o bebê indica a presença de alguma linguagem para suprir a ausência da sua mãe — não se desespera na separação, e ela surge como representação, no desenho, na história e nas brincadeiras que começa a tomar parte com outras crianças. Nas férias do meio do ano, surpreendeu os pais pedindo-lhes papel e canetas para desenhar, objetos que até então não tinha por não se interessar.

No final do ano letivo, contava já com uma atividade imaginativa considerável, quando então surgiram os neologismos. Ainda passava algum tempo solitário, com falas para si mesmo, mas boa parte do período se relacionava com outras crianças. Muitas vezes era necessário certo secretariado. Por exemplo, quando estando ao lado de um colega, de repente se dirige a ele gritando: "Vamos, fuja, corra, os alienígenas estão vindo para a pitilatéia!". Ele não tem a polidez social já comum na idade, de dizer: "Oi fulano, vamos brincar? Do que você quer? Eu vou ser tal pessoa...". O significante impõe-se diretamente, como uma forma do Outro não barrado, dito com um peso de realidade que até se olha para cima à procura dos alienígenas. A criança neurótica interpelada chegou a se assustar, quando lhe foi explicado que se tratava um convite para brincar.

Já próximo do final do ano letivo iniciou o processo de alfabetização. Suas letras eram parecidas com seus desenhos de abelha e de mulher com nenê na barriga.

 

BIBLIOGRAFIA

FREUD, S. (1900). A interpretação dos sonhos. Trad. sob a direção de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1996. (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v. 4).

______. (1905) Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade. In: Um Caso de Histeria, Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade e Outros Trabalhos. (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v. 7).

______. (1906). Delírio e Sonhos na Gradiva de Jensen. Trad. sob a direção de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1996. (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v. 9).

______. (1907). Escritores criativos e devaneio. In: Delírio e Sonhos na Gradiva de Jensen. Trad. sob a direção de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1996. (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v. 9).

______. (1908a). Sobre as Teorias sexuais das Crianças. In: Delírio e Sonhos na Gradiva de Jensen. Trad. sob a direção de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1996. (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v. 9).

______. (1911). Notas Psicanalíticas Sobre um Relato Autobiográfico de um Caso de Paranóia (Dementia Paranoides). In: O Caso Schreber e Artigos sobre a Técnica. Trad. sob a direção de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1996. (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v. 12).

______. (1913). O Interesse Científico da Psicanálise. In: Totem e Tabu. Trad. sob a direção de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1996. (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v. 13.

______. (1921). Psicologia de Grupo e a Análise do Ego. In: Além do Princípio do Prazer. Trad. sob a direção de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1996. (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v. 18).

______. (1927). O futuro de uma ilusão. Trad. sob a direção de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1996. (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v. 21).

______. (1929). Mal estar na civilização. In: O futuro de uma ilusão. Trad. sob a direção de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1996. (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v. 21).

KUPFER, M. C. M. Freud e a Educação. São Paulo: Scipione, 1995. 103 p.

LACAN, J. (1955-1956). O Seminário: livro 3 - as psicoses. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997. 366 p.

______. (1959). De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. p. 537-590.

______. (1962) Kant com Sade. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. p. 776-803.

QUINET, A. A descoberta do inconsciente. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000. 164 p.

______. Teoria e Clínica da Psicose. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997. 238 p.

______. 4 + 1 condições de análise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993. 124 p.

SADE, M de. Os 120 dias de Sodoma, ou a Escola da Libertinagem. São Paulo: Iluminuras, 2006.

SOLER, C. O Inconsciente a céu aberto da psicose. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007. 261 p.

 

 

1 R: Professor Paulo Tavares, 126. São Paulo – SP, CEP: 05305-040. e-mail: frazaomeirelles@gmail.com Tel.: 7247-7283 / 3781-9581 / 3834-8503.
2 Quinet, A. A descoberta do inconsciente. São Paulo: Jorge Zahar, 2000.
3 (1921) "Psicologia de Grupo e a Análise do Ego".
4 (1929) "Mal estar na civilização".
5 (1927) "O Futuro de uma Ilusão".
6 (1907) "Escritores criativos e devaneio", (1906) "Delírios e Sonhos na Gradiva de Jensen", (1911) "Notas Psicanalíticas Sobre um Relato Autobiográfico de um Caso de Paranóia".
7 Em itálico, expressões que são igualmente válidas para descrever seus atos de atormentar os colegas no parque e demais atividades.
8 Fórmula reiterada diversas vezes por Jacques Lacan: "[...] Tudo o que é recusado na ordem simbólica, no sentido da Verwerfung, reaparece no real" (1955-1956/1997, p. 21)
9 Na psicose, Schreber foi considerado louco, mas Joyce é considerado gênio; na neurose, seria duvidoso ler o caso Homem dos Ratos de Freud, ou o caso Ana O., e sustentar a neurose como parâmetro de normalidade; na perversão, há a loucura dos "120 dias de Sodoma" (2006), do Marques de Sade, e há aqueles sujeitos que, sem nada que lhes desabone a conduta diária, guardam uma condição específica para o gozo sexual, um fetiche.
10 Expressão cultural comum de carinho, "Tão fofinho que dá vontade de morder", evidentemente, uma derivação da pulsão oral.
11 Agradecimentos à Roberta Ferrari Rodovalho pela parceria nesta experiência educacional.
12 Dentre fundadores, direções, coordenações, educadores, estagiários, há analistas praticantes que dividem seu tempo com a prática educacional; reuniões de equipe realizam estudos eventuais sobre textos psicanalíticos; há supervisão psicanalítica dos chamados casos de inclusão; no Ensino Médio transmitem-se noções teóricas de psicanálise. De um modo amplo, a psicanálise insere-se como um suposto saber sobre o sujeito privilegiado no cotidiano escolar.