7Dilema na sala de aula: indisciplina e autoridadeO "não-dito" e o compreendido: qual o lugar da criança? author indexsubject indexsearch form
Home Pagealphabetic event listing  




 ISBN 978-85-60944-12-5

An 7 Col. LEPSI IP/FE-USP 2009

 

8/11 - COLÓQUIO - COMUNICAÇÕES LIVRES

 

A criança errante

 

 

Claudia Rosa Riolfi

GEPPEP/FEUSP; Contato: riolfi@usp.br

 

 


RESUMO

No presente trabalho, tomamos como objeto de análise os manuscritos escolares, compreendidos como os textos produzidos por alguém que escreve na condição de aluno, tendo a instituição escola como o cenário que contextualiza e situa o ato de escrever (CALIL, 2008: 25). Trata-se de um fruto das investigações realizadas no Grupo de Estudos e Pesquisa Produção Escrita e Psicanálise – GEPPEP, no qual temos desenvolvido coletivamente o projeto de pesquisa Movimentos do Escrito. Focalizamos um fenômeno bastante comum quando uma criança escreve de modo espontâneo: a troca de uma letra, no caso, a ocorrência de "U" no lugar de "A". A partir da leitura das principais teorias que versam a respeito de aspectos relacionados à aquisição da linguagem escrita, mostraremos como o manuscrito que tomamos como objeto de análise, produzido por uma criança de cinco anos e quatro meses, excede o âmbito daquelas nas quais a dimensão da singularidade não está considerada. Propomos, então, que a produção deliberada de uma forma lingüística desviante da norma ortográfica seja considerada como um "falso erro", um desvio criativo, uma expressão da subjetividade da criança que, se apoiando no equívoco como um fato estrutural da linguagem, gera uma criação, um rudimento de um estilo singular.

Palavras-chave: escrita; manuscrito escolar; singularidade.


 

 

INTRODUÇÃO

O presente trabalho toma como objeto de análise os manuscritos escolares, compreendidos como os textos produzidos por alguém que escreve na condição de aluno, tendo a instituição escola como o cenário que contextualiza e situa o ato de escrever (CALIL, 2008: 25). É fruto das investigações realizadas no Grupo de Estudos e Pesquisa Produção Escrita e Psicanálise – GEPPEP, no qual temos desenvolvido coletivamente o projeto de pesquisa Movimentos do Escrito.

Alinha-se com estudos anteriores nos quais busquei interrogar as condições de produção da criação por meio das palavras. Trata-se de textos nos quais, observando a subversão da linguagem por parte de crianças pequenas, podemos compreender que as palavras são velhas apenas na medida em que supomos que o signo lingüístico funciona de modo indecomponível (RIOLFI, 2005 e 2006). Ao contrário, quando, de algum modo, a criança encontrou seu caminho em direção ao exercício do jogo combinatório que, por meio de deslocamentos metonímicos e condensações metafóricas (JAKOBSON, 1969), fundamenta o jogo simbólico, obtém-se um efeito de sentido que corresponde à irrupção da criação.

Em nossos estudos a respeito da invenção que se dá por meio da escrita, temos mobilizado a hipótese de que o processo de criação é regulado por duas vertentes que estão em constante tensão, produzindo efeitos nas aulas de língua materna: a cultural (que tende para o uno) e a subjetiva (que o estilhaça e o refrata). Neste contexto, interessa-nos considerar as diferenças entre erro (fato lingüístico que rompe com a cultura sem vantagem para a expressão subjetiva) e desvio criativo (fato lingüístico que subverte a cultura em proveito da expressão da singularidade de quem escreve).

Visando a focalizar como os desvios criativos tendem a ser considerados no âmbito das principais teorias que versam a respeito de aspectos relacionados à aquisição da linguagem escrita, vamos focalizar um fenômeno bastante comum durante o ato de escrever, em especial quando se trata de crianças pequenas escrevendo de modo espontâneo: a troca de uma das letras de uma palavra.

De fato, durante o período em que se dedica a aprender a escrever, mesmo que não tenha oportunidade para fazer muitas coisas além de copiar, uma criança mais erra do que acerta. Justamente por isso, talvez, seu erro se configure em objeto de interesse das diversas disciplinas que são mobilizadas por aqueles que se dedicam ao ensino da Língua Portuguesa e/ou à pesquisa que se volta a esclarecer suas causas, buscando explicá-las.

Entretanto, existem erros que extrapolam a todas as tentativas de explicação conhecidas. O adulto depara-se com eles e, recorrendo a teorias diversas, não encontra dispositivos para ancorar um gesto interpretativo que permita se apropriar dos movimentos da escrita realizados pela criança. Por este motivo, as ações da criança que os cometeu permanecem veladas. Nestes casos, a única certeza por parte do intérprete é a de que a criança errou, mas seus motivos lhe escapam. A seguir, mostraremos que este é o caso da troca de letras que aparece no manuscrito escolar tomado como objeto de estudo neste trabalho.

Esclarecemos preliminarmente que esta produção foi alvo de nosso interesse desde o momento em que o adulto envolvido interpretou uma troca de letras na grafia de um nome próprio como sendo um erro, mas não se ateve às respostas prêt-à-porter para analisá-lo. O cenário onde o manuscrito foi coletado é uma escola particular na capital de São Paulo. A época, a segunda semana de aula do ano letivo de 2006, mais especificamente o primeiro ano da escola básica (antigo pré-escolar). Os protagonistas, a professora alfabetizadora, responsável por narrar a cena à pesquisadora e um de seus alunos, um menino de cinco anos e quatro meses à época. A tarefa solicitada pela professora era a de que cada um de seus alunos fosse até o quadro-negro e tentasse escrever o nome de um de seus colegas, sem se valer de qualquer tipo de modelo ou ajuda externa. O garoto escreveu o nome de uma de suas colegas de sala, tal qual ele se encontra reproduzido na figura 1, que se segue:

 

 

Percebe-se que, ao grafar o nome próprio "Camila", o garoto produziu um manuscrito no qual consta a letra "U" onde "A" era esperada. Esta troca chamou a atenção da professora, que se dispôs a pensar a seu respeito. No que se segue, vamos deliberadamente suspender a narrativa a respeito do desenrolar dessa história por alguns motivos para que possamos, a partir desta troca de letras, fazer um exercício analítico cujo foco é a interpretação dos erros cometidos por crianças.

Como um adulto teria interpretado este manuscrito a partir de algumas das teorias vigentes nos estudos a respeito da aquisição da escrita? Para responder a esta questão, recorreremos a dois tipos de teorias: o primeiro constitui-se das principais teorias utilizadas para explicar como a aquisição da escrita se dá sem levar em conta a singularidade, e o segundo refere-se à elaboração a respeito da escrita feita no interior da psicanálise, campo no qual a singularidade ganha relevo.

 

AS TEORIAS QUE NÃO LEVAM EM CONTA A SINGULARIDADE E A TROCA DE LETRA DA CRIANÇA

Para mostrar como o manuscrito "Cumila" tenderia a ser interpretado por uma pessoa que estivesse embasada nas abordagens mais comumente encontradas nos cursos de formação de professores, no que segue consideraremos os principais aspectos de três delas, a saber: Emília Ferreiro (1990), Vygotsky (1988) e a de Miriam Lemle (1998).

Lendo a troca de letra da criança com Emília Ferreiro

Escrevendo no estado São Paulo, onde o chamado "construtivismo" configurou-se em um boom a partir da década de oitenta, não há como iniciar este diálogo com as teorias que se voltam para a aquisição da escrita por outro lugar que não o trabalho da psicolinguista argentina Emília Ferreiro.

Aluna de Jean Piaget, Ferreiro mobilizou os conflitos inerentes a cada tentativa de representar uma palavra como a mola propulsora que faria as crianças se apropriarem da escrita. Por meio de seu longo trabalho de investigação para responder como as crianças pequenas se apropriam do sistema de representação alfabético, Ferreiro pôde postular a existência de fases – não inteiramente passíveis de serem superadas por inteiro – ao longo do processo de aquisição.

A primeira se refere à necessária diferença entre o desenho e a escrita, ou, de forma mais geral, às diferenças entre os modos de representação icônicos e não icônicos. A segunda, ao esforço necessário para a construção de diferenciações das formas de escrita produzida. Comparando as diversas produções de crianças que se encontravam neste momento de sua elaboração, Ferreiro postulou que, ainda ignorantes das possíveis equivalências sonoras, as crianças mobilizavam variações qualitativas e quantitativas para distinguir uma "palavra escrita" de outra.

Na terceira, está pressuposto que o elemento sonoro já passou a fazer parte das preocupações da criança, uma vez que, neste momento, a autora argentina postula que a criança segue a regra de representar cada emissão sonora (uma sílaba) por um fonema, em geral, aquele que representa o elemento mais sonoro de cada uma das sílabas.

Seguindo o raciocínio da pesquisadora, o professor seria capaz de fazer algumas antecipações a respeito de como cada significante seria escrito. Tomando aqui como exemplo a palavra "CACHORRO", ele poderia antecipar a forma mais provável de sua aparição em uma produção espontânea de uma criança: A – O – O.

São palavras como estas, nas quais o segmento mais sonoro é repetido em mais de uma sílaba, aquelas que, no raciocínio de Ferreiro, fazem a criança progredir desta fase. Levando em conta as dificuldades inerentes destas repetições, a criança seria obrigada a mobilizar elementos que permitissem a diferenciação entre o primeiro e o segundo "O" e, ao fazê-lo, construiria a hipótese silábico-alfabético de representação. De modo análogo, viria, por fim, a alcançar a representação alfabética.

Acompanhando o raciocínio da autora, percebemos que o manuscrito tomado por nós como objeto de análise apresenta uma produção que pode ser classificada como tendo sido efetuada por uma criança que já construiu a hipótese alfabética de representação. Com exceção da segunda letra, cada uma das letras grafadas por ela apresenta correspondência sonora com o fonema representado.

Assim, a troca de "A" por "U" efetuada pela criança não está prevista em nenhuma das três fases descritas por Ferreiro. Pode-se concluir, portanto, que, caso estivesse embasada nesta teoria, a professora que coletou este manuscrito teria tendido a não dar maior relevância ao erro encontrado, uma vez que poderia interpretá-lo como sendo uma distração por parte do aluno.

Lendo a troca de letra da criança com Vygotsky

Tendo em vista a apropriação dos "processos psicológicos superiores" por parte do homem, o psicólogo russo Vygotsky lançou mão, em primeiro lugar, da categoria "internalização", ou seja, a reconstrução interna de uma operação externa que consiste em uma série de transformações. Para o autor, a internalização das "atividades socialmente enraizadas e historicamente desenvolvidas constitui o aspecto característico da psicologia humana.". (VYGOTSKY, 1988:65).

Tomando os impasses que se apresentam quando uma criança aponta algum objeto, o autor mostra que a internalização se passa em três níveis. O primeiro refere-se à reconstrução interna de uma atividade externa. O segundo, quando um processo interpessoal é transformado em intrapessoal. Por fim, a internalização chega a seu ápice quando a transformação de um processo interpessoal consiste no resultado de uma longa série de eventos.

Em poucas palavras, pode-se dizer que o russo atribui o desenvolvimento psicológico dos homens à parte do desenvolvimento histórico de nossa espécie. Propõe, portanto, uma abordagem dialética entre homem e natureza, que se influenciariam mutuamente. Segundo Jerome S. Bruner — que assina a introdução do livro Pensamento e Linguagem — uma das principais contribuições do psicólogo russo foi o conceito de "atividade mediada", ou seja, compreender que as "ferramentas sociais" moldam nossos modos de lidar com o mundo (VYGOTSKY, 1991).

É, portanto, de dentro de uma hipótese de trabalho mais ampla segundo a qual a tecnologia resulta "na separação entre as leis da natureza e as leis do pensamento, e os atos mágicos começam a desaparecer". (VYGOTSKY & LURIA, 1996: 149). Na seqüência, o autor apresenta a sua concepção de escrita como sendo um dos recursos técnicos da cultura:

Paralelamente a um nível superior de controle sobre a natureza, a vida social do homem e sua atividade de trabalho começam a exigir requisitos ainda mais elevados para o controle do próprio comportamento. Desenvolve-se a linguagem, o cálculo, a escrita e outros recursos técnicos da cultura. Com a ajuda desses meios, o comportamento do homem ascende a um nível superior.

(VYGOTSKY & LURIA, 1996: 149)

Considerando a escrita, portanto, como uma atividade socialmente enraizada e historicamente desenvolvida, a pesquisa do autor convoca o professor para uma posição bem mais ativa do que aquela prevista para os partidários da orientação ferreireana.

Trata-se, aí, de trabalhar para construir relações sociais no grupo de alunos para que, em primeiro lugar em contexto "externo", ou seja, em seus embates com os colegas, a criança possa, paulatinamente, transferir para o âmbito "interno" as hipóteses a respeito deste "simbolismo de segunda ordem" que tenha podido se apropriar.

Acompanhando o raciocínio do autor, percebemos que o manuscrito apresenta uma produção que testemunha uma boa apropriação, por parte do aluno, das regras do grupo social no qual está inserido. Ele compreendeu a natureza da tarefa proposta pela professora e, aparentemente, não demonstrou dificuldades mais graves do que as esperadas na faixa etária durante a sua realização.

Assim, dificilmente a professora tenderia a analisar a troca de "A" por "U" na grafia de "Cumila" como uma dificuldade de internalização das regras da simbolização. Muito provavelmente, portanto, também tenderia a pensar que tinha estado frente a um erro de distração, um fato isolado sem maiores conseqüências.

Lendo a troca de letra da criança com Lemle

O trabalho de Lemle, best-seller entre professores em formação, tem como fio condutor a dificuldade para superar a parcela de decepção que está implicada na impossibilidade de correspondência biunívoca entre os sons de uma dada língua e as letras usadas para representá-los como a fonte de erros previsíveis. A autora pressupõe que a avaliação dos erros pode ser usada para diagnosticar, com bastante precisão, a etapa do processo de aquisição em que cada criança se encontra. Para ela, existem três ordens de erros que podem servir como guia para o trabalho do professor.

Os erros de primeira ordem são aqueles relativos ao domínio das capacidades prévias da alfabetização. Por sua vez, os de segunda ordem seriam aqueles relativos à retenção da hipótese monogâmica, isto é, devidos à falsa crença de que, em português, existe uma relação de um a um entre letra e fonema. Por último, os erros de terceira ordem seriam aqueles relativos à troca de letras concorrentes, isto é, aquelas que não podem ser determinadas a partir da posição da letra na palavra.

Acompanhando o raciocínio da autora, percebemos que, com exceção da troca de "A" por "U", a criança testemunhou já ter construído uma possibilidade de expressão escrita na qual apenas os erros de terceira ordem – por exemplo, trocar "S" por "Z" em uma palavra como "CASA" – são esperados. Assim, o erro cometido por ela excede a todas as tentativas de domar as produções desviantes de uma criança. Mais uma vez, portanto, caso estivesse embasado nesta teoria, a professora teria tendido a interpretar o erro do aluno como sendo fruto de uma distração circunstancial.

Em poucas palavras, as abordagens do erro da criança que acabamos de mencionar tem um ponto comum apesar de serem muito diversas: tentam encontrar um fio condutor, uma sistematicidade que permita domar o erro ao encontrar suas causas. Quando estas não são passíveis de serem encontradas, a tendência daquele que tenta interpretar o manuscrito é recorrer a uma categoria vaga e de comprovação empírica impossível: a distração.

Julgamos que a adoção de uma abordagem menos marcada pelos preconceitos do adulto em relação às crianças é necessária para que possamos compreender a possibilidade de criação por parte de uma criança. Por essa razão, a seguir procuraremos mostrar que a consideração de um manuscrito escolar à luz da psicanálise pode abrir importantes possibilidades de reflexão para os interessados na pesquisa a respeito da escrita e de seu ensino.

 

A PSICANÁLISE E A TROCA DE LETRA DA CRIANÇA

Tomaremos aqui alguns trabalhos de psicanalistas que se voltaram à investigação de aspectos relacionados à escrita e ao ato de escrever, a saber: Lacan (1975-76), Allouch (1995) e Pommier (1993). Em poucas palavras podemos dizer que, abolindo a distinção entre um "dentro" e um "fora" e, portanto, inutilizando as fronteiras entre homem e cultura, a psicanálise mostra que o trabalho pedagógico recebe seu limite da singularidade do professor e de seu aluno.

Um primeiro ponto a ser considerado pela psicanálise de orientação lacaniana a respeito das diferenças possivelmente trazidas para a reflexão acerca das trocas de letras por parte de crianças é que a teoria da aquisição de escrita que dela se depreende mostra os limites das teorias expostas na seção precedente. Por este motivo, convoca o professor que se fundamenta neste campo para um movimento paradoxal: por um lado, assumir os limites de sua própria possibilidade de atuação e, por outro, inventar uma prática pela qual possa se responsabilizar. No que segue, veremos como.

Lendo a troca de letra da criança com Lacan

Embora Jacques Lacan não tenha se dedicado em momento algum a elaborar uma "teoria da aquisição da escrita", uma preocupação com a relação entre o sujeito e o escrito perpassa toda sua obra. No Seminário 23 (LACAN, 2007), um dos últimos que proferiu, em meados da década de setenta, o psicanalista postulou a existência de duas acepções distintas para o termo "escrita".

A primeira se refere às construções lógico-matemáticas que dão suporte ao pensamento sem o apoio das palavras, como, por exemplo, os esquemas e diagramas destinados a dar a ver relações de causa e conseqüência, antecedente e conseqüente etc. Já a segunda, refere-se às formalizações gráficas que, em cada cultura, representam as palavras.

Leia-se um fragmento da aula de 11 de maio de 1976 no qual o psicanalista discorreu a respeito de uma das construções utilizadas por ele, no caso, o nó borromeano (nó bo), para transmitir a seu público como ele pensava ser a configuração do aparelho psíquico humano:

Para dizer a verdade, o nó bo muda completamente o sentido da escrita. Ele dá a tal escrita uma autonomia, ainda mais notável por haver uma outra escrita, aquela que resulta do que poderia ser chamado uma precipitação do significante. É sobre ela que Derridá insiste, mas fica bem claro que eu lhes mostrei o caminho, como já indica suficientemente o fato de que não encontrei outro modo de dar suporte ao significante senão pela escrita grande S.

O que permanece é o significante. Mas o que se modula na voz não tem nada a ver com a escrita. Em todo caso, é o que demonstra perfeitamente o meu nó bo, e isso muda o sentido da escrita. Isso mostra alguma coisa em que podemos enganchar os significantes. E como estes significantes podem ser enganchados? Por intermédio do que chamo diz-mensão.

(LACAN, 2007:140-141).

Ao lermos o fragmento, é possível perceber que Lacan liga a primeira acepção de escrita – dispositivo para dar suporte ao pensamento – com o lugar desde onde um sujeito profere seus enunciados (a diz-mensão, a morada do dizer). Por conseguinte, levar em conta esta elaboração lacaniana para interrogar a troca de "A" por "U" na grafia de "Cumila" nos faz refletir em dois níveis.

Se levarmos em conta a acepção de escrita que se refere às formalizações gráficas utilizadas para representar as palavras, não teremos um resultado muito diferente daquele apresentado nas seções precedentes. Entretanto, se levarmos em conta a acepção de escrita ligada ao suporte do pensamento, relacionada ao nível da "diz-mensão", torna-se necessário iniciar uma interrogação a respeito da posição do sujeito que trocou as letras. Ele sabia? Percebeu? Construiu uma explicação para isso? Ou era apenas uma criança que errava?

Lendo a troca de letra da criança com Allouch

Allouch (1995) postula a existência de três mecanismos distintos compreendidos no ato de escrever: transcrever, traduzir e transliterar. Tomando como exemplo a tarefa escolar do "ditado", podemos dizer que, para escrever determinada seqüência de palavras ditada pelo professor, o aluno precisa necessariamente realizar três ações: 1) decidir qual sistema de representação usará para grafar a palavra e, se necessário, alterá-lo (transliteração); 2) tomar uma decisão prévia a respeito do sentido do sintagma vozeado pelo professor que se propõe a escrever (tradução); e 3) apelar ao som interno a cada uma dos segmentos das palavras para buscar a correspondência entre letras e fonemas (transcrição). Trocando em miúdos:

Levar em conta a pontuação de Allouch para analisarmos a troca de "A" por "U" na grafia de "Cumila" nos leva, portanto, a ter que discriminar os níveis nos quais a troca incidiu. Gera-se, então, uma série de perguntas que permanecem sem respostas, a saber: Trata-se de uma dificuldade de transcrição? Se o aluno não errou no segundo "a" da palavra "Camila" seria lícito pensar que ele desconhece a correspondência sonora entre este fonema e a letra? Caso a troca de letras tenha sido deliberada, indicando uma ação do aluno para mudar o sentido, é lícito chamá-la de erro? Trata-se de um erro ou de uma ação que reverbera no nível da tradução? Em outras palavras, o aluno errou ou foi poeta ao subverter a grafia do nome de sua colega?

Lendo a troca de letra da criança com Pommier

Gérard Pommier (1993) norteia-se em uma hipótese de trabalho segundo a qual, no que se refere ao estudo do ser humano e de suas produções, a filogênese é idêntica à ontogênese. Assim estabelece relações intrínsecas entre os tempos do Édipo, descritos por Lacan no início de seu ensino, e o processo de formalização da escrita alfabética.

Sua obra é dividida em duas partes. Na primeira, o autor examina o percurso que as civilizações da Antiguidade realizaram com relação à escrita, concluindo que a possibilidade da criação de um sistema de representação da fala por meio de vogais e de consoantes funda-se no recalcamento da imagem corporal imposto às civilizações pela passagem do politeísmo ao monoteísmo.

O autor acredita que, como uma conquista da humanidade, a escrita deve renascer em cada criança que consegue encontrar a chave para a representação alfabética. Assim, o autor postula que, de maneira análoga ao processo experimentado pelos antigos egípcios, para quem o desenho representativo do som esvaziou-se progressivamente de sua carga imaginária até atingir o estatuto de letra, a escrita só se reatualiza para cada ser humano nos diferentes momentos de sua evolução psíquica quando um determinado percurso com relação à função simbólica foi completado.

Por sua vez, na segunda parte do livro o autor apresenta casos clínicos que tem como denominador comum as dificuldades no processo de aquisição da escrita por parte de crianças. A partir da análise das interferências dos conflitos psíquicos vivenciados por adultos em suas produções linguageiras, ele mostra como o quadro inicial das crianças foi modificado por meio de intervenções psicanalíticas.

Interrogando-se a respeito da origem dos lugares onde a escrita falha de modo mais elementar, mesmo para os escritores mais proficientes, o autor menciona que se trata aí do retorno da singularidade do nosso corpo, singularidade esta que nos foi imposta e que, a partir do advento do recalcamento, todos nós gostaríamos de esquecer.

Levar em conta a pontuação de Pommier para analisarmos a troca de "A" por "U" na grafia de "Cumila" nos leva, portanto, a ter que questionar qual relação poderia haver entre a singularidade da criança que errou com a troca de letras que cometeu. Poderia esta troca ter sido cometida por outras crianças? Caso isto tivesse ocorrido, teria o mesmo sentido? Como levar em conta esta dimensão para interpretar a troca de letras e incidir sobre ela?

 

O FALSO ERRO E A CRIANÇA QUE ACERTA

A professora que coletou o manuscrito que aqui tomamos como ponto de partida para nossa interrogação a respeito de como a criança singular é compreendida no interior de várias teorias declarou não ter se apoiado em qualquer teoria para ler a troca de letras efetuada pela criança. Valorizamos seu gesto.

Em seu fazer pedagógico, ela intuitivamente se aproximou da perspectiva adotada por Calil, para quem, ao procurarmos os movimentos de autoria nos manuscritos escolares, poderemos nos deparar com "a interrupção de sentidos imprevisíveis, imprimindo em poemas um traço de singularidade e inventividade, mesmo que escritos em sala de aula". (CALIL, 2008: 145-6).

Ao se deparar com o nome próprio que o aluno escolheu para escrever, a alfabetizadora permitiu-se estranhar sua escolha. Segundo ela, já tinha chamado sua atenção o quanto o garoto que produziu o manuscrito antipatizava com a colega Camila, com quem, a todo custo, evitava conviver. Assim, quando o garoto pareceu estar escrevendo justamente o nome dela, entre todos os outros possíveis, sua professora resolveu prestar maior atenção ao seu traçado do que costumava fazer durante tarefas de igual natureza.

Quando percebeu que o aluno havia produzido um "U" quando deveria ter escrito uma letra "A", em primeiro lugar considerou a idade do garoto e o fato de que o ano letivo tinha acabado de começar. Quase decidiu por deixar o "erro" passar, até porque vários dos alunos não tinham conseguido escrever nome algum. O que a impediu de permanecer calada foi a sua curiosidade.

O que fez a alfabetizadora? Abriu mão dos preconceitos teóricos que sua formação poderia ter lhe imposto e, vislumbrando a possibilidade de que a criança talvez tivesse algo de interessante para dizer a respeito do próprio manuscrito, franqueou-lhe a palavra. Então, um surpreendente diálogo, que reproduzimos na seqüência, se passou.

Professora: – Camila se escreve com "A".

Aluno: – Eu sei.

Professora: – Então porque você colocou "U"?

Aluno: – Para consertar o nome.

Professora: – Consertar o nome? Não entendi...

Aluno: – O nome fica bem mais adequado à personalidade da Camila começando com "CU".

Era um falso erro, ou seja, uma grafia que se configura em forma lingüística desviante da norma ortográfica apenas aos olhos do leitor, mas não para quem o cometeu! Fruto de uma criança cujo caráter irreverente já se anunciava em tenra idade, este "erro" não poderia ter sido previsto em qualquer teoria. O que uma teoria qualquer teria podido fazer é, portanto, alertar o profissional da educação da riqueza que se vislumbra quando se dá voz à criança, errante apenas aos olhos de quem não consegue interrogá-la.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Há algo da ordem do impossível que precisa ser incluído por aquele que deseja a ensinar a escrever, isto em qualquer nível de ensino. Dar peso a este impossível evitaria, por um lado, que as teorias a respeito da aquisição da escrita fossem transformadas em metodologias de ensino da escrita e, posteriormente, em diretrizes governamentais para normatizar a palavra daqueles que, para se proteger do novo, precisam estar de acordo com os cânones a todo preço. Assim, o dito "resquício de problemas de alfabetização", entidade à qual os mais preguiçosos gostam de recorrer para se eximir da responsabilidade de ensinar, cai por terra.

Por que o adulto não reconhece a criação e, ao se deparar com ela, pensa se tratar de um erro? Provavelmente porque um preconceito o impede: ele pensa que a criação se dá por acúmulo (de saber, de tempo de vida) e ignora o fato de que, quando se trata de linguagem, o equívoco é um fato estrutural, e, por este motivo, "todo enunciado é intrinsecamente suscetível de tornar-se outro, diferente de si mesmo, se deslocar discursivamente de seu sentido para derivar para um outro" (PÊCHEUX, 1990: 53).

O falso erro é o produto do preconceito do adulto que, ancorado nas representações de criança que circulam em nosso tempo, interpreta a superfície textual que se lhe apresenta sem se deter na investigação do que a criança poderia esclarecer a respeito de sua escrita, caso tivesse a chance de olhar para isso. Trata-se, na verdade, de um erro de leitura por parte do adulto, que, menosprezando a capacidade criativa da criança, não se deixa tocar pelos efeitos de sentido que poderiam estar presentes caso a representação de criança não impedisse de incluir a criança viva.

O falso erro, portanto, se correlaciona com o que Pêcheux chamava de "formações imaginárias" que, nas palavras do autor, "designam o lugar que A e B se atribuem cada um a si e ao outro, a imagem que eles fazem do seu próprio lugar e do lugar do outro". (PÊCHEUX, 1990: 82). Para furar as representações imaginárias de "criança", o presente trabalho vai, portanto, na mesma direção já apontada por Barzotto (2006) em sua defesa da pertinência que um estudo dos "mecanismos lingüístico-discursivos mobilizados para dar consistência a um imaginário poderia trazer para ultrapassar a compreensão do que seja uma criança a partir do que propõe o autor do texto, em detrimento do que sua própria experiência teria permitido construir".

Assumimos aqui, portanto, sua denúncia de que "os trabalhos acadêmicos sobre o ensino freqüentemente mobilizam, de forma explícita ou implícita, um saber pretensamente universalizável sobre crianças, delineando, deste modo, uma 'imagem de criança' aos olhos do leitor" (BARZOTTO, 2006).

A criança que erra para fins lúdicos testemunha sua capacidade de se abrir para o interdiscurso, e, ao conseguir escutar seus ecos, encontra modos de expressar afetos que, de outro modo, permaneceriam no campo do não dito. Assim, consideramos que o falso erro é irmão da singularidade. Quando uma criança erra porque quer, não se trata de uma questão de escola, mas de estilo.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALLOUCH, Jean. Letra a Letra. Transcrever. Traduzir, Transliterar. Rio de Janeiro: Campo Matêmico, 1995.

BARZOTTO, Valdir Heitor. A criança falada e a cena de quem a fala. In: COLÓQUIO DO LEPSI IP/FE-USP, 5., 2006, São Paulo. Anais eletrônicos... Disponível em: <http://www.proceedings.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=MSC0000000032006000100012&lng=pt&nrm=abn>. Acesso em: 06 Abr. 2008.

CALIL, Eduardo. Escutar o invisível: escritura & poesia na sala de aula. São Paulo: Editora UNESP; Rio de Janeiro: FUNARTE, 2008.

FERREIRO, Emília. Reflexões sobre alfabetização. São Paulo: Cortez, 1990.

JAKOBSON, Roman. (1956). Dois aspectos da linguagem e dois tipos de afasia. In: Lingüística e comunicação. São Paulo: Cultrix/USP, 1969.

LACAN, Jacques. (1975-76). O Seminário. Livro XXIII. O Sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2007.

LEMLE, Miriam. Guia teórico do alfabetizador. São Paulo: Ática, 1998.

PÊCHEUX, Michel. O Discurso: Estrutura ou Acontecimento. Campinas, SP: Pontes, 1990.

_______________Análise automática do discurso (AAD-69). GADET, F. & HAK, T. (orgs). In: Por uma análise automática do discurso. Uma introdução à obra de Michel Pêcheux. Campinas: Editora da Unicamp, 1990. Pp. 61-161.

POMMIER, Gerard. Naissance et Renaissance de l'écriture. Paris : Presses Universitaires de France, 1993.

RIOLFI, Claudia Rosa. Equívoco e singularidade: subjetividade na fala de uma criança. In: Leitura, Múltiplos Olhares. Campinas, SP: Mercado de Letras. São João da Boa Vista, SP: UNIFEOB. 2005, v.1, p. 219-233.

____________________Criando o novo com as mesmas velhas palavras. In: COLÓQUIO DO LEPSI IP/FE-USP, 5., 2006, São Paulo. Anais eletrônicos... Disponível em: <http://www.proceedings.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=MSC0000000032006000100001&lng=pt&nrm=abn>. Acesso em: 06 Abr. 2008.

VYGOTSKY, Lev Semionovitch e LURIA, A. R. Estudos sobre a história do comportamento: O Macaco, o Primitivo e a Criança. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996.

VYGOTSKY, Lev Semionovitch. A Formação social da mente. São Paulo: Martins Fontes, 1988.

________________________ Pensamento e linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 1991.