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 ISBN 978-85-60944-12-5

An 7 Col. LEPSI IP/FE-USP 2009

 

8/11 - COLÓQUIO - COMUNICAÇÕES LIVRES

 

A arte de educar e os giros do discurso

 

 

Daniel Revah

 

 


RESUMO

Nesta comunicação explora-se a concepção de discurso de Lacan para pensar o lugar do professor. Toma-se como base as estruturas dos quatro discursos apresentados por Lacan no final da década de 1960: o discurso do Mestre, o discurso do Analista, o discurso Universitário e o discurso da Histérica. Entende-se que o discurso Universitário pode ser tomado como pivô da posição de um professor cujos vínculos com os alunos permitiriam que se efetive o que é da ordem da educação e do ensino, mas com uma condição: a estrutura precisa girar. Se não gira, se as posições não mudam, inviabiliza-se a educação e o ensino. Por isso, explora-se a idéia de que a arte de educar e ensinar consiste em operar esses giros, sem perder de vista o que aí é essencial: o discurso Universitário, o saber na posição de comando, que é fundamental pelo menos quando a nossa referência é a escola moderna e as finalidades que a ela costuma-se atribuir.

Palavras-chave: discurso educacional, educação escolar, posição do professor


 

 

"Com os filhos tem que ser um pouco Piaget e um pouco Pinochet". Acompanhada de um tom conclusivo e de uma gargalhada, ouvi a "máxima" Piaget/Pinochet há alguns anos atrás, de uma mãe que falava sobre o dia-a-dia com os filhos. Guiada por essa sentença, essa mãe parecia orientar-se, na sua relação com os filhos, tendo em vista duas posições opostas e extremas, as quais podem ser (re)encontradas, embora de um outro modo, nos discursos que proliferam entre os profissionais da educação, quando se pensa a posição do professor a partir de duas posições limítrofes, ambas condenadas. Uma delas, a que se costuma criticar de forma mais veemente, corresponde à caricatura do professor tradicional: autoritário, preocupado em transmitir determinados conhecimentos e que reduz os alunos a uma posição passiva, de meros ouvintes de seus ensinamentos. A outra é a do professor espontaneísta, que peca por excesso de liberdade, outorgada a alunos que então se tornariam desrespeitosos e sem limites. A esse professor credita-se não apenas a indisciplina dos alunos, mas também a sua ignorância, fruto de uma concepção de ensino que deixaria quase tudo nas mãos dos alunos, ao professor cabendo apenas criar condições para que a aprendizagem ocorra, com pouca ou nenhuma interferência da sua parte. Entre esses limites, situar-se-ia o "bom professor", aquele que é capaz de manter uma posição equilibrada e eqüidistante desses extremos. Nem tradicional, nem espontaneísta: eis uma das máximas que devem nortear o professor.

Sob essa lógica, um terceiro lugar é procurado e até teoricamente delineado, em trabalhos acadêmicos que na verdade se sustentam nessas caricaturas que o discurso pedagógico consagrou, como pode ser observado em reflexões teóricas que já foram objeto de crítica1.

São caricaturas cujo efeito precípuo parece ser o de criar zonas proibidas para a ação do professor, mas sem que sejam consideradas as circunstâncias em que sua ação se desenrola.

Nesta comunicação procuro explorar outras possibilidades, na tentativa de arejar essa forma já cristalizada de pensar a posição do professor em face de seus alunos. Para tanto, tomo como referência básica a concepção de discurso de Lacan, em particular as estruturas dos quatro discursos que ele apresenta no final da década de 1960: o discurso do Mestre, o discurso do Analista, o discurso Universitário e o discurso da Histérica. Entendo que o discurso Universitário pode ser tomado como pivô da posição de um professor cujos vínculos com os alunos permitiriam que se efetive o que é da ordem da educação e do ensino, mas com uma condição: a estrutura precisa girar. Se não gira, se as posições não mudam, inviabiliza-se a educação e o ensino. Por isso, exploro a ideia de que a arte de educar e ensinar consiste em operar esses giros, sem perder de vista o que aí é essencial: o discurso Universitário, o saber na posição de comando, que é fundamental pelo menos quando a nossa referência é a escola moderna e as finalidades que a ela costuma-se atribuir.

 

1. Os quatro discursos

Quando Lacan conceitualiza o discurso, não se refere apenas ao que é da ordem do verbo, das palavras. Ele concebe o discurso como uma estrutura significante que em muito ultrapassa a palavra, sem ela, inclusive, "pode muito bem subsistir (...) em certas relações fundamentais" (Lacan, 1969-1970, p. 11). É um aparelho "cuja mera presença (...) domina e governa tudo o que eventualmente pode surgir de palavras". Os quatro discursos, portanto, são "discursos sem a palavra, que vem em seguida alojar-se neles" (ibidem, pp. 158-9). Isso não significa que dela possam prescindir. As palavras e a linguagem são necessárias para que aquelas relações fundamentais se mantenham. E mais do que isso, o que é da ordem dessas estruturas surge das próprias palavras, do uso da linguagem.

Concebido então como estatuto do enunciado, o discurso supõe a existência de quatro funções que sempre estão presentes nas várias formas do laço social se articular, definindo assim uma matriz básica sem a qual a comunicação e, portanto, o que é da ordem da significação não se produz. Essas quatro funções são: o significante-mestre S1, a rede discursiva S2 nele amarrada, o sujeito do desejo aí implicado e o que causa a sua incompletude, afigurando uma perda — o chamado objeto a. Esses quatro termos, essas quatro funções do discurso, com as relações que entre si estabelecem, constituem uma matriz simbólica, uma estrutura básica que ultrapassa e antecede os enunciados, mesmo que deles mesmos provenha.

Reduzido a quatro funções (significante-mestre, saber, sujeito e gozo) ou quatro letras (S1, S2, , a), o discurso também comporta quatro lugares para cada uma dessas funções ou letras2. A combinação desses termos nos lugares correspondentes — isto é, nos lugares que corresponderia ao funcionamento efetivo dos discursos — resulta em quatro estruturas ou figuras do discurso. Como o discurso é o que faz laço social, os quatro discursos correspondem a quatro formas possíveis de vínculo social e às posições que os sujeitos podem ocupar na rede intersubjetiva que os vincula. Eis então como Lacan apresenta essas quatro estruturas:

 

 

No sentido horário e começando pelo canto superior esquerdo, nessas quatro fórmulas, relativas a quatro configurações discursivas, temos o discurso do Mestre, o discurso Universitário, o discurso do Analista e o discurso da Histérica. Com relação ao manejo dessas fórmulas, Lacan afirma que é preciso seguir certas regras, que ele sugere de forma dispersa, vaga, sem muita precisão, a não ser por meio de setas e outros recursos usados nesses "esqueminhas quadrípodes" (1969-1970, p. 193)3.

Quanto aos lugares do discurso que os quatros termos ou funções podem ocupar, eis algumas das formas de Lacan os nomear e situar:4

 

 

Após esta breve apresentação das quatro figuras do discurso que Lacan estabelece, com os lugares e funções que comporta, vejamos então de que modo pode ser pensada a posição do professor, começando por situar o que está em jogo na educação escolar, considerando o que poderia ser aventado tendo como referência a escola moderna.

 

2. A educação escolar

Em toda escola, ensinar determinados aspectos da cultura cuja aprendizagem somente ocorre por meio de um trabalho sistemático e mais ou menos formalizado é um objetivo consensual, presente inclusive em diretrizes legais que orientam os sistemas de ensino. Além do mais, qualquer pai ou mãe, o mínimo que costuma esperar de uma escola é que ela cumpra com essa finalidade, ao trabalhar com a leitura e a escrita, com a matemática, com as ciências naturais e com tudo o que foi agrupado nas disciplinas escolares para promover a sua aprendizagem. À escola cabe introduzir as novas gerações nesse mundo da cultura cujo acesso só fica franqueado depois de um longo aprendizado, realizado sob certas condições. Acesso, para dizê-lo em outros termos, a determinadas tradições, a determinado passado que a sociedade recorta e organiza para suas crianças e jovens. Neles, espera-se que o ensino deixe determinadas marcas dessas tradições, desses passados autorizados pela sociedade e pela escola, mas sobretudo pelos professores. Representantes do nosso mundo, do presente e do passado, aos professores é delegada essa responsabilidade, de introduzir as crianças e jovens em nosso mundo e estabelecer uma filiação com determinadas tradições.5 Essa responsabilidade, é claro, não se reduz ao ensino de conteúdos escolares mais ou menos clássicos (pelo menos quanto aos nomes: língua portuguesa, história, etc.). A socialização da criança e do jovem, com tudo o que isso implica, é também uma finalidade inseparável daquelas aprendizagens e que cabe à escola promover. E nessa socialização, as ações e falas do professor e de outros profissionais que atuam nas escolas são modelares, pois estabelecem os contornos dos vínculos que crianças e jovens criam, entre si e com os adultos. Enfim, há um saber de adultos, do mundo adulto, do presente e do passado, que sob formas variadas procura-se transmitir a crianças e jovens. É um saber que a instituição escolar se propõe a comunicar, a transferir, a promover. Educar e ensinar numa escola supõe tudo isso e muito mais, é claro, mas o que já foi delineado é suficiente para situar o lugar do professor.

O professor, diante das próprias crianças e jovens, é o detentor de certos conhecimentos que eles ainda não possuem, saberes explícitos que ele é capaz de apresentar quando necessário e organizados de determinada maneira. Ao menos, é o que se espera de qualquer professor, mesmo que a sua forma de trabalhar com os alunos leve a pensar que não transmite qualquer conhecimento de modo direto, ao incentivá-los a pensar, ao apresentar problemas que os levam a investigar, ao sugerir a pesquisa de fontes que não ele próprio etc. A autoridade do professor reside, a princípio, nesse conhecimento, nesse saber que, supõe-se, ele detém. Sem esse saber, sem a autoridade que esse saber confere, o professor perde boa parte de seu estofo. Aceitar isso, implica pensar o professor numa posição que corresponde, nas estruturas que Lacan formula, ao lugar do saber (S2) no discurso Universitário.

É claro que o domínio de determinados conhecimentos por parte do professor, embora necessário, não é suficiente. Há questões de ordem didática, sobre as formas de ensinar e de organizar o trabalho em sala de aula, que a rigor não podem ser separadas do que o professor pretende ensinar. Sem contar uma diversidade de aspectos relativos à instituição escolar cujo conhecimento e capacidade de lidar com eles podem ser fundamentais em determinadas circunstâncias, na medida em que incidem na atuação do professor. Ensinar e sobretudo educar exigem, ademais, algo que ultrapassa o que é da ordem desses saberes explícitos, desses conteúdos parcialmente expostos em currículos e programas e do que os significantes pedagógico e didática costumam evocar e reunir. Simbolicamente, o professor, que é um educador, ocupa um lugar que o diferencia em face do aluno. Na dessimetria que o ato de ensinar e educar supõe, o professor-educador é a autoridade, ou melhor, deveria ser, sendo assim sustentado pela escola e por toda a rede simbólica que a recobre, envolvendo os discursos sociais que nessa instituição tem a sua fonte ou destinatário. Deveria ser, ainda, porque para ser professor é preciso que se situe no lugar de quem é capaz de sustentar uma posição subjetiva, mostrando-se implicado no que faz e diz, deixando transparecer um saber que ultrapassa os conhecimentos que a escola pretende transmitir ou comunicar e que faz com que seja respeitado, como um adulto que sabe orientar-se e orientar as novas gerações em relação ao mundo em que vivemos, um adulto cujas diretivas tendem a ser ouvidas e seguidas. Quer dizer, o professor, em face de seus alunos, na sala de aula, não se reduz à figura de quem domina os conhecimentos que tem de ensinar e as questões de ordem didática implicadas nesse ensino. Tampouco se reduz a alguém que é investido nesse lugar por uma instituição como a escola, sendo isso suficiente para torná-lo a autoridade diante dos alunos. Há sempre um saber – saber inconsciente – implicado na posição em que subjetivamente se situa diante de seus alunos, um saber que resulta da forma como se posiciona e vincula com eles e com o conhecimento que pretende comunicar, um saber relacionado com a sua posição na vida, com a sua posição no mundo. Esse saber não sabido, ligado a certo estilo, a certa forma de lidar com os alunos e com o conhecimento, essa forma de atuar que é peculiar a cada professor e que implica um saber que o próprio professor é incapaz de definir, um saber que está em suas palavras, em suas ações, em seu corpo, é o que também faz com que seja visto como a autoridade na sala de aula, mesmo nos contextos em que o discurso social tende a esvaziar esse lugar, que é o do mestre. A esse saber não sabido, implicado em determinada posição subjetiva, que é uma posição em face do próprio desejo e que envolve um modo do sujeito lidar com a sua própria falta, podemos atribuir o crédito dado pelos alunos ao saber que explicitamente o professor busca comunicar e que neles encontra ressonância, resultando em aprendizagens diversas, que extrapolam a ordem dos conhecimentos que a escola procura transmitir de forma intencional e planejada. Em outras palavras, o professor sempre transmite um saber que extrapola a ordem dos conhecimentos escolares, um saber não sabido atrelado a eles, os quais, diga-se de passagem, também lhe escapam, na medida em que mesmo que seja capaz de explicitá-los, nunca sabe ao certo quais as marcas deixadas em seus alunos e o que foi (re) criado a partir delas.

Situemos agora essas breves reflexões sobre a posição do professor recorrendo às estruturas que Lacan fornece, para assim repensar o que é da ordem dos giros discursivos implicados na sua atuação e que desdobram o que até aqui foi apresentado. Comecemos pela configuração discursiva que pode ser tomada como pivô da sua posição: o discurso Universitário. Nele, o professor, enquanto agente do discurso, dirige-se a um outro, ou melhor, a outros, seus alunos, idealmente colocados na posição de trabalhar. O professor, enquanto agente de um saber articulado, aparentado com o saber científico, dado que se trata de um objeto de ensino, um saber disciplinar próprio da escola, sustenta a sua posição com esse semblante, de quem detém um saber "objetivo", assim como outros professores, de outras escolas, um saber que a todos cabe igualmente ensinar. Nessa posição, o que fica recalcado é da ordem da subjetividade de quem ensina, do que há de singular no saber ensinado e em quem transmite esse saber – um professor cujo semblante nessa posição discursiva obscurece a dimensão subjetiva do que é ensinado. O que então se transmite ou comunica concerne a esse saber articulado, explícito, que tende a adquirir o semblante de um saber "objetivo", no sentido de que ultrapassa a figura singular de quem ensina. Trata-se de um saber "objetivo" apenas no seu semblante, pois a sua verdade, a verdade dessa posição, expressa na mesma fórmula que Lacan fornece (do lado esquerdo, embaixo), é a de um saber sustentado por uma posição subjetiva, dada por um significante (S1) que fixa um determinado sentido para cadeia significante S2. Isso ocorre a todo momento, em cada basteamento da cadeia significante desse saber articulado que o professor procura transmitir. Nesse jogo, entre S1 e S2, fixa-se determinada significação, pelo menos se enxergamos isso do ponto de vista de quem comunica esse saber. Do outro lado, porém, do lado do aluno, a produção da significação supõe outros enlaces, outros nós, relativos a uma outra posição subjetiva.

Nessa forma de comunicação que é própria do discurso Universitário, nos termos em que Lacan o define, os alunos estão no lugar do trabalho e trabalham de um modo que na teoria concerne ao chamado objeto "a". O que isso quer dizer? Esse objeto é da ordem do que não se deixa capturar, do que escapa e resta em toda operação discursiva. Podemos pensar então que nessa posição, na posição do aluno, este realiza um trabalho no qual algo é amarrado sem que essa amarração se complete, porque algo sempre escapa. É da natureza do objeto "a" que nele a rede simbólica sempre fracasse, pois é um elemento heterogêneo em relação a essa ordem. Com esse fracasso, articula-se precisamente o que é da ordem da impossibilidade que esse circuito efetiva: a educação. O que esse discurso então articula como a sua produção é o sujeito do desejo, o sujeito dividido, um sujeito com questões e dúvidas, mas que não ficam à vista, conforme sugere o aparelhinho de Lacan, no qual o sujeito dividido ($) encontra-se do lado direito, embaixo, no lugar da produção, que é o que resulta dessa configuração discursiva, desse tipo de ligação social.

Para que isso ocorra, para que essas questões e dúvidas apareçam, seria necessário um giro discursivo, de modo que o aluno se torne o agente do discurso. Esse giro, poder-se-ia dizer, produz a histerização do discurso, na medida em que o aluno torna-se o agente do discurso histérico, dirigindo-se ao mestre com questões e dúvidas que podem ser pensadas pelo menos em dois registros que Lacan discrimina para essa mesma configuração discursiva: o da histérica mesmo e o registro onde a ciência se configura. Esse giro e esses registros se fazem presentes na educação escolar, na sala de aula, de formas as mais diversas. Há uma, em particular, que é facilmente reconhecível, quando o "fazer desejar" – próprio do discurso da histérica e da impossibilidade que esse discurso efetiva – se articula na fala de um aluno, uma fala endereçada a um mestre de quem, na verdade, o que se quer é o seu desejo, o desejo do mestre, ou seja, o que aluno quer nessa posição é ser desejado por seu mestre, ser o objeto de desejo de seu mestre, de seu professor. É o que figura no lugar da verdade dessa configuração discursiva: ser o objeto "a". De quem? Do mestre (S1), a quem a fala é endereçada. Mas a posição dominante nesse discurso da Histérica corresponde também ao lugar onde a ciência nasce, o lugar onde afloram dúvidas e questões endereçadas a quem, supõe-se, é um mestre (S1) cujo saber (S2) permitiria respondê-las. Nessa posição, o aluno pode se tornar efetivamente um ser pensante, dependendo do modo como o outro, seu professor, se situe em relação à sua demanda, que no fundo é uma demanda de amor. Se a resposta do professor se dá no mesmo registro, ambos ficam presos numa relação narcísica e especular e a possibilidade que esse giro discursivo cria desaparece. Enfim, essa é uma possibilidade aberta por esse giro que permite romper o círculo da alienação primeira em que todo aprendiz precisa situar-se e que tem o seu ponto de partida no discurso Universitário. Esse giro discursivo encontra-se implicado, talvez, nesta afirmação de Lacan: "o que conduz ao saber não é o desejo de saber. O que conduz ao saber é (...) o discurso da histérica" (1969-1970, p.21).

A estrutura do discurso Universitário, embora seja aqui considerada o pivô da posição do professor, não é a única em que ele está no lugar dominante. Mesmo que o semblante de um saber "objetivo" a ser ensinado seja inseparável de seu lugar na educação escolar, como mestre também se sustenta na medida em que se situa de um modo singular diante de seus alunos e estes nele vêm um mestre, que sabe o que diz e cujas diretivas devem ser seguidas. Essa posição de Senhor, cujos mandamentos devem ser seguidos, corresponde à do agente no discurso do Mestre. Um mestre que endereça a sua fala aos que se encontram na posição de quem entende o que deve ser feito e sabe fazê-lo (S2), como é o caso quando um professor pede para organizar os materiais na carteira, abrir o caderno, copiar o que está escrito na lousa, sair de sala de aula, fazer silêncio e outras tantas ordens que o professor costuma dar na sala de aula, esperando que seus alunos respondam de acordo com o que pede, mesmo que isso não ocorra a contento. Afinal, toda forma do discurso, toda forma de comunicação supõe o que é da ordem de uma perda, num circuito que a rigor nunca se fecha. Aliás, os quatro discursos, enquanto formas possíveis de comunicação, correspondem a quatro maneiras de lidar com a perda de gozo que o circuito da comunicação sempre gera, como sugere Zizek (1992, p.173). No caso do discurso do Mestre, este nunca se vê inteiramente satisfeito, mesmo nesse circuito em que o que figura do lado da produção é o chamado objeto "a", que corresponde ao que falta ao mestre para se sentir completo. A incompletude do mestre é precisamente o que fica recalcado nesse circuito e constitui a sua verdade, a verdade do mestre. Este se realiza nessa posição na medida em que é obedecido e as suas ordens resultam em ações que produzem esse retorno, esse produto que na verdade não o satisfaz, mas permite que se realize o que é próprio dessa configuração discursiva: governar. Esta, aliás, é a impossibilidade que esse circuito torna efetiva. O discurso do Mestre é o discurso que faz com que as "coisas andem". E elas "andam" em razão dos que nesse circuito trabalham, obedecendo as ordens do Senhor e produzindo o que corresponde ao objeto "a". Digamos que eles, sem que isso apareça, sem que fique explícito, porque recalcado, se vêm reduzidos ao que é da ordem desse objeto. No limite, no registro da administração das coisas, há uma redução do outro desse discurso à dimensão de objeto, objeto daquele sujeito em falta () que na verdade sustenta e anima o Senhor, o Mestre (S1). Mas já vimos que essa redução nunca é plena, há sempre perda de gozo, um resto que não pode ser integrado nesse circuito que liga os sujeitos.

Essa posição de Senhor é o que fica recalcado no discurso Universitário. Ou seja, a verdade recalcada desse discurso, desse tipo de ligação social que caracteriza o que Lacan chama de mestre moderno, é a da que ele é mesmo um Mestre, que decide e ordena o que deve ser feito na sala de aula, desde uma posição subjetiva. Essa verdade recalcada surge de modo explícito o tempo todo numa sala de aula. A função do saber no lugar de comando, que opera quando o professor ensina, quando se situa na posição de comunicar um saber que o ultrapassa, é deslocada quando o mestre surge na sua singularidade, para atuar como Senhor, que ordena e espera que o outro responda sabendo o que fazer. E aqui estamos no discurso do Mestre (mestre antigo, no dizer de Lacan): o professor, Senhor de si e dos outros, que ordena, que impõe certos mandamentos e que, ao mesmo tempo, deixa oculto que a sua posição se sustenta sobre uma falha, sobre uma divisão que, caso seja explicitada, pode mostrá-lo na sua condição de sujeito atravessado por dúvidas sobre o seu ser, sobre o seu ser no mundo. Dúvidas impossíveis de responder de forma definitiva. Dúvidas que o colocam numa radical dependência do outro que é posto a trabalhar para o seu gozo, o outro que nunca o satisfaz plenamente.

O que foi apresentado neste texto são algumas das formas possíveis de pensar o lugar do professor, em posições que o tempo todo estão mudando, de acordo com giros discursivos que as formulações de Lacan permitem pensar e desdobrar, com os limites que são próprios desses aparelhinhos criados por ele e que, a meu ver, abrem possibilidades mas também tendem a encerrar-nos em leituras aprisionadas pelas letrinhas/funções dessas fórmulas – superar isso, aliás, é um desafio que permanece e enseja outras reflexões. Esses giros são indispensáveis no âmbito da educação escolar, não apenas porque o professor precisa mudar de posição, mas também porque os alunos precisam experimentar os diferentes lugares e posições que os laços sociais possibilitam. Educa-se uma criança na medida em que ela pode experimentar essas várias posições e giros discursivos. Isso faz parte da constituição subjetiva. Além disso, não é possível pensar essas estruturas senão girando. Se o discurso não gira, range, diz Lacan (1969-1970, p. 170), talvez porque é impossível que alguém se sustente na rede intersubjetiva que nos vincula ficando sempre na mesma posição.

 

Referências

ARENDT, Hannah (1972). Entre o passado e o futuro. São Paulo : Perspectiva.

BECKER, Fernando (1993). Epistemologia e ação docente. Em Aberto. Brasília : INEP, ano 12, n° 58, abr./jun.

LACAN, Jacques (1969-1970). O seminário, livro 17: O avesso da psicanálise. Rio de Janeiro : Zahar, 1998.

SILVA, Tomaz T (1994). Em resposta a um pedagogo 'epistemologicamente correto'. Educação & Realidade, Porto Alegre, 19(2):9-17, jul./dez.

ZIZEK, Slavoj (1992). Eles não sabem o que fazem. O sublime objeto da ideologia. Rio de Janeiro : Zahar.

 

 

1 Um exemplo são as reflexões de Becker (1993) e as críticas feitas por Silva (1994).
2 A definição dos termos do discurso usando tão-somente letras torna árduo e até mesmo impossível o trabalho de quem pretende fixar-lhes determinada significação, pois com essas letras, na articulação que essas fórmulas criam, o que é da ordem do sentido não encontra um ponto de repouso, a não ser na própria estrutura. Os sentidos são inúmeros e se multiplicam toda vez que colocamos em movimento esse "aparelho de quatro patas". São fórmulas precisas na sua escrita, mas imprecisas quanto ao referente. Este permanece como que envolto em uma nuvem de interrogações, o qual, na verdade, é da natureza do que desse referente conseguimos nos apropriar. Essa proliferação de sentidos, essa dificuldade para fixar determinada significação, era mesmo a intenção de Lacan ao criar essas fórmulas e inventar outros tantos recursos, sendo isso sugerido em falas como esta: "Há vários termos. Se só forneci aqui estas letrinhas, não foi por acaso. É que não quero meter coisas aí que tenham a aparência de significar. Não as quero significar, de modo algum, e sim autorizá-las" (1969-1970, p. 161).
3 Depois de formalizar os quatro discursos, alguns anos mais tarde, em 1972, numa conferência em Milão, Lacan apresenta um quinto discurso, o discurso do Capitalista, que aqui não será abordado.
4 Sobre esses quatro lugares do discurso, veja-se Lacan, 1969-1970.
5 Essa formulação está próxima do que Hannah Arendt argumenta em relação ao papel do professor (1972).