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 ISBN 978-85-60944-12-5

An 7 Col. LEPSI IP/FE-USP 2009

 

8/11 - COLÓQUIO - COMUNICAÇÕES LIVRES

 

O exercício da parentalidade na contemporaneidade: um estudo sobre a transmissão

 

 

Daniela Teperman

psicanalista, doutoranda na Faculdade de Educação da USP

 

 


RESUMO

A contemporaneidade, no que diz respeito à família, nos permite dois modos iniciais de aproximação: por um lado, há a idéia de que as novas configurações familiares - que vem se manifestando com mais intensidade nos últimos anos - engendram a impossibilidade do exercício adequado das tarefas parentais; por outro, a idéia de que, apesar das diferentes e novas configurações que possa adquirir, a família resiste.
Ainda que constatemos que a família resiste e que possamos pensar que mais que uma família em desordem, trata-se de mais uma nova ordem que se estabelece no contexto da instituição família; as formas pelas quais as famílias se apresentam na contemporaneidade nos levam a indagar sobre a transmissão, sobre os efeitos na transmissão, sobre o que deve se manter, resistir, para além das mudanças substanciais sofridas pelas configurações familiares nos últimos anos.
O que uma geração deve transmitir à seguinte para permitir abandoná-la? Em que condições a transmissão entre gerações pode ser efetuada? Com este trabalho, pretende-se nem tanto examinar as novas formas em que a família se apresenta e discutir (talvez até mesmo procurar antecipar!) suas conseqüências, mas contextualizar as transformações e abalos sofridos pela família buscando elementos para uma análise mais precisa. Desta forma, propomos deslocar a discussão de um certo "ideal" de família e do distanciamento que as diversas organizações familiares apresentariam em relação a este ideal, para examinar aquilo que seria o irredutível na transmissão sob a ética do sujeito do desejo.

Palavras-chave: psicanálise, transmissão, parentalidade.


 

 

A contemporaneidade, no que diz respeito à família, nos permite dois modos iniciais de aproximação: por um lado, há a idéia de que as novas configurações familiares - que vem se manifestando com mais intensidade nos últimos anos - engendram a impossibilidade do exercício adequado das tarefas parentais; por outro, a idéia de que, apesar das diferentes e novas configurações que possa adquirir, a família resiste.

Elizabeth Roudinesco em "A família em desordem" (2003) já no prefácio nos adverte sobre um paradoxal panorama contemporâneo: se outrora os homossexuais viviam uma experiência à margem da sociedade, reivindicavam o direito à diferença, marcando em sua escolha uma transgressão, uma oposição em relação àquilo que configurava a família como instituição normatizada na sociedade; agora, contudo, este mesmo grupo vem reivindicando a possibilidade de instituir-se dentro das regras que compõem o universo estabelecido em relação à família e à procriação. Assim, homossexuais vêm buscando reconhecimento e apoio legal para firmarem-se como famílias: reconhecimento da relação conjugal (outorgado pelo PACS1) e reconhecimento do direito à parentalidade.

Roudinesco questiona: o que esta demanda representa? Que conseqüências ela tem para o modo como as relações familiares vêm se constituindo na contemporaneidade? A existência da família estaria ameaçada?

É importante ressaltar que a autora se preocupa menos em antecipar e discutir as conseqüências para a educação das crianças quando as funções parentais são ocupadas por apenas um membro da família ou membros do mesmo sexo, do que em examinar esta demanda e suas possibilidades de significação dentro de uma perspectiva histórica, social e política. Esta pontuação faz-se necessária porque a discussão em torno às famílias homoparentais é fervorosa e corre o risco de tornar-se panfletária e reducionista.

Neste sentido, faz-se necessário o apelo à ética psicanalítica e Ceccarelli (2007) o faz com rigor:

A psicanálise não é guardiã de uma ordem simbólica suposta imutável, produtora de uma forma idealizada de subjetivação baseada nas normas vigentes e com o poder de deliberar sobre o normal e o patológico. (p.93).

O autor pontua que o modelo de família nuclear mesmo que seja idealizado e promova uma sensação de estabilidade e segurança, nunca foi sinônimo de "normalidade". Acrescenta que não existe uma forma de organização familiar ideal que poderia garantir as condições necessárias para a constituição do sujeito.

Em seu último capítulo, não casualmente denominado "A família do futuro", Roudinesco esclarece que seus questionamentos não têm um caráter alarmista, mas, ao contrário, visam inscrever a cena contemporânea em relação à família em um contexto histórico, político, social. Roudinesco (2003) se permite afirmar que a existência da família não se encontra ameaçada:

Aos utopistas que acreditam que a procriação será um dia a tal ponto diferenciada do ato carnal que os filhos serão fecundados fora do corpo da mãe biológica, em um útero de empréstimo e com a ajuda de um sêmen que não será mais aquele do pai, retorquimos que, para além de todas as distinções que podem ser feitas entre o gênero e o sexo, o materno e o feminino, a sexualidade psíquica e o corpo biológico, o desejo de um filho sempre terá algo a ver com a diferença dos sexos. (p. 198).

Contudo, ainda que não se trate de alarmismo, ou seja, mesmo que emprestemos de Sauret (1997) sua afirmação de que "a família resiste", as formas com as quais as famílias se apresentam na contemporaneidade nos levam a indagar sobre a transmissão, sobre os efeitos na transmissão, sobre o que deve se manter, resistir, para além das mudanças substanciais sofridas pelas configurações familiares nos últimos anos.

Julien (2000) em "Abandonarás teu pai e tua mãe", nos permite avançar na discussão ao construir sua reflexão a partir das seguintes interrogações: O que uma geração deve transmitir à seguinte para permitir abandoná-la? Em que condições a transmissão entre gerações pode ser efetuada? Importa aqui, nem tanto examinar as novas formas em que a família se apresenta e discutir (talvez até mesmo procurar antecipar!) suas conseqüências, mas contextualizar as transformações e abalos sofridos pela família buscando elementos para uma análise mais precisa. A pergunta que Julien formula e que nos interessa fundamentalmente é: "De onde vem, pois, a transmissão desta lei que impõe abandonar pai e mãe?" (p.8).

Desta forma, deslocamos a discussão de um certo "ideal" de família e do distanciamento que as diversas organizações familiares apresentariam em relação a este ideal, para examinar as questões familiares sob a ética do sujeito do desejo.

Roudinesco, Julien e outros autores que se dedicam à investigação em torno ao tema da família e a contemporaneidade, partem de um panorama bastante "familiar" ao cotidiano das grandes cidades e das relações que se impõem neste contexto: anonimato urbano, crise da família moderna (leia-se casais separados, famílias monoparentais, famílias recompostas, famílias homoparentais, etc.) e incompetência crescente dos pais na educação dos filhos.

"Dar direito a seus próprios pensamentos, sejam eles nobres ou baixos, nascidos na paixão ou na serenidade, e acolher a contradição entre eles tornou-se uma boa chance a ser agarrada. O indivíduo não é mais chamado a dominar seu destino, mas bem antes a ser desapossado de uma identidade fixa: aquela, justamente, de que seus ancestrais podiam estar seguros" (Julien, 2000, p. 21).

É desta forma que Julien traduz a condição do homem moderno: ganha em liberdade à medida que perde a solidez e estabilidade conferidas pela tradição. No que se atualiza na educação dos filhos, constatamos as conseqüências desta destradicionalização, e um dos elementos que se apresenta como central é a ilusão de que as relações, não mais sustentadas nos pilares da tradição, devem se compor de forma democrática.

O autor destaca três fatores fundamentais na concretização de uma sociedade moderna: a democracia, a laicidade e a ciência. Estes três fatores intervêm na constituição dos laços sociais na contemporaneidade, intervêm na conjugalidade e na parentalidade, ou seja, na formação dos laços conjugais e na organização – ou reorganização destes laços a partir do exercício das funções parentais.

A distinção entre os termos conjugalidade e parentalidade é efetuada por Julien de modo a permitir não só a compreensão de como os referidos fatores – democracia, laicidade e ciência – atravessam o laço social na atualidade, mas também fundamenta a análise e articulação que o autor faz entre estes termos e o âmbito privado e o público.

 

Família ou famílias?

"Embora todo mundo acredite saber o que é uma família, é curioso constatar que por mais vital, essencial e aparentemente universal que a instituição família possa ser, não existe para ela, como é também o caso do casamento, uma definição rigorosa." (Héritier , 1991, citado por Ceccarelli, 2007)

Roudinesco (2003) inicia o livro destacando a universalidade da família. Para tanto, recorre a Lévi-Strauss, que, em 1956, assinalou que a vida familiar apresenta-se em praticamente todas sociedades humanas, mesmo aquelas que possuem hábitos sexuais e educativos diferentes dos nossos. Ao repousar sobre a união mais ou menos duradoura e socialmente aprovada entre um homem, uma mulher e de seus filhos, a família se institui como um fenômeno universal.

Até então, os antropólogos acreditavam que a família surgira recentemente, após longa e lenta evolução. Contudo, destaca Roudinesco, não se conhece praticamente nenhuma sociedade na história do gênero humano em que a família nuclear não tenha desempenhado papel importante, na imensa maioria dos casos como grupo residente no mesmo domicílio.

Ceccarelli (2007) considera que os elementos que definem a família variam de acordo com a sociedade e que "qualquer modelo de família é tributário da ordem social que o produz." (p. 95).

Ainda de acordo com Lévi-Strauss (1986, citado por Roudinesco, 2003), a universalidade da família repousa na concepção naturalista da diferença dos sexos (trata-se de um fenômeno biológico?). Contudo, há outra condição necessária: para a criação de uma família são necessárias outras duas famílias que forneçam um homem e uma mulher. A família, em sua constituição, supõe uma aliança (casamento) e a filiação.

Fundada na proibição do incesto, a família repousa na diferença anatômica (natural), mas a passagem à cultura se dá a partir da proibição do incesto (ligada a uma função simbólica).

Roudinesco (2003) identifica três grandes períodos na evolução da família:

- a família tradicional:

estruturava-se visando assegurar a transmissão de um patrimônio. Os casamentos eram arranjados e a família era submetida à autoridade patriarcal (a um Deus pai). A família representava uma célula estável remetida a um mundo imutável.

- a família "moderna":

fundada no amor romântico, se impõe entre o final do século XVIII e meados do XX e representa uma ruptura com o modelo tradicional de família.

A idéia de ruptura é introduzida por Julien (2000) ao acentuar o aspecto "consensual"2 introduzido no laço conjugal. A escolha passa a ser um elemento central na constituição da família:

"Há aí uma ruptura importante. Antigamente, as famílias velavam pela semelhança de identidade dos esposos: educação, mesma crença religiosa, proximidade geográfica, tradições culturais. Doravante, a sexualidade revela publicamente que há um além das identificações sociais, uma transgressão das fronteiras culturais, uma "familiar" estranheza da relação, uma mestiçagem étnica, uma subversão na linhagem; em suma, uma alteridade mais manifesta do que nunca". (p.11)

A família moderna é também fruto de outras inovações: a valorização da divisão do trabalho entre os esposos e a introdução do Estado como responsável pela educação dos filhos.

Vale ressaltar que a modernidade impõe duas grandes mudanças que estabelecem definitivamente a divisão entre conjugalidade e parentalidade e que representam uma reorganização dos aspectos públicos e privados destas dimensões. A conjugalidade passa a ser orientada pela escolha dos cônjuges (o caráter privado se acentua) paralelamente à entrada do terceiro social que passa a dividir a responsabilidade, a autoridade sobre as crianças, inscrevendo a parentalidade em um âmbito público. Ao situar estas mudanças, Julien reafirma a importância de diferenciar conjugalidade e parentalidade, sobretudo ao evidenciar que a distinção entre privado e público, no século XX toma a forma de uma disjunção entre conjugalidade e parentalidade:

É esta a novidade de nossa modernidade. O social, que invade o domínio do político, avança de agora em diante sobre o território familiar. De fato, cada vez mais, os representantes da sociedade intervêm na relação entre pais e filhos. (p. 15)

É preciso ainda que nos detenhamos no terceiro grande período na evolução da família:

- A família "contemporânea" ou "pós-moderna"

E aqui tomamos emprestadas as palavras escolhidas por Roudinesco (2003) para circunscrever o modo como o laço social se estrutura neste modelo que é o vigente na atualidade:

"Finalmente, a partir dos anos 1960, impõe-se a família dita "contemporânea" – ou "pós-moderna" – que une, ao longo de uma duração relativa, dois indivíduos em busca de relações íntimas ou realização sexual. A transmissão da autoridade vai se tornando cada vez mais problemática à medida que divórcios, separações e recomposições conjugais aumentam" (p. 19).

A família contemporânea constitui-se desta forma como uma rede assexuada, fraterna, na qual cada indivíduo se sente autônomo. É democrática, frágil e consciente de sua desordem. Mais uma vez a democracia se configura como aspecto central, mas desta vez não só nos laços conjugais, mas também no exercício da parentalidade.

A estas alturas, talvez caiba a pergunta: há uma desordem na família ou uma nova ordem vem se instalando?

Quais as conseqüências das rupturas e abalos experimentados pela família para a educação das crianças? Retomando a interrogação de Julien: o que deve ser transmitido? Esta nova ordem propicia as condições necessárias para a transmissão?

 

Conjugalidade e parentalidade

A disjunção enfatizada por Julien (2000) entre conjugalidade e parentalidade tem como efeito que a sexualidade torna-se cada vez mais privada e culmina na concepção de um caráter público da educação.

Na medida que o PACS reconhece as uniões homossexuais mas restringe o reconhecimento legal à conjugalidade, separa definitivamente a sexualidade do exercício da parentalidade. Se a educação das crianças é um fato público, se o estado deve zelar pelos direitos da criança, bem, neste caso, que se restrinja ao privado o que é da ordem do sexo e que se justifique desta maneira o não-reconhecimento do direito à parentalidade nos casais homossexuais.

Interessante pensar que a outra cara desta moeda seria a concepção de uma parentalidade sem sexualidade – e para tal a ciência se apresenta em toda sua onipotência. Pois a pós-modernidade permitiu o prazer sem procriação (com o surgimento da pílula, com a legalização do abordo nos países desenvolvidos) e agora a procriação sem prazer, ou melhor, a procriação sem sexo, por meio da procriação medicamente assistida.

Debieux (2006) se pergunta se a conseqüência deste atravessamento da ciência não seria o que Lacan cunhou como a "criança generalizada", "em um mundo em que não existe gente grande ou certas antimemórias" (p. 120).

Ao inscrever a filiação no discurso científico, ao tomar a ciência como um dos Nomes do Pai, a sexualidade é retirada e obtura-se o discurso do desejo. Não há garantias na transmissão, mas como pensar a transmissão de referências simbólicas que organizam o laço social quando a criança fica remetida à ciência? Talvez caiba a pergunta: o que a ciência se propõe a restituir?

"... como efeito do declínio do nome do pai, a intervenção dos discursos científicos, jurídicos e pedagógicos na família, e sua tentativa de substituir o pai, produz filiações nem sempre simbólicas... A Ciência gera e modela crianças, e os efeitos desta "verdade" contemporânea, se não alertados, podem ser desastrosos para a ética do desejo". (Debieux, 2006, p. 121)

Conseqüências para a educação? Que filiação pode produzir a ciência quando pretende intervir nos processos de constituição da parentalidade? Bem, a sexualidade é um elemento essencial na transmissão. Suspender a sexualidade parece ir ao encontro de uma educação asséptica. Sob que condições?

 

Sobre a transmissão

Quando nasce um filho, afirma Julien (2000) o casal cruza a fronteira entre o privado e o público; no reconhecimento legal, inaugura-se a autoridade parental, é pela instauração de uma filiação que se introduz a dimensão simbólica.

O que transmitimos aos nossos filhos? – pergunta Philippe Julien. A resposta, diz o psicanalista, passa pela lei do bem-estar, pela lei do dever, pela lei do desejo.

Vejamos como o autor formula a transmissão.

A lei do bem-estar remete à segurança, à proteção, ao conforto. Mas na modernidade, diz o autor, o bem-estar não se define pelo bem-estar de um, pelo singular; define-se mais exatamente a partir de um viés democrático a partir do princípio de maior felicidade para o maior número.

É visando ao bem-estar da criança que se justifica a intervenção do terceiro social na transmissão, "... em nome da lei do bem-estar, esclarecem os pais sobre suas competências e seu julgamento. Pouco a pouco, o saber do perito se arroga um poder sobre a criança de tal modo que a lei do bem-estar se transmite à geração seguinte não mais apenas pelo familiar, mas pelo social." (Julien , 2000, p. 25)

A lei do bem-estar, contudo, não é suficiente, é preciso uma outra lei, a lei do dever. Esta é universal e incondicional, não se conformando à exceção ou singularidade de tal ou qual caso. É também categórica; e mesmo que a modernidade tenha se constituído mediante a crise da autoridade, a lei do dever se impõe por si mesma, não mais em razão daquele que a enuncia:

"É a lei que fala. É a lei que fala por si mesma e não porque a mãe ou o pai decidiram falar... a autoridade, seja ela familiar ou social, privada ou pública, vale pela enunciação de uma lei comum, à qual cada um está sujeito e de que cada um é o legislador" (p. 27)

O autor ainda ressalta que a lei do bem-estar e a lei do dever podem ser transmitidas no âmbito público, restando à lei do desejo a especificidade da condição de uma transmissão no âmbito privado.

Em nome do bem ou do dever, pode-se trair a lei do desejo, pode-se acomodar, acovardar: "eu fiz pelo seu bem", "fiz porque era meu dever". Quando se renuncia ao desejo, quando estas duas primeiras leis encontram seu próprio limite, é esta terceira lei, acrescenta Julien, a lei do desejo, que se faz presente.

A lei do desejo está no fundamento de cada nova conjugalidade. A lei de abandonar pai e mãe para unir-se a um homem ou uma mulher é a lei do desejo. Diz Julien: o desejo é a confissão da falta. Como se transmite esta lei? De quem a recebemos?

Julien inicia convocando a lei universal da interdição do incesto - lei que rege a sociedade humana e institui uma delimitação, que varia de acordo com as culturas, entre o interdito e o autorizado - em seu caráter privado: esta lei é enunciada pela sociedade, mas é atualizada de modo singular na transmissão familiar da lei do desejo.

Mas bem, se o desejo está no fundamento da conjugalidade, é preciso frisar que não há aliança conjugal sem ruptura com a família de origem, e, acrescenta Julien, não há ruptura sem transmissão parental. É ainda condição para a transmissão parental uma conjugalidade fundadora da parentalidade.

Retomando. Para lançar-se na construção de uma nova família, é preciso abandonar pai e mãe. Para abandonar pai e mãe, é preciso uma transmissão. Esta transmissão passa pela enunciação de um desejo que está para além do filho (uma conjugalidade fundadora da parentalidade), é preciso que uma mãe possa também, e sobretudo, ser mulher, é preciso que um pai possa figurar-se como um homem, e uma das vias para tal é o desejo de uma mulher.

Sauret (1997) lê a fórmula de Lacan no que diz respeito ao pai, "o nome do pai é o vetor de uma encarnação da Lei no desejo" da seguinte maneira: "... um pai não tem direito ao respeito, e nem tem direito ao amor, a não ser que ele faça de uma mulher a causa de seu desejo".

Ao acompanhar o modo pelo qual Julien concebe a transmissão da lei do desejo, mais uma vez constata-se a relevância da diferenciação e da articulação entre conjugalidade e parentalidade. Neste momento, o autor enfatiza a conjugalidade como fundadora da parentalidade quando o imaginário social (e talvez as leis do dever e do bem-estar) parecem veicular a idéia de que a família de origem se funda sobre a parentalidade:

"Isso não deve ser interpretado em termos biológicos: só a fecundação permite ter filhos. Esta redução "científica" fada ao fracasso o verdadeiro desafio da transmissão à geração seguinte. Com efeito, só uma mãe e um pai que foram e ainda continuam sendo um para o outro mulher e homem pode transmitir a lei do desejo a seus filhos uma vez crescidos" (p. 46)

Em "Duas notas sobre a criança", Lacan (1969) destaca o que denomina "o irredutível de uma transmissão... que é de uma constituição subjetiva, implicando a relação com um desejo que não seja anônimo." Lacan delimita a função da mãe, cujos cuidados levam a marca de um interesse particularizado, ainda que pela via das próprias faltas e do pai, na medida em que seu nome é o vetor de uma encarnação da Lei no desejo.

Ainda que em passant, Lacan refere o fracasso das utopias comunitárias - as "duas notas" foram entregues a Jenny Aubry em 1969, período em que estas utopias encontravam-se no auge - em suprimir a família.

A família resiste! – constata Sauret em seu "Comentário sobre o texto de Lacan "Duas notas sobre a criança" (1997). "Resiste reduzida ao que tem de irredutível", e esta irredutibilidade remete à exigência de uma transmissão, transmissão dos elementos necessários para que haja sujeito. Lacan enfatiza que esta transmissão é de uma outra ordem que a natural. Sauret completa: "não há necessidade de família para fazer filhos, mas para fazer sujeitos, sim."

Neste ponto, duas questões se colocam: o nascimento de um filho não determina automaticamente a constituição das funções parentais. Estas requerem um processo delicado de reordenamento simbólico. As funções parentais não estão determinadas pelos aspectos biológicos daqueles que constituem as figuras parentais. O irredutível da transmissão, desta forma, não reside no fato de que haja um homem e uma mulher no exercício das funções e tampouco a existência de pai e mãe conformam naturalmente – instintivamente – as operações fundamentais necessárias à constituição subjetiva.

O comentário de Sauret sobre "as notas" desdobra o texto mesmo onde ele mesmo parece irredutível. Sauret comenta uma observação de Lacan sobre o desejo da mãe: "ainda que fosse pela via de suas próprias faltas". E então lê: essa marca particularizada, vale mais uma marca negativa, que nenhuma marca.

Voltolini3 traduz da seguinte maneira o que seria o ideal da educação para Freud: "desejar coisas para os filhos, tolerar suas escolhas". Deste modo encontramos já em Freud esta clareza: a educação sustenta-se em marcas de desejo, marcas que não são garantias. Marcas que implicam em um arriscar-se, marcas para além do "para o seu bem" ou "porque era meu dever", marcas de desejo.

Constatamos um dos efeitos do modo como a democracia se imiscui na contemporaneidade no exercício das funções parentais quando os pais são categóricos ao sustentar o ato educativo numa promessa: "não vou desejar nada para meu filho, ele será o que quiser..." Nestes casos, a perspectiva democrática institui a dimensão de promessa, e se impõe em detrimento da lei do dever e da lei do bem-estar.

Em seus Três conselhos para a educação das crianças, Calligaris (1994) alerta para a inversão entre promessa e dever que ocorre ao se seduzir a criança "com uma promessa que compromete o valor de nossa palavra educadora" (p.28). O autor chama a atenção para o fato de que a hegemonia da condição de promessa imposta à criança compromete a dimensão simbólica.

É certo que a educação se sustenta numa promessa: marcar o filho com o desejo, mas sob vestes democráticas parece veicular-se um discurso autoritário. No imperativo de felicidade imposto às crianças, parece não haver lugar para o sujeito do desejo.

Desta forma, encontramos por um lado, no modo como a ciência atravessa o laço social na modernidade, a idéia subjacente de uma transmissão asséptica. Por outro, no estabelecimento da liberdade de escolha - no modo pelo qual a democracia se instala no laço social na modernidade - institui-se a criança como promessa (promessa de felicidade) para além do dever. Encontramos assim no imperativo de felicidade, a dimensão de promessa sem nenhuma ancoragem simbólica, que remonta, novamente, à eliminação para a parentalidade dos riscos "de suas próprias faltas", mas desta vez, pela via de um gozo desmedido.

 

Notas

1 - Pacto civil de solidariedade (PACS) – lei francesa em vigor desde 1999 que legaliza a união entre casais do mesmo sexo, mas não supõe o direito à adoção de crianças ou à procriação medicamente assistida.

2 - De acordo com Julien (2000) a partir do Concílio de Florença, em 1439, o consentimento mútuo passa a criar o vínculo conjugal, não sendo mais necessário o consentimento dos pais.

3 - Em comunicação pessoal realizada em aula.

 

Referências bibliográficas

CALLIGARIS, C. (1994). Três conselhos para a educação das crianças. In: Educa-se uma criança? Calligaris, C. et alli (org.) Associação Psicanalítica de Porto Alegre. Editora Artes e Ofícios.

CECCARELLI, P.R. (2007). Novas configurações familiares: mitos e verdades. In: Jornal de psicanálise. Instituto de Psicanálise – SBPSP. Volume 40 – jun. 2007 – no. 72.

JULIEN, P. (2000). Abandonarás teu pai e tua mãe. Rio de Janeiro: Companhia de Freud.

LACAN, J. (1969). Duas notas sobre a criança. In: Ornicar? Revista do Campo freudiano. N. 37.

ROSA, M.D. (2006). O lugar da criança e a família na contemporaneidade. In: A criança o infantil na clínica psicanalítica. Literal – Escola de Psicanálise de Campinas, N. 9.

ROUDINESCO, E. (2003). A família em desordem. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.

SAURET, M.J. O infantil & a estrutura. São Paulo: Escola Brasileira de Psicanálise, 1997