7A arte de educar e os giros do discursoA angústia do professor diante do aluno e o sentimento de perda de autoridade índice de autoresíndice de assuntospesquisa de trabalhos
Home Pagelista alfabética de eventos  




ISBN 978-85-60944-12-5 versão

An 7 Col. LEPSI IP/FE-USP 2009

 

8/11 - COLÓQUIO - COMUNICAÇÕES LIVRES

 

O brincar na constituição do sujeito: enlaces possíveis entre o cognitivo e o afetivo

 

 

Daniela Chaves Radel Bittencourt; Maria de Lourdes Soares Ornellas

 

 


RESUMO

Este estudo nomeado O brincar na constituição do sujeito: enlaces possíveis entre o cognitivo e o afetivo propõe uma escuta sobre o lugar ocupado pelo brincar na Educação Infantil, dada sua relevância na constituição do sujeito, sobretudo, nos seus primeiros anos de vida. Segundo Lajonquière (2000), "... o brincar na infância de que se é adulto possibilita à criança posicionar-se perante o desejo". Isso implica refletir sobre as relações que se estabelecem entre professor e aluno na Educação Infantil e a formação de profissionais, com vistas a empreender mudanças na qualidade da sua relação e nos tempos e espaços educativos. A contemporaneidade, marcada por contradições e conflitos de diferentes ordens, suscita reflexões sobre alguns fenômenos, como o encurtamento da infância e o prolongamento da adolescência, que evidenciam a crise por que passa o sujeito contemporâneo. Convido neste estudo para o diálogo autores de campos teóricos distintos, os quais buscam investigar os enlaces possíveis entre aspectos cognitivos e afetivos no ato do brincar, na mais tenra idade do sujeito. Em decorrência deste estudo, uma pergunta emerge: no brincar, de que forma os afetos prazerosos e desprazerosos da criança podem contribuir com a constituição do sujeito e estruturar a construção criativa do saber e do conhecimento?

Palavras-chave: Formação de profissionais; constituição do sujeito; brincar.


 

 

O atendimento às crianças nos primeiros anos de vida (0 a 6 anos de idade), etapa esta classificada e definida pelos teóricos contemporâneos como primeira infância, tem se intensificado em creches e pré-escolas públicas e privadas, granjeando, conseqüentemente, maior atenção da sociedade em geral no que tange a qualidade de educação oferecida na Educação Infantil.

Penso que não há como discutir qualidade em educação, especificamente em tal segmento de ensino, se reflexões concomitantes não forem empreendidas acerca das concepções de infância que permeiam, explícita e implicitamente, as relações entre crianças e profissionais responsáveis pelo educar, cuidar e brincar no cotidiano da escola. É válido ressaltar que o educar pressupõe oferecer situações de cuidados, brincadeiras e aprendizagens intencionais e de forma integrada.

Pensar a criança nos seus primeiros anos de vida e o brincar é relevante em virtude da existência de alguns fenômenos, dentre eles, o encurtamento da infância e o prolongamento da adolescência, que nos remetem a questionar a própria infância e o lugar e a posição ocupados na contemporaneidade, em especial, na escola. Contemporaneidade marcada, sobretudo, pela globalização, velocidade das informações, transitoriedade, diferenças, desenvolvimento tecnológico, conflitos éticos, mudança de valores, superficialidade nas relações etc. Características que impõem à escola o rompimento de velhos paradigmas e a construção de novos que atendam às necessidades do sujeito da atualidade.

Face ao mal-estar vivido na escola, ocasionado pela crise dos velhos paradigmas, torna-se iminente, portanto, que ela seja repensada e reinventada. A formação do professor crítico, afetivo, reflexivo, articulador, pesquisador, coloca-se como condição precípua para a derrubada das paredes da "antiga-atual" escola e, nesse sentido, urge que possamos armar os andaimes para principiar a construção, em seu lugar, de um novo espaço educativo formal correspondente às demandas atuais do sujeito cognoscente e do desejo. Este entendido pelo avesso do cogito cartesiano "Penso, logo existo", na perspectiva desse aluno-sujeito que para existir precisa sentir, desejar e pensar em toda sua complexidade e singularidade. É uma tríade que pode ressignificar a sua constituição. A esse respeito, Ornellas (2005) afirma: "Cabe à escola a tarefa de escutar as crianças e jovens no sentido de reconhecer a singularidade de cada um, buscando entre a autoridade e o afeto um jeito novo de educar" (p.52).

Questiono-me, então: qual o lugar da infância no bojo da complexidade de tais problemas inerentes à contemporaneidade?

Ariès (1981) sustenta a idéia de que a infância é um conceito nascido juntamente com a modernidade. Seria uma construção histórica que atinge seu status também neste período, a partir da revolução tecnológica (invenção da tipografia) que impôs à sociedade a criação de um novo modelo de escola, instituição formal de transmissão de conhecimentos construídos e acumulados pela humanidade, e de um novo modelo de família, marcado pela diferença entre o público e o privado, pelas relações entre seus membros nucleares (pai, mãe e filhos) e pela importância dada à criança. A esse respeito, Ariès endossa: "Podemos imaginar a família moderna sem amor, mas a preocupação com a criança e a necessidade de sua presença estão enraizadas nela" (p.193).

Postman (2005), contraditoriamente, analisa evidênciasi que confirmam o seu ponto de vista de que a infância começou a desaparecer na modernidade: "Para onde quer que a gente olhe, é visível que o comportamento, a linguagem, as atitudes e os desejos – mesmo a aparência física – de adultos e crianças se tornam cada vez mais indistinguíveis" (p.18).

Segundo Jerusalinsky (1996), embora sejam perspectivas contrapostas sobre a historicidade do conceito de infância, podemos considerar ambas verdadeiras porque, sem saber, aludem a algo que a Psicanáliseii chama de "sintoma social", que consiste no artifício que o sujeito constrói para lidar com aquilo que ele não pode resolver. Em outros termos, o sintoma que se evidencia é uma tentativa de simbolizar o real que emerge como tal. Como a linguagem não pode recobrir este buraco, qualquer discussão feita em torno dessa imensidão da nossa ignorância é inevitavelmente contraditória. Em conseqüência disto, como bem diz LAJONQUIÈRE (2000),

"... hoje em dia, assistimos à transformação da criança moderna num "adulto em miniatura". Enquanto, antes, a quarentena jurídica reservava à criança apenas deveres, hoje, a narcisização desbocada outorga direito sem deveres com vistas ao ganho imediato de uma felicidade" (p.97).

Se antes a escola sustentava-se na promessa das crianças virem a usufruir num futuro o lugar e a posição existencial do adulto, atualmente, no entanto, o ensino vale na proporção do gozo imediato que promove. Não há lugar para a falta, para protelar o prazer. Pergunto-me: há lugar para a infância? Há lugar para a estruturação do sujeito do desejo?

Concomitante a tais discussões reveladoras da importância deste sujeito (criança) na contemporaneidade, enfatizada por diferentes pesquisadores que, inclusive e de forma precípua, têm voltado sua atenção não somente à infância, mas à qualidade da formação dos profissionais responsáveis pelos processos de ensino e de aprendizagem na Educação Básica, estudos como os de Winnicott (1975; 1982), Ornellas (2005) e Kupfer (2000) apontam para a eminência do brinquedo e do afeto, respectivamente, como meios singulares de aprendizagem e revelam que a relação pedagógica não está unicamente orientada pela transmissão de conteúdos, mas pela qualidade da relação afetiva que se estabelece entre eles, articulada de forma dinâmica num processo que envolve racionalidade e afetividade, em que professor e aluno ocupam lugares e posições de sujeitos cognitivos, afetivos e sociais. Essa escuta dos pesquisadores para a dimensão afetiva do comportamento humano oferece um repensar, sob um novo olhar, das mediações sociais no espaço da escola e destaca o papel fundante do outro na constituição do aluno-sujeito que pode, através da brincadeira, encontrar um espaço possível de entrelaces entre o afetivo e o cognitivo, descobrindo-se capaz de sentir, desejar e pensar, isento de dicotomias.

As práticas vivenciadas nas creches e pré-escolas e a ênfase dada ou não ao brincar são denunciadoras da escuta que os profissionais que atuam neste segmento têm deste sujeito singular, cuja subjetivação está em processo de construção e dele se constituirá fundante.

Como pensa e sente este sujeito? Como atua para compreender o mundo circundante? Quais afetos são tecidos entre ele e seus parceiros da mesma idade e/ou de idades próximas e entre ele e os profissionais responsáveis? Qual o lugar do brincar na constituição deste sujeito? Seria o jogo uma forma de diálogo entre a subjetividade do sujeito em construção, o real e o imaginário, intermediado pelo simbólico, na tentativa da criança ressignificar sentimentos, atualizar conflitos e compreender as relações que se estabelecem no mundo adulto? Seria através do brincar que a criança comunicaria suas compreensões e seus afetos em contato consigo mesma e com outras crianças, mediado pelo brinquedo? Seria uma forma singular de inserção e apropriação do simbólico, da linguagem?

Estas e outras perguntas, que me acompanham no meu percurso como professora, coordenadora pedagógica da Educação Infantil e formadora de professores deste segmento, fazem-me pensar que, a depender da concepção de criança que o professor apresente em sua prática, intrincada, necessariamente, na forma como se relaciona com ela, o que implica na presença ou ausência de qualidade relacional, o brincar se fará presente, com maior ou menor freqüência, como escuta necessária para a subjetivação do sujeito em constituição, em que aspectos cognitivos e afetivos parecem dialogar entre si.

Faz-se necessário, neste ponto, esclarecer a concepção de afeto que assumo neste estudo, contrária às crenças que circulam no senso comum de que afeto situa-se no campo pleno do prazer e do viés romântico. Com tal objetivo, cito Ornellas (2005):

Pode-se pontuar que o afeto é um conjunto de fenômenos psíquicos que se manifestam sob a forma de emoções e sentimentos acompanhados, em certa medida, da impressão de dor ou prazer, da satisfação ou insatisfação, do agrado ou desagrado, da alegria ou tristeza etc. (p.233).

Neste sentido, o afeto situa-se no campo do prazer e desprazer.

Fruto da minha escuta deste ato no contato com as crianças no ambiente escolar, observo que, quando brincam, elas lançam-se de tal forma ao intento que ocorrem entrelaces entre o cognitivo e o afetivo. Mas, de que forma? Seguindo a trilha deste raciocínio e a partir do diálogo com autores de diferentes campos teóricos, cujos objetos de estudo envolvem o afeto e a cognição no ato da brincadeira, debruço-me sobre uma pergunta que emerge: no brincar, de que forma os afetos prazerosos e desprazerosos da criança podem contribuir com a constituição do sujeito e estruturar a construção criativa do saber e do conhecimento?

A prática desenvolvida na Educação Infantil está sustentada por uma abordagem interdisciplinar, cujas diferentes áreas (Pedagogia, Psicologia, Psicanálise, Pediatria...) tentam dialogar entre si na construção de instrumentos teóricos que atuem como eixos do trabalho com a criança.

É quase unanimidade, entre os teóricos e pesquisadores de diferentes vertentes, conceber o brincar como um desses conceitos fundamentais. Destaco Freud (1987), Winnicott (1975, 1982), Lacan (1978), Piaget (1973, 1974) e Vygotsky (1998, 2004), nos quais este estudo embasa-se para se apropriar do seu objeto: o brincar e a constituição do sujeito na primeira infância.

Pouco Freud debruçou-se em análise sistemática acerca desta temática: a criança e o brincar. Entretanto, em sua obra, encontramos passagens elucidativas sobre este ato. No livro "Escritores criativos e devaneios" (1987), Freud compara o brincar à obra literária no sentido de que ambas permitem a criação de um mundo próprio, onde os elementos são ajustados da forma que mais agrade ao sujeito desejante que o criou. É como se os conteúdos das produções literárias fossem ressignificados a partir das fantasias, substitutos da atividade lúdica infantil na vida adulta. Poderíamos, então, dizer que, à medida que o sujeito torna-se adulto, os enredos vivenciados no jogo simbólico cedem espaço para aqueles imaginados nos devaneios? Seria o brincar um devaneio próprio da infância? E a arte, um devaneio próprio do adulto, canal possível de sublimação?

Na obra intitulada "Além do princípio de prazer" (1987), o autor faz referência à presença do brincar na vida da criança desde a mais tenra idade ao citar o jogo do "fort-da"iii, no qual uma criança de um ano e meio investia seus afetos, desejos e atenção na ambivalência da ausência – presença de um objeto (carretel de madeira amarrado por um barbante). Ora o carretel sumia, quando lançado para debaixo da cama, ora o objeto aparecia, quando puxado para perto, num jogo que provocava gozo, misto de prazer e angústia, pelo domínio da posse do objeto desejado e, ao mesmo tempo, pela falta, marcada aqui pela ausência deste mesmo objeto. Freud relacionou este jogo de desaparecimento e retorno do objeto às cenas vivenciadas, cotidianamente pelas crianças, de saídas e retornos da figura materna, seja quando sai e, depois, retorna do trabalho, seja quando deixa a criança na escola e, posteriormente, retorna para buscá-la. Em ambas situações, a mãe deixa a criança aos cuidados de um outro. Uma mescla de angústia e dor, por um lado, em decorrência da perda, e de prazer e satisfação, por outro, em virtude da (re)apropriação, pela criança, do objeto perdido temporariamente. A fala de Winnicot (1982) elucida a compreensão: "Conquanto seja fácil perceber que as crianças brincam por prazer, é muito mais difícil para as pessoas verem que as crianças brincam para dominar angústias, controlar idéias ou impulsos que conduzem à angústia se não forem dominados" (p.162).

Penso que o brincar, especificamente, o faz-de-conta, nas instituições de Educação Infantil, precisa ser contemplado como meio de escuta das angústias e aflições da criança, que encontra neste ato um singular suporte para expressá-las e comunicá-las. Ao professor deste segmento, cabe a responsabilidade de planejar espaços e tempos para este tipo de brincadeira e, como observador atento, se permitir uma escuta sensível a estes aspectos.

Winnicot (1975) estabelece a existência de uma área intermediária entre a realidade psíquica, subjetiva, e a realidade objetiva, compartilhada, para a qual contribuem tanto a realidade interna, quanto a externa. Transicionais seriam os objetos e fenômenos situados nessa região. O autor define o brincar como um processo criativo que coloca em jogo o mundo objetivo e a subjetividade. O brinquedo seria, portanto, objeto transicional, no qual a criança depositaria seus afetos para suportar, por exemplo, num primeiro momento, a separação da mãe.

Se, anteriormente, a criança sofre uma cena de modo passivo, em que mais nada tem a fazer, a não ser desesperar-se na lacuna do vazio, ao brincar, ela assume o controle da situação e ressignifica sentimentos na tentativa de (re)elaborá-los de acordo com suas possibilidades afetivas e cognitivas. Sendo elo entre o real, o simbólico e o imaginário, especialmente, quando o real impõe à criança algo doloroso, da ordem do intolerável, o brincar faz-se imprescindível na medida em que, ao ressignificar a experiência dolorosa, a criança busca neste ato, ativamente, reelaborá-lo de forma suportável.

Não seria esta situação de separação, descrita anteriormente, a presença do que Lacan conceituou e definiu como amódio (afetos tecidos de forma ambivalente e ambígua no prazer e desprazer) na primeira infância? Assim como a criança ama a mãe que cuida e desvela-se de carinho, ela também odeia esta mesma mãe que abandona, que a deixa só. Como conviver com isto? O brincar oferece pistas. Sendo elo entre o real e o imaginário, especialmente, quando o real impõe à criança algo doloroso, da ordem do intolerável, o brincar faz-se imprescindível na medida em que, ao ressignificar a experiência dolorosa, a criança busca neste ato, ativamente, reelaborar o real de forma suportável.

Nas escolas infantis, ao longo da minha experiência, observei o quanto de carga afetiva as crianças depositam nestes brinquedos, ditos por Winnicott, transicionais. Eles, de fato, oferecem à criança um suporte simbólico (na ausência da mãe, ou melhor, do seio materno, um objeto/brinquedo que os representem conforta) que lhe dá condições de suportar a ausência do objeto do desejo. Esses objetos/brinquedos, segundo Winnicott, se tornam quase inseparáveis da criança, mais importantes do que a própria mãe.

É comum presenciar crianças, no ato de despedida das mães, que deixam-nas nas mãos das professoras para trabalhar, sobretudo, quando esta experiência é recente, numa cena angustiante, até mesmo de desespero ao se verem sozinhas, sem uma pessoa que lhe seja referencial, tranqüilizarem-se ao manusearem, cheirarem, apalparem ou sorverem um paninho, um brinquedo, uma camisola etc., objetos nos quais depositam toda uma carga afetiva.

Winnicott (1975) referenda estes objetos, atribuindo-lhes o seu significado e valor:

Talvez um objeto macio, ou outro tipo de objeto, tenha sido encontrado ou usado pelo bebê, tornando-se então aquilo que estou chamando objeto transicional. Os pais vêm a saber de seu valor e levam-no consigo quando viajam. (...) A mãe permite que fique sujo e até mesmo mal-cheiroso, sabendo que, se lavá-lo, introduzirá uma ruptura de continuidade na experiência do bebê, ruptura que pode destruir o significado e o valor do objeto para ele. ( p.17)

Lacan (1978) afirma ser o inconsciente estruturado como uma linguagem, ou seja, constituído por cadeias de significantes, a partir do que a cultura oferece ao sujeito. A criança, ao nascer, está imersa em uma cultura, em uma linguagem. O contato com as palavras marca singularmente este sujeito, inscrevendo-se em seu corpo. Para que o sujeito do desejo possa emergir, falando em nome próprio, é necessário que seja inscrito no simbólico. Mesmo antes do nascimento, a criança é marcada por um nome, por um lugar sexual e social, sem que, no entanto, este lugar possa ainda ser exercido em face aos limites impostos pelo real em que está situada a infância. São estes fantasmas que, através do brinquedo, são colocados em cena em conjunto com os objetos da realidade. No ato de brincar, fica sublinhada a função simbólica da palavra, condição para que o sujeito aproprie-se do registro simbólico.

Inúmeras vezes, no meu exercício docente, contemplei cenas em que as crianças colocavam em jogo (uma cena lúdica, assim como um sonho ou o próprio inconsciente, não é ordenado, lógico ou coerente), de forma intrincada, aspectos imaginários e reais, cujas cenas condensavam-se e deslocavam-se em um processo similar ao sonho. Aparentemente, aos olhos leigos, era um brincar desconexo, destituído de sentido. Entretanto, para um observador mais atento, um ato impregnado de sentidos.

Como dito anteriormente, para a criança sair da condição de passividade na qual se encontra, é imprescindível que se aproprie dos significantes da sua cultura. O brincar é relativo a esta segunda possibilidade, na qual a atividade do sujeito permite que significações muito particulares sejam conferidas aos objetos. Assim, a possibilidade de que a palavra se inscreva no corpo encontra no brincar uma experiência fundante, sem a qual esta inscrição não seria possível.

A função simbólica na obra de Piaget (1974) adquire significação diferente na Epistemologia Genética e na Teoria Psicanalítica. Segundo Lacan, o simbólico faz referência a um dos registros constituintes da estrutura psíquica do sujeito. Piaget, em contrapartida, refere-se à função simbólica como a capacidade que a criança constrói de diferenciar significantes e significados.

No seu processo de construção do conhecimento, a criança, inicialmente, através da imitação, na presença ou ausência do modelo, acomoda as informações necessárias à construção de novas estruturas internas. Concomitante a este processo, opera no sujeito, através da brincadeira, a assimilação quase pura, preponderante sobre a acomodação. Desequilíbrio este que possibilita a (re)construção das estruturas internas do sujeito, que se modificam, portanto, num movimento de espiral infindo em que equilíbrios e desequilíbrios operam sucessivamente rumo à equilibração majorante. Na passagem da assimilação e acomodação sensório-motoras, em que há ausência da função simbólica, para a assimilação e acomodação mentais (inteligência intuitiva), a imitação e o jogo são processos fundamentais, complementares, necessários às sucessivas desequilibrações e equilibrações que conduzem à representação simbólica, constitutiva da inteligência. A função do jogo simbólico:

"... consiste em satisfazer o eu por meio de uma transformação do real em função dos desejos: a criança que brinca de boneca refaz sua própria vida, corrigindo-a à sua maneira, e revive todos os prazeres e conflitos, resolvendo-os, compensando-os, ou seja, completando a realidade através da ficção (Piaget, 1973, p.29).

A criança, portanto, constrói a sua inteligência através de ações voluntárias, sendo o jogo um fator decisivo para que isto ocorra. Na abordagem piagetiana, o brincar, também, adquire status, devendo ser incentivado pelos educadores, uma vez que encoraja os alunos a utilizarem sua iniciativa, curiosidade e inteligência no sentido de uma relação ativa com o meio exterior, porque é somente por uma troca direta com a realidade que se desenvolve a capacidade biológica de base que leva à inteligência.

Vygotsky (1998) cria um novo conceito, a zona de desenvolvimento potencial, na qual incidiria os desafios do meio no sentido de fazer o aluno avançar de um saber já consolidado para um saber novo, a ser construído com o apoio de outros parceiros e/ou adultos. No brincar, a interação entre parceiros de idades próximas e/ou diferentes permitiria o contato do aluno com desafios mobilizadores de novas aprendizagens. Nesta perspectiva, o brincar constitui um espaço de aprendizagem. O autor afirma que na brincadeira "a criança se comporta além do comportamento habitual de sua idade, além de seu comportamento diário; no brinquedo, é como se ela fosse maior do que ela é na realidade" (p.ll7). Isso porque, a brincadeira, na sua visão, cria uma zona de desenvolvimento proximal, permitindo que as ações do aluno ultrapassem o desenvolvimento já alcançado (desenvolvimento real), impulsionando-o a conquistar novas possibilidades de compreensão e de ação sobre o mundo.

Através do exposto, penso ser possível desconstruir a idéia equivocada, perpassada na sociedade e na própria escola, de que brincadeira é sinônimo de não seriedade e como tal, portanto, deva ocupar os tempos e os espaços da escola quando não há mais nada o que se fazer com as crianças. À brincadeira, urge ser conferido o seu real valor. Decorrente disto, é fundamental criar espaços de formação inicial e continuada para que reflexões sobre a importância do brincar sejam empreendidas, legitimando-se, desta forma, como viés concreto, meio único e singular de aprendizagem, de desenvolvimento da criatividade e da autonomia, pelo qual a criança estrutura-se e inscreve-se. Vale ressaltar que este escrito é fruto de uma pesquisa em processo de realização no curso de pós-graduação em educação e contemporaneidade e as indagações feitas ao longo do texto serão objeto de aprofundamentos, costuras teóricas e aproximações epistemológicas sobre a temática. O que importa neste momento é escrever sobre o brincar e o quanto este ato estrutura o sujeito se enredados com o cognitivo e afetivo. Ambos os processos podem criar algo novo que em lugar da repetição emirja a criação de letras e escansões no sentido de clarear o dito e o dizer.

 

Referências Bibliográficas

ARIÉS, Philippe. História Social da Criança e da Família. Rio de Janeiro: LTC, 1981.

FREUD, Sigmund. Escritores criativos e devaneios. Rio de Janeiro: Imago, 1987.

_____. Além do princípio do prazer. Rio de janeiro: Imago, 1987.

JERUSALINSKY, Alfredo. O sujeito infantil e a infância do sujeito in: Estilos da Clínica. São Paulo, 1996.

LACAN, Jacques. Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise. Rio de Janeiro: Perspectiva, 1978.

LAJONQUIÈRE, Leandro de. Infância e Ilusão (Psico)Pedagógica. Petrópolis: Vozes, 1999.

ORNELLAS, Maria de Lourdes. Afetos manifestos na sala de aula. São Paulo: Annablume, 2005.

PIAGET, Jean. O Nascimento da Inteligência na Criança. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1974.

______. Seis estudos de psicologia. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1973.

POSTMAN, Neil. O Desaparecimento da Infância. Rio de Janeiro: Graphia Editorial, 2005.

VYGOTSKY, L. O desenvolvimento psicológico na infância. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

______. A formação social da mente. São Paulo: Cortez Editora, 2004.

WINNICOTT, Donald. O brincar e a realidade. Rio de janeiro: Imago, 1975.

______. A criança e o seu mundo. São Paulo: LTC, 1982.

 

 

i Segundo este autor, o que mais contribuiu para que a infância começasse a declinar como conceito foi a invenção de Gutenberg, a imprensa. Disse esse autor que o que transtorna a invenção da imprensa é a separação da posse do saber.
ii Do ponto de vista psicanalítico, a infância não é uma formação histórica e sim uma formação de estrutura, que coloca o infans na posição de sujeito do discurso, que se caracteriza por ser levado a supor que ainda não sabe aquilo que ele precisa mesmo saber; consequentemente, houve e há infância em todas as épocas e lugares.
iii O jogo do for-da, descrito e interpretado por Sigmund Freud, assinala um movimento constituinte do sujeito, no qual a criança captura, na descontinuidade do significante (aqui-lá), a imagem de si mesma vista ou não vista pelo Outro, o que implica colocar em série a ausência-presença.