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 ISBN 978-85-60944-12-5

An 7 Col. LEPSI IP/FE-USP 2009

 

8/11 - COLÓQUIO - COMUNICAÇÕES LIVRES

 

A angústia do professor diante do aluno e o sentimento de perda de autoridade

 

 

Daniela Kitawa OyamaI; Ana Archangelo

Ibolsista CNPq

 

 


RESUMO

A preocupação em relação aos professores deixou de ser exclusivamente com sua formação, dadas as indicações de que algumas dificuldades enfrentadas por eles têm envolvido a esfera afetiva. Isso é facilmente percebido atualmente pelo alto número de afastamentos e licenças de professores conseqüentes de problemas emocionais. Tendo isso em vista, o trabalho trata da angústia sentida pelos professores diante dos alunos e seu sentimento de perda de autoridade. O trabalho consiste em uma análise psicanalítica do fenômeno da angústia com seis professoras de 1ª a 4ª séries do Ensino Fundamental de uma escola pública, análise essa realizada por meio de entrevistas abertas e baseada no conceito de angústia de Freud, que o define como reação a uma situação de perigo, ao desamparo psíquico ou físico diante de uma situação traumática. Foram considerados também os conceitos de ansiedade persecutória e ansiedade depressiva de Melanie Klein. O sentimento de perda de autoridade pode significar duas coisas para o professor: pode significar uma projeção por parte do professor no aluno; ou pode significar também o fracasso do ideal de professor, portanto, o temor ao superego na teoria freudiana, por não poder realizar tal ideal. Cada professor tem angústias diferentes das dos demais. A angústia depende da relação do professor com a profissão, com os alunos e, principalmente, consigo próprio. E é assim também com o sentimento de perda de autoridade.

Palavras-chave: professor, angústia, autoridade.


 

 

INTRODUÇÃO

A preocupação em relação aos professores deixou de enfocar exclusivamente sua formação, dadas as indicações de que algumas dificuldades, por eles enfrentadas, têm envolvido a esfera afetiva, além das tradicionalmente consideradas, como a política e a cognitiva. Atualmente, o fato pode ser facilmente percebido, pelo alto número de afastamentos e licenças de professores, conseqüentes de problemas de saúde, grande parte deles, emocionais.

Também preocupadas com essa dificuldade que envolve a esfera emocional dos professores, tratamos neste trabalho sobre a angústia sentida por eles diante dos alunos. Isso porque acreditamos que quanto maior a percepção e o entendimento do professor sobre seus sentimentos, mais facilmente poderá lidar com eles e evitar reações que potencializem a angústia e coloquem em risco seu papel de educador.

Parte de um estudo mais amplo, este trabalho consiste em uma análise psicanalítica do fenômeno da angústia do professor diante do aluno e o sentimento de perda de autoridade.

 

O CONCEITO DE ANGÚSTIA

O termo "angústia" foi adotado para definir o fenômeno a ser pesquisado neste estudo. Mas, em alguns textos da "Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud", os termos Angst e anxiety são traduzidos por "ansiedade", como nas citações adiante.

Segundo Zeferino Rocha (2000, p. 30), não existe, na língua portuguesa, uma clara distinção entre angústia e ansiedade. E ainda segundo ele:

Para Freud, muito mais importante do que esta questão terminológica [entre angústia e ansiedade] era discutir o problema da angústia na sua dimensão mais profunda, pela qual ela se inscreve tanto no corpo quanto no psiquismo, como uma experiência fundamental da existência humana. (ROCHA, 2000, p. 33)

O conceito de angústia para Freud foi sofrendo modificações durante toda a sua obra, mas suas últimas idéias expressas sobre o tema podem ser encontradas em "Inibições, Sintomas e Ansiedade", de 1926 (FREUD, [1926] 1996, v. 20) e na Conferência XXXII, Ansiedade e vida instintual, das "Novas Conferências Introdutórias sobre Psicanálise" de 1933 (FREUD, [1933] 1996, v. 22). Freud afirma que "A ansiedade é uma reação a uma situação de perigo. Ela é remediada pelo ego que faz algo a fim de evitar essa situação ou para afastar-se dela." ([1926] 1996, v. 20, p. 128).

Mas o que significa uma situação de perigo?

Segundo Freud ([1926] 1996, v. 20, p. 161), se não contentes em rastrearmos a ansiedade no perigo e prosseguirmos indagando sobre a essência e o significado de uma situação de perigo, claramente chegaremos à conclusão de que ela consiste na estimativa do sujeito quanto à sua própria força frente ao perigo, à comparação de sua força com a magnitude do perigo e no seu relacionamento de desamparo em face dessa situação. O desamparo pode ser físico, se o perigo for real; e psíquico, se o perigo for instintual. Para proceder assim, o indivíduo será orientado por suas experiências reais e não importa o quão real é essa estimativa, se ele está certo ou errado, não importa no resultado. Freud denomina de situação traumática, uma situação de desamparo dessa espécie, a qual o sujeito tenha realmente experimentado.

Para Mário Eduardo Costa Pereira, o termo "desamparo" (Hilflosigkeit), na obra de Freud, aponta para "a condição última de falta de garantias do funcionamento psíquico, que o homem tem de enfrentar quando se livra de todas as ilusões protetoras que cria para si mesmo" (PEREIRA, 1999, p. 130).

Essa situação de desamparo (físico ou psíquico), que tem como protótipo o nascimento, posteriormente terá dupla origem, "uma, como conseqüência direta do momento traumático, e a outra, como sinal que ameaça com uma repetição de um tal momento." (FREUD, [1933] 1996, v. 22, p. 96).

A ansiedade sentida pelo bebê no nascimento tornou-se o protótipo de um estado afetivo que sofreu as mesmas vicissitudes que os outros afetos sofreram.

Ou o estado de ansiedade se reproduzia automaticamente em situações análogas à situação original e era assim uma forma inadequada de reação em vez de apropriada, como o fora na primeira situação de perigo, ou o ego adquiria poder sobre essa emoção, reproduzia-a por sua própria iniciativa e a empregava como uma advertência de perigo e como um meio de pôr o mecanismo de prazer-desprazer em movimento. Demos assim ao aspecto biológico do afeto de ansiedade sua devida importância, reconhecendo a ansiedade como a reação geral a situações de perigo, enquanto endossávamos o papel desempenhado pelo ego como a sede da ansiedade, atribuindo-lhe a função de produzir afeto de ansiedade de acordo com suas necessidades. Assim atribuímos duas modalidades de origem à ansiedade na vida posterior. Uma era involuntária, automática e sempre justificada sob fundamentos econômicos, e ocorria sempre que uma situação de perigo análoga ao nascimento se havia estabelecido. A outra era produzida pelo ego logo que uma situação dessa espécie simplesmente ameaçava ocorrer, a fim de exigir sua evitação. No segundo caso o ego sujeita-se à ansiedade como uma espécie de inoculação, submetendo-se a um ligeiro ataque da doença a fim de escapar a toda sua força. Ele vividamente imagina a situação de perigo, por assim dizer, com a finalidade inegável de restringir aquela experiência aflitiva a uma mera indicação, a um sinal. (FREUD, [1926] 1996, v. 20, p. 157)

Entende Freud ([1926] 1996), também, que a situação de perigo evolui durante o desenvolvimento do sujeito. Cada situação de perigo corresponde a um período da vida, ou a uma fase particular de desenvolvimento do aparelho mental. No início da infância, o bebê não está preparado para dominar e elaborar as grandes somas de excitação que o atingem pelo exterior e pelo interior. Além do mais, até um certo período da vida, o interesse mais importante do indivíduo é que as pessoas de quem depende não retirem seu amor e carinho dele. Quando cresce um pouco mais, passa pelo Complexo de Édipo, se torna cônscio de suas intenções sexuais em relação à mãe – no caso do menino – e de suas próprias inclinações agressivas para com o pai, que se tornou um poderoso rival em se tratando de sua mãe. Nesse período, é natural e justificado que tenha medo do pai. O medo de ser punido por esse pai pode encontrar expressão através de reforço filogenético no medo de ser castrado. Quando o sujeito inicia suas relações sociais, a situação de perigo evolui para o medo do superego. Temer o superego e ter uma consciência é necessário nas relações sociais, pois a ausência disso daria margem a conflitos, perigos e assim por diante (FREUD, [1926] 1996, v. 20, p. 144).

No texto "Além do princípio do prazer", de 1920, Freud inclui na mesma classe de instinto, chamado de instinto de vida, os instintos sexuais, narcisistas e autoconservadores (pulsões de vida) e introduz o conceito de instinto de morte, que abrangeria os instintos agressivos e destrutivos (pulsões de morte):

Estaria em contradição à natureza conservadora dos instintos que o objetivo da vida fosse um estado de coisas que jamais houvesse sido atingido. Pelo contrário, ele deve ser um estado de coisas antigo, um estado inicial de que a entidade viva, numa ou noutra ocasião, se afastou e ao qual se esforça por retornar através dos tortuosos caminhos ao longo dos quais seu desenvolvimento conduz. Se tomarmos como verdade que não conhece exceção o fato de tudo o que vive morrer por razões internas, tornar-se mais uma vez inorgânico, seremos então compelidos a dizer que 'o objetivo de toda vida é a morte', e, voltando o olhar para trás, que 'as coisas inanimadas existiram antes das vivas'. (FREUD, [1920] 1996, v. 18, p. 49, grifo do autor)

E em outro texto, "O mal-estar na civilização", de 1930, publicado dez anos depois, Freud afirma que concluiu, partindo de especulações sobre o começo da vida e de paralelos biológicos, que, "ao lado do instinto para preservar a substância viva e para reuni-la em unidades cada vez maiores, deveria haver outro instinto, contrário àquele, buscando dissolver essas unidades e conduzi-las de volta a seu estado primevo e inorgânico" (FREUD, [1930] 1996, v. 21, p. 122). Assim como existia um instinto de vida, havia também um instinto de morte.

Os fenômenos da vida podiam ser explicados pela ação concorrente, ou mutuamente oposta, desses dois instintos. Não era fácil, contudo, demonstrar as atividades desse suposto instinto de morte. As manifestações de Eros eram visíveis e bastante ruidosas. Poder-se-ia presumir que o instinto de morte operava silenciosamente dentro do organismo, no sentido de sua destruição, mas isso, naturalmente, não constituía uma prova. (FREUD, [1930] 1996, v. 21 p. 122-123)

Segundo o autor, uma idéia mais fecunda é a de que uma parte do instinto de morte é desviada do próprio eu (self) do sujeito para o mundo externo e é notada como um instinto de agressividade e destrutividade. E dessa forma, o próprio instinto de morte presta serviço ao instinto de vida, já que, no caso de o indivíduo destruir alguma outra coisa, animada ou inanimada, deixa de destruir seu próprio self. A autodestruição sempre prossegue, mas qualquer restrição dessa agressividade voltada para o mundo externo, aumenta ainda mais a autodestruição.

Ao mesmo tempo, pode-se suspeitar, a partir desse exemplo, que os dois tipos de instinto raramente — talvez nunca — aparecem isolados um do outro, mas que estão mutuamente mesclados em proporções variadas e muito diferentes, tornando-se assim irreconhecíveis para nosso julgamento. No sadismo, há muito tempo de nós conhecido como instinto componente da sexualidade, teríamos à nossa frente um vínculo desse tipo particularmente forte, isto é, um vínculo entre as tendências para o amor e o instinto destrutivo, ao passo que sua contrapartida, o masoquismo, constituiria uma união entre a destrutividade dirigida para dentro e a sexualidade, união que transforma aquilo que, de outro modo, é uma tendência imperceptível, numa outra conspícua e tangível. (FREUD, [1930] 1996, v. 21 p. 123)

Seguindo essa linha de pensamento a respeito dos instintos de vida e de morte, Melanie Klein formula uma teoria da ansiedade, diferente da teoria de Freud.

Ela propõe a hipótese de que a ansiedade é despertada pelo perigo proveniente da pulsão (instinto) de morte que ameaça o organismo, sendo essa a causa primordial da ansiedade. "A descrição de Freud da luta entre as pulsões de vida e de morte (luta que leva à deflexão, para fora, de uma parcela da pulsão de morte, e à fusão das duas pulsões) apontaria para a conclusão de que a ansiedade tem origem no medo da morte." (KLEIN, 1991, p. 49). Segundo ela, se existe uma pulsão de morte, também deve haver uma resposta a essa pulsão nas camadas mais profundas da mente, e essa resposta seria a ansiedade sob a forma de medo do aniquilamento da vida, da destruição do self. Assim, a primeira causa de ansiedade seria o perigo resultante do trabalho interno do instinto de morte. Essa fonte de ansiedade nunca é eliminada, pois a luta entre as pulsões de vida e de morte persiste a vida inteira, e é um fator permanente em todas as situações de ansiedade (KLEIN, 1991, p. 50).

Para Klein, a ansiedade seria anterior ao nascimento, ao contrário de Freud, para quem o nascimento é o protótipo do sentimento de ansiedade. Quanto ao nascimento, ela diz que se pode presumir a existência dessa luta interna entre os dois instintos, de vida e de morte, na ocasião do nascimento, que essa luta já está em atividade e que essa dolorosa experiência acentua a ansiedade persecutória (KLEIN, 1991, p. 52).

Ela diferencia duas modalidades básicas de ansiedade: a ansiedade persecutória e a ansiedade depressiva. Mas, apesar de assinalar que a distinção entre ambas de modo algum é nítida, afirma em seu texto "Sobre a teoria da ansiedade e da culpa", de 1948, que chegou à conclusão de que

[...] a ansiedade persecutória se relaciona predominantemente ao aniquilamento do ego; a ansiedade depressiva está vinculada predominantemente ao dano feito aos objetos amados, internos e externos, pelos impulsos destrutivos do sujeito. A ansiedade depressiva tem variados conteúdos, tais como: o objeto bom está ferido, está sofrendo, está num estado de deterioração; transformou-se num objeto mau; está aniquilado, está perdido e nunca mais estará presente. (KLEIN, 1991, p. 55)

Klein também afirma concluir que a ansiedade depressiva tem estrita ligação com a culpa e com a tendência a fazer reparações. Diante da culpa que o sujeito sente por seus impulsos destrutivos em relação ao objeto amado, tende a fazer reparações para preservar esse objeto que outrora atacou ou tentou destruir.

Segundo essa autora,

Durante a posição esquizo-paranóide, isto é, nos primeiros três a quatro meses de vida, os processos de cisão – que envolvem a cisão do primeiro objeto (o seio), bem como dos sentimentos para com este – atingem seu auge. O ódio e a ansiedade persecutória prendem-se ao seio frustrador (mau), e o amor e o reasseguramento, ao seio gratificador (bom). Entretanto, mesmo nesse estágio, tais processos de cisão jamais são plenamente eficazes, pois, desde o começo da vida, o ego tende a integrar-se e a sintetizar os diversos aspectos do objeto. (Pode-se considerar essa tendência como uma expressão da pulsão de vida). Mesmo em bebês muito pequenos parece haver estados transitórios de integração – os quais se tornam mais freqüentes e duradouros à medida que o desenvolvimento prossegue – em que a cisão entre o seio bom e o mau é menos acentuada.

Nesses estados de integração, dá-se certa síntese entre o amor e o ódio em relação aos objetos parciais, síntese que, segundo minha concepção atual, origina a ansiedade depressiva, a culpa e o desejo de reparar o objeto danificado – em primeiro lugar, o seio bom. (KLEIN, 1991, p. 55-56)

Apesar de a ansiedade persecutória ser predominante da posição esquizo-paranóide e a ansiedade depressiva, da posição depressiva, é possível haver traços de ansiedade depressiva na posição esquizo-paranóide e vice versa.

As duas modalidades de origem da ansiedade na vida posterior, das quais Freud fala, ansiedade automática e ansiedade como sinal, dizem da forma como se apresenta a ansiedade. Já Klein, quando caracteriza as duas modalidades de ansiedade, não diz da forma com que se apresentam, mas sobre seu conteúdo, o que equivaleria ao significado das situações de perigo de Freud. Acreditamos que as duas teorias sobre a ansiedade, a freudiana e a kleiniana, não são, necessariamente, contraditórias.

Tratamos do conceito de angústia ou ansiedade tal como visto por esses dois autores, Freud e Melanie Klein, mas o conceito não pode ser tomado como exata expressão da realidade, pois um conceito é um modelo e, como tal, pode ser utilizado como parâmetro para entender a realidade.

 

PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

Para a realização do trabalho, acompanhamos, durante um ano e meio, reuniões semanais com os professores e foram realizadas seis entrevistas com professoras de 1ª a 4ª série do Ensino Fundamental de uma escola pública em um município do interior do estado de São Paulo.

Os nomes das professoras foram substituídos por outros, fictícios. Seus verdadeiros nomes serão mantidos em sigilo no intuito de preservar suas identidades. Assim também não foram identificados o município, o bairro e o nome da escola.

As entrevistas abertas com as professoras foram realizadas tendo, como apoio, as contribuições de Bleger (1995).

Para esse autor, "a entrevista aberta não se caracteriza essencialmente pela liberdade de colocar perguntas, porque [...] o fundamento da entrevista psicológica não consiste em perguntar, nem no propósito de recolher dados da história do entrevistado" (BLEGER, 1995, p. 3).

Na entrevista aberta, o campo da entrevista é configurado segundo a estrutura psicológica particular do entrevistado, pelas variáveis que dependem da personalidade dele. A liberdade do entrevistador reside nessa flexibilidade para permitir que o entrevistado configure o campo da entrevista. Dessa forma, a entrevista aberta possibilita uma investigação e um conhecimento mais amplo e profundo da personalidade do entrevistado (BLEGER, 1995, p. 3).

Em relação à interpretação dos dados, em vista da natureza qualitativa da pesquisa, a interpretação é:

[...] processual, caracterizada pelo fato de que as conclusões não estão fragmentadas nas respostas ou dados (ou também frases, no caso das entrevistas) e muito menos são possíveis unicamente ao final do estudo. Ao contrário, estabelecem-se progressivamente e pelo entrecruzamento das respostas dadas e dos sentidos provisórios depreendidos da análise das respostas de cada questão ou pergunta. (VILLELA; GUIMARÃES, 2003, p. 51, grifo dos autores)

Segundo Villela e Guimarães, a interpretação processual dos dados opera-se através de dois mecanismos básicos:

1º O entendimento do que se depreende de cada questão (ou parte da entrevista) orienta o pensamento e a atenção para a compreensão das respostas dadas às perguntas seguintes (ou à continuidade da entrevista), ainda não lidas pelo investigador. Ou seja, o entendimento parcial que se obtém a partir das primeiras perguntas ilumina o entendimento posterior das respostas dadas às questões seguintes, por meio das certezas obtidas ou hipóteses aventadas, a serem confirmadas na continuidade da análise e interpretação.

2º A compreensão dos dados posteriores modifica o entendimento prévio, muitas vezes ingênuo, que se tinha a partir apenas da análise das primeiras questões. Essa possibilidade de modificação do entendimento prévio, durante o processo de interpretação, faz surgir novas certezas e respostas que, por sua vez, tanto iluminam o entendimento a ser feito das questões ainda não analisadas, como reordenam nosso entendimento ou nossas conclusões a respeito das questões prévias, refutando-as, enriquecendo-as, complementando-as, ou mesmo simplesmente confirmando-as. (VILLELA; GUIMARÃES, 2003, p. 51, grifo dos autores)

A capacidade interpretativa depende de uma mobilidade do pensamento e julgamento do entrevistador. Nesse processo, ele deve ter a possibilidade de conseguir levantar hipóteses que serão confirmadas ou que, eventualmente, serão negadas. Esses autores ainda destacam que nesse tipo de entrevista, boa parte da interpretação ocorre durante a própria entrevista. A interpretação pode redirecionar a atenção do entrevistador e as perguntas a serem formuladas para o entrevistado, inclusive referentes àquilo que o entrevistado sinaliza como fundamental para ser perguntado. Dessa maneira, as respostas podem fornecer dados importantes para o entendimento do que é investigado (VILLELA; GUIMARÃES, 2003, p. 51).

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Todos os professores tentam se diferenciar dos demais quanto ao seu trabalho com os alunos. E cada um deles tem angústias diferentes das dos outros. Uma análise psicanalítica tem como objeto a singularidade, a subjetividade do professor. Todavia, tal singularidade é uma síntese de vivências psíquicas absolutamente originais e exclusivas de determinado sujeito com os aspectos de uma instituição e de uma realidade profissional que modulam, dão forma e palavra a tais experiências. Em outras palavras, a experiência singular pode dizer tanto das idiossincrasias do sujeito quanto de aspectos universais cuja origem profunda se funde a determinantes socioculturais e históricos.

O sentimento de perda de autoridade pode significar duas coisas para o professor: pode significar uma projeção por parte do professor no aluno, fazendo com que esse aluno se torne ameaçador para o professor. Ao projetar seus próprios impulsos agressivos no aluno, passa a vê-lo como alguém que vai desafiá-lo na tentativa de humilhá-lo, pode ver a indisciplina como um ataque por parte do aluno, uma ameaça a sua autoridade em sala de aula. A projeção do professor tem relação com a ansiedade persecutória sentida; pode significar também o fracasso do ideal de professor, portanto, o temor ao superego na teoria freudiana, por não poder realizar tal ideal, e tem relação com a ansiedade depressiva na teoria kleiniana. O professor tem um ideal de sua profissão que pode ser o do professor reconhecido, respeitado, admirado. Ao sentir a perda de autoridade, nota que não consegue corresponder a esse ideal e se angustia.

Marisa frustra sua expectativa de ideal de professor, ao perder a autoridade diante dos seus alunos, no momento que se vê obrigada a pegar a prova no lixo, diante de toda a sala.

Marisa: "Entreguei as provas, ele tirou I (insatisfatório). Não gostou, disse que não queria (a prova). Jogou a prova no lixo. Eu peguei. Ele pegou a prova da minha mesa e jogou no lixo de novo. Peguei de novo. Peguei umas três vezes, dizendo para ele que aquilo era documento e não podia jogar."

E a projeta no aluno, muito depois do ocorrido, quando diz que "Se tivesse chamado a direção, criaria tumulto à-toa e era, talvez, o que ele queria", como se o aluno se tornasse ameaçador, querendo fazer com que a professora chegasse à situação-limite, como se atacasse a professora. E não parece que era isso o que estava acontecendo. O aluno não estava suportando o "insatisfatório" que recebeu como nota e era isso que ele estava dizendo para a professora.

Nesse exemplo podemos notar a perda de autoridade como frustração do ideal de professor, no momento em que a professora se vê obrigada a pegar a prova do lixo; e como projeção, algum tempo depois, quando imagina que o aluno queria criar tumulto à-toa e que a professora chamasse a direção, tornando-se ameaçador para ela.

No caso de Sílvia,

Sílvia: "Nesses dias estava dando uma aula sobre o sistema solar, tinha preparado o material, os planetas, estava com uma lanterna, o sol; explicando o movimento de rotação e translação da Terra (fazia os gestos com os braços e mãos) e um aluno disse que não era assim, discordou."

Entrevistadora: "Ele estava me dizendo que eu estava mentindo! Eu parei, não dei mais aula. Mas isso é influência da igreja!"

Não entendi e perguntei.

Entrevistadora: "Da igreja?"

Sílvia: "A maioria deles é da Universal e qualquer dia eu vou lá dizer umas coisas para o pastor!"

O fato de Sílvia comentar que o aluno teria dito que ela mentia é uma projeção.– pois ela mesma afirmara anteriormente que ele havia discordado dela, sem fazer qualquer menção ao fato de ele ter dito utilizado o termo 'mentira'.

Ela projeta no aluno sua ira, entende a contestação como um ataque e demonstra isso quando diz: "Ele estava me dizendo que eu estava mentindo!". O aluno de Sílvia provocou sua ira ao contestá-la e ela a projeta (sua ira) contra toda a sala ao parar a aula, e contra o pastor ao responsabilizá-lo pelo que o aluno disse.

Patrícia sente que perde a autoridade diante de falas como as descritas por ela:

Patrícia: "Elas (crianças) falam pra mim 'Dona, pra que aprender isso?', 'Eu não quero aprender, não', 'Dona, eu vou ser bandido!' (imitava o tom irônico dos alunos). Se você dá tarefa, uns quatro fazem, os outros não. Você pergunta e eles falam, uma menina falou 'Depois de fazer comida, limpar a casa, eu fui dormir, não ia fazer tarefa, né?' (imitou tom irônico da menina)."

Ao ouvir as crianças, talvez frustre seu ideal de professor, professor valorizado, respeitado e admirado.

Já Lúcia, durante as reuniões e a entrevista, não demonstrou sentir que perde a autoridade diante de seus alunos.

O que acontece para que alguns professores sintam essa perda de autoridade de um modo, outros de maneira diferente e alguns não tenham esse sentimento? É o aluno indisciplinado que tira a autoridade do professor? O que é essa indisciplina?

Cada professor sente a angústia de uma maneira, cada um deles tem uma relação diferente com os alunos. O que é indisciplina para um professor, não necessariamente o é para outro, e é assim também com o sentimento de perda de autoridade. Vai depender de como o professor interpreta o comportamento do aluno, do que construiu, ao longo de sua vida psíquica e profissional, como o ideal de respeito e profissionalismo, entre outros, bem como do quanto é tolerante a situações de tensão, sem que essas estejam imediatamente conectadas a dispositivos de produção de angústia e a fantasias de ataque ao próprio ego. Se o professor entende que a queixa do aluno ou seu comportamento não diz respeito, necessariamente, a insatisfações de toda sorte em relação a ele, professor, e que se trata de uma questão que concerne, em grande parte, a processos transferenciais do próprio aluno, dificilmente vai entender a atitude desse último como um ataque ao professor, como indisciplina ou como uma tentativa deliberada de tirar a autoridade dele. Mas se, do contrário, entende a atitude como um ataque contra ele – professor – provavelmente sentir-se-á ameaçado como pessoa ou verá ameaçada sua posição de autoridade. O que se pode concluir, mediante a análise dos excertos acima é que depende de como o professor vive a experiência de tensão na relação com o aluno para sentir ou não que perdeu sua autoridade. E isso oscila em momentos distintos e de sujeito para sujeito. Um mesmo professor pode, por exemplo, projetar no aluno sua angústia em um momento e em outro, não; assim como professores diferentes em situações similares também reagem diferentemente diante de um aluno.

Sem desconsiderar nem minimizar os efeitos dos mecanismos sociais que submetem, objetivamente, o professor a situações de perda de autoridade, tais como, aniquilamento da autonomia didática, precarização das condições materiais de trabalho, empobrecimento dos processos de formação profissional, enfatizamos que o modo como o professor sente sua angústia (inclusive diante desses mecanismos perversos acima citados, mas também diante do aluno) e lida com ela também é determinante na forma com que esse se coloca na posição de autoridade inerente a seu papel de educador. Esse aspecto, embora não exclusivo, deve ser levado em conta ao se pensar políticas de formação, uma vez que essas tendem a negligenciar os aspectos psíquicos do professor.

 

BIBLIOGRAFIA

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