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ISBN 978-85-60944-12-5 versão

An 7 Col. LEPSI IP/FE-USP 2009

 

8/11 - COLÓQUIO - COMUNICAÇÕES LIVRES

 

O "não-dito" e o compreendido: qual o lugar da criança?

 

 

Cristiane FiauxI; Oziléa ClenII

IPsicóloga e Psicanalista, Mestre em Ciências Sociais pela ENSP/FIOCRUZ, docente de curso de especialização da UNIG, pesquisadora do Laboratório de Pesquisas de Praticas de Integralidade em Saúde (LAPPIS - Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ), participante da linha de pesquisa Espaços Públicos, Instituições e Sociedade Civil - novas práticas de cuidado na saúde. Ex pesquisadora do Grupo Aleph - Pesquisa e Intervenção em Psicanálise e Educação (NIPIAC/UFRJ). Endereço: Rua Almirante Tamandaré, 66/627 – Flamengo, Rio de Janeiro, RJ. Tel.: (21)2558.1205. fiaux@grani.com.br
IIPsicóloga e Psicanalista. Especialização em Psicologia Clínica: Psicanálise com Crianças - Intervenção Precoce - Santa Casa da Misericórdia do Rio de Janeiro. Ex pesquisadora do Grupo Aleph - Pesquisa e Intervenção em Psicanálise e Educação (NIPIAC/UFRJ). Endereço: Rua Soriano de Souza 115/503 – Tijuca, Rio de Janeiro, RJ. Tel.: (21)2565.5392. ozileaclen@yahoo.com.br

 

 


RESUMO

A proposta deste trabalho é debater a respeito do lugar da criança em nosso tempo, a partir da crítica da Psicanálise à Ciência. Uma das conseqüências do discurso científico é o excesso de nomeações. Mas o que há por trás de cada nomeação? Ao passo que a nova ordem da cultura contemporânea produz modificações na subjetividade, a clínica psicanalítica prepara sua escuta para os novos desafios. Este debate se caracteriza por dar voz a algumas inquietações e questões pertinentes ao campo da clínica, pela necessidade de que analisemos as possibilidades de construção de novas idéias e ações, tendo como objetivo discutir os efeitos da nova ordem cultural sobre o sujeito criança.

Palavras-chave: Criança, psicanálise, ciência.


 

 

"Pois uma psicanálise não é uma investigação científica imparcial,
mas uma medida terapêutica.
Sua essência não é provar nada,
mas simplesmente alterar alguma coisa".
Freud, S.

 

A cultura de consumo, vigente em nossa época, aliada aos avanços tecnológicos e aos recursos de que a ciência lança mão para afirmar que pode quase tudo no campo biológico, aponta para um mundo desorganizado e para as conseqüências nefastas que incidem sobre a subjetividade. Estes vetores contribuem para a falência simbólica e para a facilitação do gozo. É um sistema que propõe negar a castração, além de privilegiar o coletivo, em prejuízo do particular. O que vemos é o máximo de individualismo, de lucros, valendo a lei da mercantilização. Nesse caso, nos indagamos: Quem é a criança do nosso tempo? Qual o lugar da criança nesse contexto? O que representa a criança para a família, para a escola, para a sociedade, para o Estado?

Para situar a criança na história, vamos buscar recursos em Ariès (2006), que descreve os movimentos sociais que propiciaram um lugar à criança. No final do século XVI, o movimento social, regulado pelas igrejas católicas e protestantes, tem um novo olhar para a criança: ela seria educada para ocupar na sociedade o lugar de "grande homem".

O autor nos traz informações sobre esse tema: na Idade Média, a criança não possuía espaço no núcleo familiar, sendo considerada um "pequeno adulto" e criada por amas que alimentavam e supriam suas necessidades básicas. Entre os séculos XVIII e XIX, a criança é nomeada como "pequeno homem" em função de suas vestimentas e hábitos seguirem os modelos dos adultos. É importante ressaltar que até esse momento não existia a categoria criança como tal, vindo a surgir somente com o movimento higienista. A partir de então, houve uma relevante evolução do conceito "criança" e do seu lugar na sociedade, que ainda hoje tenta preservá-lo.

No século passado, momento em que a sociedade já havia conferido à criança um lugar, o modelo de família era diferente do que se vive atualmente. Os homens saíam para o trabalho, responsabilizando-se pelo sustento da casa, e as mulheres cuidavam da prole e da manutenção do lar. Lacan (1938), em "Complexos familiares", traduz a família no século XX a partir de duas funções: a garantia da geração e a sobrevivência dos jovens. Os tempos atuais nos apresentam um cenário onde pais e mães saem ao trabalho e seus filhos ficam a cargo de cuidadores (creches, babás, parentes) devido às exigências da sociedade capitalista.

Segundo Áries, embora a criança fosse considerada um mini adulto, tinha a figura paterna como provedora da economia familiar. A partir de alguns acontecimentos históricos – Revolução Industrial, Movimento Feminista, Revolução Sexual –, o lugar da mulher na sociedade se modifica: busca o sustento, tarefa que outrora cabia ao homem e, na maioria das vezes, procura no meio familiar, assumir funções que são inerentes à figura masculina. O que podemos entender é que hoje a mulher passa a ocupar um lugar de poder maior, o que lhe confere uma posição fálica. O efeito disto é que o homem sai do lugar de provedor, lugar anteriormente só seu, e cria-se uma ambigüidade em relação aos papéis da estrutura familiar e, muitas vezes, um impasse. Segundo Lebrun1, já não há heterogeneidade de papéis, pois passam a ser homogêneos, isto é, tanto a mulher se torna co-provedora, como o homem também passa a participar das atividades domésticas. Com os laços sociais fluidos, podemos associar a isso o enfraquecimento da figura paterna.

Partimos do pressuposto segundo o qual a lógica da família contemporânea tem como referência o discurso capitalista, regido pela economia. Lacan (1969-70), em O avesso da psicanálise, apresenta o discurso capitalista como uma variação do discurso do mestre – o de domínio. Utiliza-o como um instrumento a fim de mostrar sua preocupação com o laço social e suas dificuldades a partir dessa cultura, em que o sujeito é supostamente completado por objetos, com os quais mantém uma relação de consumir e ser consumido. Temos, nessa mesma linha, o discurso médico que se assemelha ao do mestre - funciona por meio do domínio do dizer médico que advém da precisão das imagens e dos exames. Assim, o sujeito da fala, do inconsciente, fica fora do vínculo que outrora se estabelecia entre médico e paciente e confirmava a soberania clínica. Isto nos leva a interpretar que a subjetividade fica comprometida, uma vez que o discurso de domínio não dá espaço para o furo, para a falha.

Vemos assim que a cultura contemporânea se coaduna com o discurso capitalista prometendo a satisfação plena, porém, a psicanálise nos adverte ser um engodo. Outro aspecto que reitera a cultura do excesso é o fato de que o vazio deixado pelos pais é preenchido com objetos de consumo, exigidos muitas vezes pelas próprias crianças que, por outro lado, são tomadas como objetos de satisfação. Entretanto, é preciso ressaltar que a falta é primordial para a constituição do sujeito, pois sem ela não há desejo.

De certo modo, o panorama contemporâneo parece reeditar o tempo de outrora, uma vez que os pais têm deixado a cargo de outras pessoas a educação de seus filhos, só que seguindo os paradigmas atuais. Sobra-lhes pouco tempo para estarem com eles devido à rotina excessiva e desgastante de trabalho. Mas há também os pais que não querem saber de seus filhos.

No século XX, mais precisamente nos anos 60, a Psicologia criou novas formas para dar lugar à criança na sociedade e o seu dizer era o de não frustrar, não traumatizar e não dizer não. Abriu, assim, espaço para a criança ter uma suposta liberdade. Tanto escola, quanto família e Estado abarcaram o lema: "Educar com liberdade". Além disso, convencionou-se que, na escola, a criança passaria a chamar a professora de "tia". Essa aproximação favoreceu uma intimidade que contribuiu para enfraquecer a autoridade do educador. Poderíamos dizer que a Psicologia, a Pedagogia e a Medicina estão, de certo modo, aliadas à ciência, na medida em que buscam oferecer respostas e atender demandas, ao passo que a Psicanálise se ocupa da escuta do significante e, portanto, da singularidade do sujeito. Temos, atualmente, notícias de muitos psicólogos que se dizem psicanalistas com uma prática clínica que se aproxima do que é preconizado pelo modelo capitalista. Um exemplo disso é o atendimento a crianças de forma a estimular o consumo. Em vez de usarem o lúdico, que é uma das maneiras de a criança lidar com a pulsão de morte, muitos profissionais oferecem uma vitrine de objetos para que nada falte. Tais consultórios são equipados com todo tipo de brinquedos e as crianças vêm à procura do que o terapeuta vai lhes apresentar como novidade, sem que este atente para o fato de que o brinquedo é apenas um recurso para o manejo do significante. Assim como o discurso da ciência procura dar respostas, a cultura capitalista busca oferecer objetos para atender às demandas. O Estado, a educação, a ciência, a mídia encarnaram o lugar do "dito" no sentido de tamponar o vazio do objeto inapreensível. Podemos entender que esse "dizer" visa atender à demanda e impedir que o sujeito possa advir. A tentativa de compreender a criança se dá desse modo, uma vez que, quando há compreensão, algo se fecha porque há sentido. E sabemos que precisa haver brecha para o não-dito.

Assim, a mudança na constituição da aquisição de renda, somada à velocidade com que são realizados os afazeres cotidianos, os excessos experimentados pelo consumo variado em nossa sociedade e o pouco tempo destinado ao lazer e ao brincar trazem conseqüências para a formação das crianças, conseqüências nem sempre boas, é preciso ressaltar. Nesse cenário, a criança passa a ocupar o lugar de "mini adulto" de outra forma: a de sujeito e objeto de consumo. De outro modo, com a mercantilização do ensino, a criança precisa responder ao ideal dos pais, da escola, da sociedade e do Estado, levando uma vida agitada em função de uma agenda superlotada com inúmeros compromissos a cumprir. Pais querem equipar seus filhos com recursos educacionais variados, matriculando-os em cursos diversos e em inúmeros esportes, estabelecendo compromissos diários e ininterruptos talvez como tentativa de não deixarem seus filhos perceberem a falta que sentem de seus pais. Enquanto estão em atividade, pouco – ou nenhum – tempo sobra para pensarem em si próprios, para demandarem de seus pais a presença, o carinho.

Desde muito cedo, é estabelecida uma relação entre a criança e o ideal. Freud (1923) nos falou sobre isso quando tratou da constituição do Ideal do Eu e do Eu Ideal. Nos dias de hoje, a criança permanece referida a um ideal. No entanto, percebemos que essa relação se acentuou, uma vez que as exigências são cada vez maiores quanto mais a criança as cumpra. A criança hoje responde a demandas sem fim, similares a demandas do Supereu. Aqueles que não conseguem atingir o que a cultura vigente exige – completude, imperativo do sucesso, é preciso saber tudo, não pode haver falha – são excluídos. Quando há investimento para que a criança venha a "ser alguém", junto com ele está o propósito de "manter o capital", pois o sujeito só valerá pelo que produzir. Dito com outras palavras, somente os bem-sucedidos se estabelecem, não há espaço para faltas. Mas se a constituição do sujeito se estabelece através da falta, se o surgimento do sujeito se dá entre S1 e S2, se a falta não puder existir, como fica a subjetividade? Este é um dos impasses de nossa época, pois estamos diante de uma lei frouxa, sem interdito. Sabemos que para a psicanálise, a falta é estrutural.

Contudo, a criança é excluída quando não atende às demandas, ao ideal imposto. A exclusão pode aparecer na escola, por meio do fracasso escolar. Parece-nos que o "impossível de educar" é um modo de mostrar a falta, que para Cohen (2006) representa o sucesso do inconsciente. Poderíamos dizer que a criança que passa pelo fracasso escolar é, de certo modo, uma criança "ineducável"? Cordié (1996) nos indica que os ineducáveis sempre fizeram parte da educação escolar: são as crianças fracassadas que não obtêm o sucesso na escola. Mas se a escola é para todos, por que aqueles que não alcançam tal sucesso são segregados? Conforme a autora, "o fracasso escolar, opondo-se ao sucesso, indica um julgamento de valor; ora, esse valor é função de um ideal".2

Freud (1925/1937) também assinalou o fato de que educar é uma das tarefas impossíveis, ao lado de psicanalisar e governar. Kupfer (2005), por outro lado, irá dizer que impossível não significa irrealizável. Segundo a autora, a realização da tarefa da educação - bem como a da psicanálise - irá depender do desejo e da relação transferencial que se poderá estabelecer.

Seguindo o pensamento de alguns autores3, aventamos a possibilidade de que o fracasso escolar esteja relacionado ao sistema capitalista. De certo modo, a aliança entre educação e capitalismo se evidencia na medida em que ambos os sistemas privilegiam a lógica do coletivo no sentido de que cada um precisa se adequar ao sistema - embora saibamos que a filosofia capitalista preconize o individualismo. Essa aliança se faz notar não somente quando o um precisa, a todo custo, se adaptar ao todo, mas, sobretudo, quando percebemos a importação do sistema de "produção em série" para dentro da sala de aula, quando o sistema de avaliação do aluno está atrelado ao sistema de aprovação automática, por exemplo. Lucro, mais valia, "quanto mais, melhor" - essa é a diretriz do mundo do capital. Dá-se prioridade à quantidade em detrimento da qualidade. Nessa perspectiva, os modelos pedagógicos oferecidos pelo Estado - como a aprovação automática - aparecem como modos de demonstrar que há investimento na educação, que essa é para todos e que todos terão sucesso. No entanto, tratam-se de engodos, de promessas de um sucesso ilusório, para tamponar o fracasso escolar. Cohen (2006) articula fracasso escolar, capitalismo e segregação ao revelar que existem escolas particulares que funcionam de forma similar à ética capitalista quando convidam alunos reprovados a se retirarem da escola. O pensamento da autora parece traduzir, mediante algumas práticas educacionais, que a criança se torna objeto descartável por não responder ao ideal da escola que é o de alcançar o sucesso sempre e a qualquer custo.

Eis um dos paradoxos da educação: por um lado o direito de estudar de maneira digna fica restrito às classes privilegiadas economicamente; por outro, se o aluno não se enquadrar nos moldes da educação "perfeita", é eliminado. Constatamos, portanto, que, de uma forma ou de outra, nem escola e nem aluno podem falhar.

Nesse sentido, se a educação e o ambiente dignos para uma educação satisfatória ficam restritos às classes abastadas, abre-se uma reflexão sobre o ensino público em nosso país. Sabemos que, na rede pública, o ensino é precário, além do fato de que as crianças vivem, em sua maioria, abandonadas, à mercê da violência, muitas vezes iniciando um percurso "marginal". Os mais "afortunados", normalmente, se encontram no lugar de responder a um ideal.

Fiaux e Clen (2006) comentam a época atual como aquela que promete a satisfação do que se quer. As mesmas autoras ressaltam que há uma política "'laissez-faire' que acaba se afinando com o sistema vigente regido pela ética do consumo. Nesta configuração, o sujeito encontra-se à deriva, fruto do momento em que os parâmetros sócio-culturais encontram-se abalados pelo excesso de oferta"4. O próprio sujeito torna-se objeto consumível como nos diz Lacan, em "O Seminário – Livro 17" (1969-70).

Fica, portanto, explicitado que a hegemonia do capitalismo tem causado profundas transformações éticas e sociais. Nesse cenário em que a ética de consumo se sobrepõe aos valores morais, assistimos ao declínio da autoridade e ao enfraquecimento da lei. Percebemos novas e diversas configurações familiares – monoparentais, homoparentais, concubinárias entre outras. A este contexto se soma os artifícios científicos, tais como: barriga de aluguel, inseminação artificial, banco de esperma. A palavra de ordem em nosso tempo é a de que "tudo é possível". Como diz Lebrun (2004), os implícitos do discurso científico oferecem infinitas possibilidades para o homem atual. No entanto, o autor ratifica as afirmações de Freud e Lacan que nos dizem que a castração está para todos.

Nesse mesmo viés, a atitude dos pais em relação aos filhos deixa transparecer a permissividade e o comprometimento da lei, a qual limitaria o próprio narcisismo pela renúncia pulsional que daí decorreria. Em seu texto "Introdução ao Narcisismo" (1914), Freud se refere à criança como sendo "his majesty - the baby". Para os pais, nada deveria atingir seu bebê, nenhum fracasso, doença, morte, restrição, o que traz a idéia do "bebê majestade".

É claro que a sociedade atual é bastante diferente daquela de Freud no que tange às leis e proibições, aos acessos à mídia, à tecnologia. Temos a impressão de que em nossa cultura não vigora mais a idéia da autonomia como uma conquista limitada pela presença do Outro, mas uma autonomia que se pretende plena. O que antes poderia gerar culpa e arrependimento, agora gera angústia diante de uma luta constante e sofrida, em um processo de negar a castração. Em nossa sociedade, parece-nos que a criança está travestida de majestade, uma vez que os pais não a destituem desse lugar. O risco se inicia quando desse trono não se pode mais descer, quando os pais insistem em mantê-la nesse lugar ou são incapazes de movê-la de lá. Esse trono acaba por se tornar o enquadre de um gozo narcísico e ilusório, um engodo, uma idealização permanente.

Como será o futuro da sociedade e das crianças de hoje que não são munidas de condições para tolerarem frustrações e limites?

Nesse sentido, na sociedade contemporânea, assistimos ao crescimento da desordem e da violência em função da falta de limites. Quando as leis não funcionam, a criança - assim como o adulto - fica à vontade para agir como quiser e busca conseguir o objeto do seu desejo a qualquer preço. Desse modo, a sociedade se vê refém de crianças e adolescentes tirânicos que fazem seus alvos pais, professores e até colegas. Notícias nos chegam de que o "não-saber fazer" dos pais em relação aos filhos que nomeiam "sem solução", os leva a entregá-los à justiça, abdicando dos cuidados a eles destinados. Em outras palavras, quando a lei não se faz valer, o sujeito fica entregue ao princípio do prazer.

No que diz respeito às desordens no espaço escolar, observamos também o declínio da autoridade. É notório o quanto a escola demonstra um "não saber-fazer" com o aluno/sujeito que apresenta dificuldades na aprendizagem ou mesmo quaisquer alterações que fujam ao controle dos educadores. Uma vez que estes se eximem de uma posição de implicação diante da criança/aluno, lidam com ela fora de sua dimensão subjetiva, ficando a mesma na condição de objeto. Podemos dizer ainda que a posição de não-responsabilização de família e educadores é legitimada pela cultura atual. Para Cohen, o declínio da autoridade se faz perceber na relação entre o educador e o aluno, uma vez que, em relação à filosofia capitalista, todos se igualam e as posições se nivelam, em detrimento da posição de mestria na transmissão de saber, de um saber sem falta.

É interessante notar a articulação entre a cultura de consumo, a educação e o discurso da ciência. A ciência, propriamente, se interessa pelo corpo biológico. Temos notícias de que, por meio de sua parceria com a indústria farmacêutica, promove pesquisas no sentido de criar "novas" patologias com a intenção de vender medicamentos. Um dos públicos-alvo é a criança, que é assim tomada em sua dimensão orgânica, em detrimento de sua subjetividade.

Ilustremos: uma das conseqüências do discurso científico é o excesso de nomeações. Notamos o aumento do número de crianças e adolescentes etiquetadas com diagnósticos de "hiperatividade", "déficit de atenção" ou "depressão". Soma-se a essas patologias o fracasso escolar, que também surge como sintoma da contemporaneidade. Mas o que há por trás de cada nomeação? O apagamento da subjetividade pelo excesso do uso de siglas (TDA/H, TOD, TOC, TA) e de fármacos. Segundo Kupfer (2001), "para a psicanálise, o sujeito do inconsciente se constitui na e pela linguagem, sendo, portanto, feito e efeito da linguagem"5. Desde a fundação da Ciência, um dos seus muitos efeitos é obliterar - com seu discurso e seus fármacos - o sujeito da linguagem: ela foraclui o sujeito, não quer saber dele, embora queira saber de seu corpo com a intenção de "curar a carência de sentido do sujeito contemporâneo prescrevendo uma constante atenção ao corpo (...) na promessa de um ideal de saúde e longevidade"6.

Desse modo, além de estar comprometida com um ideal, a criança é público-alvo e objeto de experimento do discurso científico, na medida em que qualquer alteração de suas expressões, provocada pelo excesso de informações e tarefas, irá incluí-la em um quadro nosográfico. Psiquiatria e Neurociências seguem trabalhando para construir e promover padrões onde a criança deva se enquadrar. Alguns comportamentos são convertidos em patologias e as crianças passam a viver sob os efeitos de pareceres e diagnósticos. Nessa perspectiva, podemos dizer que a escola hoje está "medicalizada", na medida em que os encaminhamentos de alunos a especialistas não só desconsideram a história da criança, sua singularidade, como também demandam daqueles uma solução diagnóstica e farmacológica para um "problema" - o sintoma do aluno - que talvez esteja nas mãos da escola ou da família solucionar.

Nesse caso, podemos indagar: como fica o simbólico? Não somente a lei simbólica - no que diz respeito à autoridade dos pais e educadores, à escola como um espaço em que os limites devem ser respeitados -, mas também a capacidade de simbolização. Sabemos que muitas medicações afetam a capacidade de simbolizar. Em se tratando de crianças, o quadro se agrava, uma vez que o uso indiscriminado de fármacos pode causar efeitos colaterais a ponto de ficarem sonolentas e isso ser interpretado como desinteresse pelo ensino. Cordié confirma: "No contexto atual, podemos dizer que o fracasso escolar se tornou sinônimo de fracasso de vida".7

Tudo leva a crer que estamos diante de uma hegemonia da neurociência/psiquiatria atreladas à indústria farmacêutica com a intenção, mais uma vez, de tentar "construir um sujeito perfeito", dentro dos moldes econômicos. Desse modo, as tentativas são de reducionismo do campo psíquico. Assim, ao passo que tristeza, angústia, mal-estar, desejo, gozo - que são inerentes ao humano - sinalizam o aparecimento do sujeito, logo em seguida são interpretados como patologias e tamponados pelo saber científico por meio de um medicamento.

Podemos articular tais colocações com o que encontramos na clínica. Esta nos coloca diante de queixas inominadas, ao mesmo tempo em que é observada no paciente uma grande dificuldade em se posicionar e se implicar em sua condição subjetiva. Problemas de aprendizagem, fracasso escolar, desajustes diversos, depressão, passagem ao ato, ilustram o quanto a juventude atual se sustenta em promessas ilusórias, porém incentivada por um ideal, por uma imagem de perfeição narcísica e onipotente. Há mais gozo e menos desejo e nessa equação não sobra lugar para a fala.

O simbólico se introduz pela alternância presença–ausência e pela assunção da castração. Não havendo essa assunção, não há espaço para a falta e, conseqüentemente, para o desejo. O real que comparece na clínica nos convoca à escuta atenta e cautelosa quanto ao manejo de uma análise, uma vez que o sujeito se expressa pelas formações do inconsciente. Enquanto a ciência aponta para a verdade toda, para uma certeza, a psicanálise opera com o "não-todo", o "não-dito", com o sujeito dividido do inconsciente. O discurso da psicanálise é pautado no enigma, nos equívocos, no que falha para que possa emergir o desejo do sujeito. Por isso, a psicanálise trabalha com os não-ditos que estruturaram o sujeito, com o real do gozo, com a fantasia, com o que resta da sua relação com o Outro.

Onde há dúvida, vai haver desejo. Freud constrói toda sua teoria a partir de um saber inconsciente. Assim, o analista deve estar voltado para os atos falhos, para os chistes, para os intervalos das falas, para os sonhos. É esse sujeito que interessa à psicanálise, o sujeito do inconsciente. A psicanálise, portanto, tem a intenção de pesquisar o inconsciente, o que a difere da ciência.

Lacan afirma que "(...) antes de qualquer formação do sujeito, de um sujeito que pensa, que se situa aí - isso conta, é contado, e no contado já está o contador"8. Para contar sua história, para se separar daquilo que o Outro diz de si, é preciso que à criança seja oferecida atenção, uma escuta, um lugar. Ao invés da medicalização, um espaço de fala pode ser determinante em uma mudança de posição: alguém que é tomado como objeto de nomeação e de exclusão, passivo diante do Outro, tem a possibilidade de passar a sujeito ativo de sua própria história, de seu lugar e de seu destino.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família. Rio de Janeiro: LCT, 2006.

COHEN, Ruth Helena Pinto. A lógica do fracasso escolar: psicanálise& educação. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2006.

CORDIÉ, Anny. Os atrasados não existem: psicanálise de crianças com fracasso escolar. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996.

FIAUX, Cristiane e CLEN, Oziléa. "O que mantém educadores e alunos na escola?: Contribuições da psicanálise para a educação". In: Psicanálise, educação e transmissão, 2006, São Paulo. Anais eletrônicos... Disponível em: HTTP://www.proceedings.scielo.php?script

FREUD, Sigmund. O interesse educacional da psicanálise. In: O interesse científico da psicanálise. Rio de Janeiro: Imago, 1974, vol. XIII.

_______ O mal estar na civilização. Rio de Janeiro, Imago, 1976, vol XXI.

KUPFER, Maria Cristina. Freud e a Educação O Mestre do Impossível. São Paulo: Ed. Scipione, 2006.

____ Educação para o futuro. Psicanálise e Educação. São Paulo: Escuta, 2001.

LACAN, Jacques. Os complexos familiares, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1987.

____ O Seminário Livro 11 – Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.

____ O Seminário Livro 17 – O avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1970.

LEBRUN, Jean-Pierre. Um mundo sem limite – Ensaio para uma clínica psicanalítica do social. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2004.

LIMA, Rossano Cabral. Somos todos desatentos? O TDA/H e a construção de bioidentidades. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2005.

 

 

1 Lebrun, 2004.
2 Cordié, 1996, p.20.
3 Cf., por exemplo, Cohen (2006) e Cordié (1996).
4 FIAUX, Cristiane e CLEN, Oziléa. O que mantém educadores e alunos na escola?: Contribuições da psicanálise para a educação. In Anais do 6 Psicanálise, Educação e Transmissão, 2006 [online]. 2007 [citado 29 Novembro 2007]. Disponível em World Wide Web: <http://www.proceedings.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=MSC0000000032007000100026&lng=pt&nrm=iso>.
5 Kupfer, 2001, p.28.
6 Lima, 2005, p.43-4.
7 Cordié, 19996, p.20.
8 Lacan, 1964, p.26.