7"Do pedido de compreensão, à posição do analista"A criança errante índice de autoresíndice de assuntospesquisa de trabalhos
Home Pagelista alfabética de eventos  




ISBN 978-85-60944-12-5 versão

An 7 Col. LEPSI IP/FE-USP 2009

 

8/11 - COLÓQUIO - COMUNICAÇÕES LIVRES

 

Dilema na sala de aula: indisciplina e autoridade

 

 

Catarina Angélica S. Santos

Psicanalista, mestre em Educação pela FaE/UFMG, professora do Centro Universitário Newton Paiva

 

 


RESUMO

Proponho discutir neste artigo, recortes de uma pesquisa realizada com alguns professores de matemática das escolas públicas de Belo Horizonte. Buscou-se analisar os impasses surgidos em sala de aula, sob a ótica do questionamento da autoridade, a partir dos testemunhos dos educadores. Como método de investigação, junto aos docentes, utilizou-se a Conversação, dispositivo de aplicação da psicanálise aos sintomas da modernidade. Dentre as problemáticas atuais pode-se localizar os sintomas escolares, sejam eles referentes aos problemas dos alunos, sejam relativos às dificuldades que os professores se deparam para lidar com tais discentes. Interrogam-se, neste trabalho, as estratégias subjetivas encontradas pelos docentes para solucionar os impasses com a indisciplina e a autoridade na sala de aula.

Palavras-chave: indisciplina, autoridade, relação professor-aluno.


 

 

Nosso dilema na escola não é o conteúdo em si porque este a gente domina
e dá conta. Agora dar conta desses limites, dessa diversidade, dessa
indisciplina é o que é complicado.
(prof. Carlos1).

 

É no tom de queixa em relação à indisciplina dos alunos que os professores dão início à Conversação com a psicanalista. Nos testemunhos recolhidos, questões como a indisciplina, sexualidade e o autoritarismo os mobilizam muito, nos indicando que há algo para além da cognição que desconcertam os docentes nas relações com seus alunos. Nesses encontros, um aspecto que nos pareceu bastante relevante é o sentimento de impotência indicado nos testemunhos dos professores diante dos impasses com os alunos na sala de aula. A impotência de que tanto se queixam os docentes se relaciona à indisciplina e, quando se faz uma análise mais rigorosa dos depoimentos deles, pode-se constatar que as dificuldades recaem sempre sobre a indisciplina do aluno: Hoje o que a gente reclama na escola não é tanto a questão da aprendizagem, mas da falta de limites.

Contudo, encontramos dois pontos que merecem destaque. Primeiramente, pode-se supor que existe uma preocupação dos docentes com a indisciplina dos alunos e isto ocorre, provavelmente, porque se exige deles responder a essa questão fora de seu domínio e de sua competência, isto é, são chamados ou convocados como pessoas. - Eu vejo o seguinte, o papel da escola de transmissão de conhecimentos nós temos feito muito pouco pelo aluno. Noventa e cinco por cento do tempo é para resolver conflitos de indisciplina. O segundo ponto tem a ver com o fato de que os professores dominam o conteúdo da matemática e o transmitem no exercício da sua profissão. A relação professor-aluno e a autoridade docente, no entanto, não é um conteúdo que é ensinado nas instituições de formação de professores, ainda assim, os docentes têm de se haver com tais questões o tempo todo na sala de aula. Nosso dilema na escola não é o conteúdo em si porque este a gente domina e dá conta. Agora dar conta desses limites, dessa diversidade, dessa indisciplina é o que é complicado.

 

Conexão: Psicanálise e Educação

Iniciamos o percurso de nossos estudos sobre as relações entre psicanálise e educação com as primeiras incursões da teoria psicanalítica pelo campo educacional, apresentando ao leitor dois pontos de vista de Sigmund Freud, importantes para nossas investigações: a idéia de que a educação, em sua época, era nefasta ao sujeito quando poderia ser profilática; e a segunda idéia, extraída do texto de 1933, que se refere à educação como salutar para o sujeito e a sociedade. Freud tratou da questão da educação, não prescrevendo um método, mas introduzindo o questionamento ético da função de educar. Pedagogos como Pfister (1909), Aichhorn (1922) e Zulliger (1928) no início do século XX, fascinados pelas idéias psicanalíticas foram os primeiros a aplicar esses conhecimentos no campo educativo. Outros autores produziram estudos mais recentes enveredando pelo texto freudiano e lacaniano articulando teorias, com as quais se pudesse refletir sobre as questões educacionais, seja no que diz respeito às produções sintomáticas dos alunos, seja para analisar a subjetividade na relação professor-aluno na sala de aula.

Utilizamos ainda como referencial para nossos estudos teóricos, vários textos de Freud e de autores pós-freudianos como Maud Mannoni (1977), Anny Cordié (1987), Catherine Millot (1987), Mireille Cifali (1982, 1987, 1991); e brasileiros — Maria Cristina Kupfer (1989, 1992, 2000), Leandro Lajonquière (1992, 1999) e Ana Lydia Santiago (2005).

Para realização deste trabalho2, constituímos um grupo de seis professores de matemática, de escolas diferentes, e que possuem experiência docente em graus variados. Essa disciplina nos sugere ser um terreno fértil onde os conflitos ocorrem de forma extrema, talvez pela própria natureza do conhecimento, pelas representações sociais que a escola lhe atribui e que a sociedade confirma — regularidade, certeza absoluta, precisão, rigor — e até mesmo, pela maior quantidade de sua presença nas grades curriculares.

A Conversação foi nesta pesquisa e em outros trabalhos já realizados pelo Nipse3, o dispositivo utilizado para recolher os depoimentos dos professores sobre seus impasses no processo de ensino-aprendizagem na sala de aula. Tal método foi criado pelo psicanalista Miller (1996), para as discussões no campo clínico, no entanto, pode ser utilizado em reuniões em que se quer fazer interagir posicionamentos e saberes de campos diversos do conhecimento. Esse método permite a promoção de um debate, uma reflexão e uma "discussão viva em detrimento de uma escuta passiva dos participantes"4. Dessa forma, o espaço da Conversação promove a análise dos pontos de estagnação das questões e cria condições para a produção de um novo saber. Ao dar oportunidade para a Conversação, oferecemos aos professores condições de uma maior compreensão dos alunos, juntamente com a possibilidade de mudanças na prática pedagógica.

Segundo Miller (2003), a Conversação "é um tipo de associação livre que pode ser coletivizada na medida em que ninguém é dono de nenhum significante" (p. 15). Dessa forma, um significante produzido chama outro que põe a trabalho a cadeia significante, isto é, se confiarmos nela, não sendo tão importante assim a pessoa que o lançou em um determinado ponto da conversa. O fato mais surpreendente no uso desse tipo de dispositivo é que os professores entendem que, pela via da Conversação, podem inventar soluções e novas estratégias para lidarem com as dificuldades vividas no interior da sala de aula, a partir de sua própria criação ou com o auxílio das ideias dos colegas.

A partir das Conversações com os docentes procuramos desenvolver uma análise sobre a natureza dos impasses nas relações que se estabelecem na sala de aula. Nesse aspecto, nossa análise voltou-se para as relações entre tais comportamentos e a reação provocada nos docentes sob a ótica do questionamento da autoridade. Nos testemunhos dos docentes envolvidos na pesquisa e, que nesse artigo abordaremos a análise de recortes, reconhecemos um modo de tratamento da questão dos impasses identificados como "comportamentos indesejáveis dos alunos", tomando como referência o controle das ações dos discentes e a concepção da autoridade docente.

 

Comportamentos indesejáveis dos alunos?

Na intenção de esclarecer o que é indisciplina no campo pedagógico, torna-se importante recorrer aos dicionários de pedagogia para buscar sua definição, no entanto, verifica-se que esse verbete neles não aparece. Consta deles o termo disciplina e, só por oposição, pode-se chegar ao primeiro vocábulo. Tanto para Laeng (1975), quanto para Foulquié (1976), a ênfase do termo é colocada no sentido moral, sendo a disciplina um "conjunto de regras de condutas impostas aos membros de uma coletividade (especialmente escolar ou militar) ou que um se impõe a si mesmo" (Fouquié, 1976:132). Ressaltam-se em Laeng (1975), as medidas preventivas e repressivas que tutelam a observância dessas regras e, ainda, a organização do trabalho que encontra em si mesmo as suas próprias garantias, sendo os desvios provindos em maior ou menor grau do "desinteresse e do desamor pelo trabalho escolar" (p.133).

Como se pode subtrair, de imediato, o sentido axial do termo disciplina enfatiza o sentido moral e desdobra-se em torno da idéia de regras de condutas impostas que, se observadas, garantem o trabalho pedagógico, portanto, sem deixar espaço para a autonomia dos alunos, para o imprevisto das ações discentes para além do controle direto dos professores. A disciplina do aluno parece ser uma condição sine qua non para a aprendizagem e é reveladora do ideal de aluno que a escola persegue. Já a indisciplina, por oposição à definição de disciplina, vista precedentemente, pode ser tomada como a inobservância das regras, isto é, remete-se a tudo que foge às regras estabelecidas como naturais pela escola. No campo da psicologia, pode-se constatar que o verbete indisciplina não é contemplado em seus dicionários permitindo-nos afirmar que não se trata de um conceito ou noção isolados por tal ciência. No entanto, pode-se demandar o saber psicológico para a solução dos problemas disciplinares que desestabilizam o cotidiano escolar, seja em forma de palestras que orientem os professores, seja no atendimento clínico ao aluno cuja atitude foge às regras estabelecidas pela escola.

Na escola, normalmente o que se considera como comportamento indisciplinado é qualquer ato indesejado do aluno ou sua omissão diante das normas que regulamentam as relações escolares, contrariando alguns princípios básicos estabelecidos por ela ou pelos professores. As pesquisas5 têm mostrado que a indisciplina continua sendo um grande problema nos últimos anos e exige muito esforço por parte dos professores para controlar tal situação. Ressalta-se que a questão disciplinar recai sempre na não-submissão, pelo aluno, ao regimento imposto pela escola.

Para Aquino (2003), "a indisciplina traduzir-se-ia numa espécie de efeito de inconformidade, por parte do alunado, aos anacrônicos padrões de comportamento nos quais as escolas ainda parecem inspirar-se" (p.51). No seu entender, enquanto houver docentes impondo o melhor modo de comportar-se, haverá alunos protestando e fugindo às regras que lhes parecem arbitrárias. Será inevitável a manifestação dos discentes diante de normas impositivas.

O depoimento a seguir ilustra como a professora reage ao comportamento indesejado do aluno na sala de aula e o tipo de resposta que a mesma busca para atenuar seu mal-estar. Utilizou-se para a leitura deste e de outros testemunhos da investigação a seguinte chave: há uma ação do aluno que é interpretada pelo docente como indisciplina e como endereçado à subjetividade dele o que provoca uma reação do professor que freqüentemente está ligada com o uso que ele faz da autoridade no exercício da docência.

 

Não fazer a atividade de geometria

Outro dia, eu estava dando aula de geometria e tinha um aluno que não havia feito nenhuma atividade, aliás, ele nunca faz. E em toda aula eu tenho de ir à carteira dele e falar: Vamos lá, você está brincando demais, até agora não começou, você está muito mole. Mas, ele continuou levando as coisas na brincadeira e eu lhe disse que daquele jeito iria levar uma ocorrência comigo. Na sala de aula, eu vou documentando o que o menino faz para depois passar para a orientadora e para o conselho de classe. Aí, ele continuou a brincar e, então, eu passei a ocorrência para ele assinar. O aluno pegou a ocorrência e assinou, mas aí, ele veio rindo, brincando e debochando e eu fiquei incomodada com o jeito dele naquele momento. Quando terminou a aula e ele estava saindo da sala, eu o chamei, separadamente, e lhe disse: o que foi que eu te fiz? Eu estava falando e você continuou brincando e debochando na minha cara. Você não gosta de mim? Não, professora, que isso. Você não estava gostando da aula? Não, professora, não é isso não. Então, nem ele sabe. O aluno está ali na função dele que é de incomodar alguém, cutucar o professor, ter um para colocá-lo para fora da sala de aula, bater boca com ele.[...] Quer dizer, é aí na conversa que eu acho que o aluno desarma um pouco. Eu acho que ele não tem é platéia. O negócio deles é desmoralizar a gente. Esse menino era de uma turma onde eu estava fazendo uma substituição temporária, para eles eu era uma professora novata. E eu ainda falei com ele: você está achando que eu sou professora novata na escola? Não sou. Sou professora efetiva aqui e esta matéria vai ser avaliada em dez pontos e você não tem nada. Você vai ficar com zero? Então, eu fui conversando com o menino e ele foi ficando sem graça. (profª Amanda).

Pelo fato de o aluno não realizar o exercício de geometria, a professora considera que ele é indisciplinado e deve ser corrigido, inicialmente, com uma advertência verbal. No entanto, o aluno continua a brincar e não leva a sério o que a professora lhe diz e ela o avisa, de novo, que daquele jeito ele vai levar uma ocorrência. Como se pode notar, o que parece incomodar, de verdade, a professora é a maneira como o aluno procede na sua aula, ou seja, ele não faz as atividades e ainda fica brincando e debochando. É a atitude de deboche do aluno que a professora rechaça e isso parece ser insuportável para sua subjetividade. Embora perceba a provocação do aluno — O aluno pegou a ocorrência e assinou, mas aí, ele veio rindo, brincando e debochando e eu fiquei incomodada com o jeito dele naquele momento —, a docente não se vale das relações simbólicas para tentar resolver o impasse surgido na sala de aula. Ela resolve o impasse, em particular, no final da aula, indicando que, nessa situação, relaciona-se com os adolescentes na perspectiva do registro especular. Nessa perspectiva, não há mediação possível pela via da linguagem e as relações se dão de modo polarizado e disjunto: ou eu ou o outro, amor/ódio, ódio/inveja, rivalidade. A docente não consegue criar outro tipo de resposta para o conflito e parece estar certa de que o grupo vai se colocar a favor do colega e, necessariamente, contra ela. Neste caso, a professora se exclui, antecipadamente, para evitar o risco de ser preterida e desrespeitada pelo aluno. Ela não pensa que o grupo possa ficar do lado dela e interpreta a atitude de deboche do aluno como dirigida a ela própria fechando qualquer possibilidade de discussão.

Pode-se destacar no que concerne à indisciplina que há um grupo de docentes, com os quais já trabalhamos anteriormente, que parecem bater de frente com os adolescentes quando se defrontam com impasses de qualquer natureza na sala de aula e não hesitam em fazer um enfrentamento de igual para igual com os alunos.

Constata-se, entretanto, que alguns dos professores participantes da pesquisa tomam outra atitude perante a indisciplina, isto é, inventam novas soluções. Vejamos a seqüência do depoimento da professora Amanda.

Eu acho que me dou bem com meus alunos, mas não sou muito de entrar na deles não, porque, às vezes, eu acho que eles fazem as coisas para testar a gente, para ver até onde irritam o professor. [...] Então, eu acho importante não bater de frente com ele.

Com a finalidade de ilustrar a argumentação da professora de não bater de frente com os adolescentes, vamos tentar extrair do que ela propõe, o que se revela na relação professor-aluno-conhecimento.

Na primeira parte desse enunciado, assinalamos o não bater de frente com os alunos que é um confronto que os professores tentam evitar. Essa professora escolhe não bater de frente com os adolescentes e o que aparece, de novidade, é o argumento de que o aluno e o grupo vão se unir e ficar contra ela, que é uma só na classe. Note-se que, nesse momento, o aluno passa a apresentar uma materialidade poderosa e de certo modo fora de controle da professora. O volume, quer da quantidade, quer do próprio espaço que o aluno ocupa na sala, dificulta a disciplinarização6. Se de um lado, a preocupação da professora é com o grupo discente, por sua vez, ela não supõe que possa mostrar algo do conhecimento da matemática que encante os alunos e que estes possam ficar do seu lado e não apoiar a atitude do colega. Por outro lado, também, não há suposição dela de que o grupo de alunos fique contra o colega por verem nele uma figura que perturba a aula. Muitas vezes, os próprios alunos exigem providências à professora, por rejeitarem a atitude do colega naquele momento.

Não bater de frente com os adolescentes, é a estratégia utilizada pela professora para evitar um conflito com o aluno diante de um público na classe. Ela interpreta que todo ato de indisciplina é intencional e visa desmoralizar o mestre e sua autoridade. Por isso, não arrisca colocar sua opinião para um aluno. Encontra-se só na sala de aula contra todo um grupo que, na sua idéia aguarda uma oportunidade para destruí-la. O aluno está ali na função dele que é de incomodar alguém, cutucar o professor, ter um para colocá-lo para fora da sala de aula, bater boca com ele. A implicação do professor é difícil de acontecer e ainda "subsiste uma posição paranóica consistente em atribuir a causa a um fenômeno exterior"7. A docente adota, então, a atitude de conversar, em particular, com o aluno para eliminar a ameaça do grupo. Mas, a nosso ver, essa não deixa de ser uma forma de bater de frente com o aluno, garantindo, assim, o poder perante ele. No caso, a professora tem muito mais argumentos que o aluno e isso parece reforçar o seu poder diante deste que, naquele momento, fica submetido à sua imposição.

Pode-se supor que a professora, no seu aparente domínio da classe, parece demonstrar medo de pôr sua autoridade à prova. E se o aluno não a respeitar? Como ela ficaria diante dos outros discentes? Isso nos sugere que a professora tem receio de que a sua autoridade não se faça valer perante a turma. Assim, parece subsistir o medo de não levar vantagem em classe.

Cabe-nos perguntar: haveria algo a fazer que pudesse romper essa estratégia de não bater de frente? Despertar a curiosidade dos alunos pela matemática não é meio caminho para a aprendizagem? Desde que ela não se aferre ao fato em si, isto é, ao desacato à norma, pode-se supor que, nessas ocasiões de impasses, a professora tenha a singular oportunidade de mostrar a seus alunos questões interessantes da matemática que possam despertar interesse. Isso nos leva a pensar que a docente pode fazer uso do impasse ocorrido com um aluno para um trabalho a favor da aprendizagem do grupo.

Se a docente conclui que a atitude do aluno é dirigida à sua autoridade, isso a leva a adotar a estratégia de conversar, em particular. Tal estratégia, criada por ela mesma, que é a de não bater de frente, parece-lhe válida para resolver qualquer conflito. Do mesmo modo que a escola inventa normas para abafar a subjetividade do aluno, os professores, também, inventam as suas próprias estratégias com o mesmo intuito de eliminar a subjetividade dos discentes.

Constata-se que, no momento do impasse, a professora lança mão da ocorrência escolar, o que lhe pode oferecer garantias, ainda que mínimas, porque ilusórias de manter o controle e o poder na sala de aula. É de se pensar que lançar mão dessa garantia é uma tentativa de fazer valer sua autoridade de mestre. Assim, o procedimento da ocorrência, que é uma norma instituída pela escola, elimina qualquer possibilidade de resolução da indisciplina pela via do simbólico, visto que a solução já é dada de antemão. A resposta da professora contém algo dessa ordem: uso da ocorrência diante da possibilidade de o aluno ir contra a norma. Pode-se inferir que o descumprimento das obrigações pode ir desde a infração de pular o muro da escola, por exemplo, até o fato de não fazer o dever de casa.

Até aqui analisamos o relato do impasse ocorrido na classe concernente à norma, à infração do aluno e ao castigo dado pela professora, o que para efeito de análise nomearemos de primeiro tempo do tratamento da relação professor-aluno.

Recapitulando: a professora trabalha, em um primeiro tempo, a questão da norma, da infração e do castigo, com o aluno. Em relação à norma ela diz: em toda aula eu tenho de ir à carteira dele e falar: vamos lá, você está brincando demais, até agora não começou, você está muito mole. Para tratar da infração, da desobediência do aluno ela comenta: mas, ele continuou levando as coisas na brincadeira e, eu lhe disse que daquele jeito ele iria levar uma ocorrência comigo. E finalmente, para aplicar-lhe o castigo, ela fala: ele continuou a brincar e, então, eu passei a ocorrência para ele assinar.

Cordié8 faz uma discussão a respeito do docente superegóico — aquele muito exigente e rígido — analisado, por ela, como um outro enfoque perverso da lei. Para Lacan (1987)9, a lei é representada pelo pai simbólico e por ser este o que separa, o que instaura o terceiro na relação da criança com o Outro, que a princípio é a mãe. O Édipo permite à criança superar a relação dual com a mãe e aceder, então, à ordem simbólica que requer a existência da função paterna. Esta função "consiste em fazer-se garantia dessa ordem. Essa separação permite a interiorização da lei"10. Cabe a cada um e a todos a tarefa de reconciliar-se com o pai, seja em relação à hostilidade sentida antes, seja no sentido de emancipar-se de sua tirania, quando, diante da revolta contra o pai, a reação da criança era de submissão. Essa realização, raramente, ocorre de modo ideal. Assim, o pai constitui para a criança a referência a uma Lei que vale para todos.

O docente superegóico, porém, identifica-se totalmente com a lei, crê encarná-la em vez de reconhecer-se como seu representante. O sujeito se vê às voltas com as proibições parentais sem haver-se desprendido da submissão às figuras edípicas, e a falta de separação destas dará um lugar de supremacia à instância superegóica. Parece-nos que isso tem conseqüências no tratamento dos alunos na sala de aula. Certos adultos, situados em posição de poder, exigem submissão e obediência a imperativos totalmente arbitrários; se a lei subjetiva não opera na relação mãe-criança, pode-se ler, também, na relação professor-aluno, esta relação fica entregue ao "capricho e à desmesura"11, e seria, então, a lei do mais forte. O superego, que é o herdeiro do complexo de Édipo, é essa voz que intima o sujeito a ordem de respeitar a norma, "é portador de culpabilidade e violência, é o "tem que", "tu deves", "tu não tens direito", é a instância judicial de nosso psiquismo, diz Freud"12. Pode-se entrever que a inclinação da lei do mais forte se dá com extrema freqüência na relação adulto-criança, seja na família, seja na relação professor-aluno. Muitas práticas educativas estão eivadas de sadismo: os castigos corporais até pouco tempo uma prática corrente, as lições de moral com a indicação do modo correto de comportar-se, a exposição vexatória do aluno frente aos colegas, o autoritarismo do docente, o abuso do poder frente à avaliação, a tentativa de corrigir o desvio de comportamentos considerados "tortos", e outros tantos que nos indicam o componente sádico nas relações. Essas práticas, em sua maioria, são postas em exercício na tentativa de fazer a criança e/ou adolescente ceder, de adestrá-las, modelá-las à imagem de um ideal definido a priori pelo adulto, que é supostamente quem sabe o que é melhor para o adolescente.

Como nos adverte Cordié13, a proeminência da posição superegóica no pedagogo tem, como conseqüência, uma inflação das condutas de dominação e dessa forma encaminha-se, facilmente, para o autoritarismo do docente.

"Em seu temor de perder imagem, de parecer débil, o professor endurece suas condutas de poder, fica intransigente, inacessível a qualquer diálogo, rejeita toda crítica. Suas exigências se tornam cada vez mais imperativas, toda concessão é excluída e sua rigidez não reflete, de fato, senão seu medo do outro" (p.301) (tradução livre).

Com efeito, em um segundo tempo situa-se, então, o tratamento da questão do ensino-aprendizagem. Aqui, verifica-se que a professora não quer saber do aluno sobre a sua dificuldade em matemática, pois ela não faz nenhum questionamento sobre a aprendizagem escolar do discente. Por isso, pergunta-se: Como fica a aprendizagem do aluno? Qual é realmente a dificuldade dele? Qual conteúdo ele não aprende? Como se ensina matemática? Como o professor dá aula? Como ele passa de um conteúdo para o outro?

Para Guimarães e Weis (2005), definir aprendizagem é sempre um dilema. Pode-se dizer que "a verdadeira aprendizagem ocorre "dentro" do "eu", do próprio "ser". É preciso que aquilo que o professor ensina, mexa com seu interior, que o transforme, que o modifique"14. Dessa maneira, não há aprendizagem por repetição, decoração de textos ou simples memorização de regras, pois, embora o conhecimento necessite do suporte da memória, somente esta não é suficiente. Para haver aprendizagem, é preciso que o professor verifique se o aluno é capaz de: "conhecer", "aplicar", "analisar" e "julgar"15. Avalia-se, pelo menos parcialmente, o que se ensinou pela capacidade de o aluno expressar o conteúdo com suas próprias palavras, pela capacidade de análise e estabelecimento de relações com outros conhecimentos e pela capacidade de julgamento da importância de tal conhecimento que ele demonstra.

Nesse segundo tempo, referente ao ensino-aprendizagem, a professora interpreta a atitude do aluno como um desafio à sua autoridade, e a aprendizagem fica à margem da relação professor-aluno, evidenciando-se que o que é especificidade da escola — ensino — fica sem tratamento.

Vale destacar que, do primeiro para o segundo tempo, há um salto, uma lacuna da ação da professora para outra questão — o cumprimento da norma — e a aprendizagem escolar fica sem resposta, sem discussão com o aluno, justamente, no lugar onde deve incidir o trabalho da docente. A passagem do primeiro para o segundo tempo deixa um gap e o tratamento da questão ensino-aprendizagem desemboca no que nomeamos de plano subjetivo ou pessoal. Esse plano pessoal nos é indicado pelas perguntas que a professora remete ao aluno: O que foi que eu te fiz?Eu estava falando e você continuou brincando e debochando na minha cara. Você não gosta de mim?

 

Conclusão

A título de conclusão deste artigo pode-se ressaltar que o trabalho de investigação nos indicou o espaço da Conversação como dispositivo de mediação na relação professor-aluno como forma de tratamento do mal-estar docente, do que não vai bem na prática pedagógica. Os docentes interpretam que há sempre algo intencional, por parte dos alunos, para destituí-los do seu lugar de autoridade.

Nas situações de indisciplina, quando o professor está no campo do ensino dos conteúdos matemáticos — que é de uma ordem mais objetiva, da cognição — como ele pode realizá-lo sem se haver com a subjetividade? Nota-se uma expressa contradição dos professores de matemática em relação ao processo de ensino-aprendizagem-conhecimento. Ao analisarem "os comportamentos indesejáveis" de seus alunos, os professores pudessem, quem sabe, não incluí-los no plano imaginário, tentando relativizar a atitude discente. Ao mesmo tempo, é importante que os docentes considerem a singularidade dos alunos, quando se deparam com as dificuldades de aprendizagem deles.

Constatou-se que os professores possuem um saber aprendido na experiência que é importante e deve ser ouvido, especialmente, em espaços coletivos para que propicie e alimente a reflexão de cada participante e do grupo. Tais reflexões devem servir de indicações de tratamento dos conflitos engendrados nas práticas pedagógicas, contudo os docentes precisam dar nomes às estratégias que criam, compartilhar essas experiências com seus pares e interagir com outros saberes gerando, assim, possibilidades de novas aprendizagens e reflexões.

 

Notas

1 Nome fictício

2 Pesquisa de mestrado concluída em 2005, na FaE/UFMG

3 NIPSE – Núcleo Interdisciplinar de Pesquisa em Psicanálise e Educação. FaE/UFMG.

4 Palestra proferida por SANTIAGO, A L. B. Uma releitura crítica da Psicanálise na Educação. Realização: Faculdade de Educação. Agos/2004.

5 Pesquisa realizada pelo prof. Júlio Groppa Aquino – USP, em 2003, em várias escolas de São Paulo.

6 (AQUINO, 1996: 55).

7 (CORDIÉ [1988] 2003:165).

8 (CORDIÉ [1988] 2003).

9 LACAN, J. [1956]. Os complexos familiares.na formação do indivíduo. 1987.

10 (CORDIÉ [1988] 2003:290)

11 (CORDIÉ [1988] 2003:122).

12 (ibid, p. 300 — grifos da autora).

13 (CORDIÉ [1988] 2003)

14 (GUIMARÃES e WEIS. Revista Gestão Universitária. — grifos dos autores).

15 (ibid, Revista Gestão Universitária).

 

Referências bibliográficas

AQUINO, Júlio G. Indisciplina: o contraponto das escolas democráticas. São Paulo: Moderna, 2003.

____ . Indisciplina: o contraponto das escolas democráticas. São Paulo: Moderna, 2003.

____ . Confrontos Na Sala de Aula. São Paulo: Summus, 1996.

CIFALI, Mireile. Freud Pedagogo? Psicoanálisis y Educación. SigloVeintiuno editores, s.a. de c.v. México. Primera edición en español, 1992.

CORDIÉ, Anny. Malestar en el docente. La educación confrontada con el psicoanálisis. 1ª ed.- 1ª reimp. 1– Buenos Aires: Nueva Visión, 2003.

FOULQUIÉ, Paul. Dicionário de Pedagogia. Barcelona: Oikos-tau, 1976.

FREUD, Sigmund. "Explicações, Aplicações e Orientações". "Novas conferências Introdutórias". (1933). In: ESB vol. XXII. Rio de Janeiro: Imago, 1976.

____ . "Prefácio à Juventude desorientada de Aichhorn". (1925) In: ESB vol. XIX. Rio de Janeiro: Imago, 1976.

GUIMARÃES, Oziris e WEISS, José. A universidade: O processo-ensino aprendizagem e o papel do professor como gestor do pensar. Revista Gestão Universitária, Edição Nº 64. Disponível em: www.gestãouniversitaria.com.br/indexphp. Acesso em 6 abr/05

KUPFER, M. Cristina M. Freud e a Educação. O Mestre do Impossível. 3ª. ed. São Paulo: Ed Scipione, 1995.

LACAN, Jacques. Os complexos familiares na formação do indivíduo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1987.

LAENG, Mauro. Dicionário de Pedagogia. Lisboa: Dom Quixote, 1973.

LAJONQUIÈRE, Leandro. A criança, "sua" (in)disciplina e a psicanálise. In: AQUINO, Júlio G. (org). Indisciplina na escola. Alternativas Teóricas e Práticas. São Paulo: Summus, 1996.

MILLER, Jacques A. Problemas de pareja, cinco modelos. In: LA PAREJA Y EL AMOR. Conversación Clínica con Jacques-Alain Miller en Barcelona. Buenos Aires: 2003. p. 15-20.

MILLOT, Catherine. Freud antipedagogo. 3.ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1996.

SANTIAGO, A Lydia A Inibição Intelectual na Psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005.

SANTOS, Catarina A S. Impasses na Sala de Aula de Matemática: Indisciplina, Ensino-Aprendizagem e Subjetividade. 2005. 172 fl. Dissertação (Mestrado em Educação) Universidade Federal De Minas Gerais. Belo Horizonte.