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ISBN 978-85-60944-12-5 versão

An 7 Col. LEPSI IP/FE-USP 2009

 

8/11 - COLÓQUIO-COMUNICAÇÕES LIVRES

 

À escuta da linguagem na clínica de bebês

 

 

Erika Parlato-Oliveira

Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) eparlato@hotmail.com

 

 


RESUMO

A linguagem é considerada muitas vezes como sinônimo de fala oral verbalizada e dirigida intencionalmente a um outro num processo sustentado pela cognição do sujeito. A clínica de bebês nos ensina que essa delimitação da linguagem é restrita e simplificadora do processo que envolve e possibilita a produção e apreensão da linguagem. Este trabalho visa destacar os elementos constitutivos da linguagem que estão além da formalização oral e que são determinantes para o trabalho clínico junto às díades mãe-bebê. Assim, destacamos que os aspectos: prosódicos, visuais, olfativos, gestuais, motores, táteis e verbais desempenham um papel determinante na construção de um processo linguageiro. As percepções desses aspectos possibilitam diferentes leituras, interpretações que irão ser constitutivas do sujeito. Estas condições que sustentam e promovem a linguagem são captadas pelo bebê. A linguagem imbricada na estrutura desvela o sujeito e revela seu desejo ao outro, é a esta linguagem, do Outro do outro, que o bebê se põe a escutar.

Palavras-chave: linguagem, clínica de bebês, percepção.


 

 

« Chercher l'essence de la perception,
c'est déclarer que la perception est non pas présumée vraie,
mais définie pour nous comme accès à la vérité. »
(Maurice Merleau-Ponty)

 

A percepção como interpretação

A percepção humana não pode ser tomada como uma cópia exata do mundo, produzindo uma imagem interna do mundo exterior. Toda percepção é necessariamente uma construção, interpretação do mundo. Isso se encontra ilustrado, por exemplo, nos trabalhos de Helmoltz (1821–1894) sobre a percepção visual. O mundo visual que nós percebemos é um mundo em três dimensões, no entanto o sinal que nós recebemos sobre a nossa retina é captado em duas dimensões. Nosso cérebro reconstrói então a terceira dimensão por inferências aproximadas, segundo Helmoltz, é a partir das inferências, feitas pelos astrônomos, que se pode calcular a distância que nos separa dos planetas ou das estrelas longínquas. A diferença das inferências realizadas pelos astrônomos das nossas inferências perceptuais é que as nossas são feitas de forma inconsciente. A existência de ilusões visuais ou figuras ambíguas que se tornaram objetos de estudo de psicólogos da Gestalt ilustram bem o fato que a percepção vai além da estimulação sensorial, assinalando que por vezes há uma ou mais interpretações em conflito para uma mesma experiência sensorial visual. A neurociência acrescenta que há um tratamento de informação sensorial, onde o aparelho de cognição das experiências sensoriais é tomado como um conjunto de módulos que efetuam cálculos (Fodor, 1980), estes módulos perceptivos tratam as informações sensoriais transformando-as em um código ao qual se dá uma (ou várias) interpretação. É somente a partir das transformações efetuadas pelos módulos que podemos falar em experiência perceptiva consciente, sendo que o funcionamento interno dos módulos permanece opaco.

 

A percepção categorial

A percepção da linguagem ocorre a partir do sinal contínuo que chega à nossa orelha e de onde se extrai as categorias discretas: os fonemas, os morfemas, as frases. Estas categorias são o suporte dos cálculos que nos permitem recuperar o sentido dos enunciados, e que nos permite, com a ajuda de outros elementos, recuperar a intenção de comunicação do locutor. Entenda-se bem que, a utilização dessas categorias discretas não é necessariamente a linguagem: da mesma forma que a percepção visual, nós segmentamos o fluxo contínuo de informação sensorial em objetos descontínuos perceptuais, dotando-os de uma ou mais categoria perceptual.

Uma das particularidades da linguagem é que essa passagem do contínuo para o descontínuo se opera de maneira extremamente precoce. As pesquisas mostram que desde a articulação de uma simples sílaba, o ouvinte vai imediatamente recordar este sinal ouvido em termos de elementos discretos: em vogais e consoantes. A existência desta categorização precoce é ilustrada pelo fenômeno da percepção categorial que foi descoberta nos anos 1960.

Os trabalhos recentes de Naatanen et al. (1997) et de Dehaene-Lambertz et al. (2004) utilizando a eletrofisiologia (MEG ou ERPs) confirmam que a percepção categorial é um fenômeno extremamente precoce : desde os primeiros 150 ms de apresentação do sinal acústico encontra-se a assinatura da percepção categorial, este fenômeno ilustra bem o fato que a percepção não nos dá um acesso fiel da realidade dos eventos acústicos, ao contrário, numerosas informações são descartadas, eliminadas pelo processo de categorização.

Os trabalhos feitos no laboratório de Haskins demonstram que a categorização fonêmica é um processo extremamente complexo. Uma das descobertas fundamentais destas pesquisas é que não existe correspondência unívoca entre as propriedades acústicas dos estímulos e a estrutura das categorias fonéticas. Um dos fatores responsáveis por esta não correspondência é o que se denomina como coarticulação. Ela deriva do fato de que quando o locutor fala, ele não produz os segmentos fonéticos de uma palavra de forma seqüencial, um após o outro, ao contrário, os segmentos são coarticulados, os gestos de um mesmo segmento estão realizados no mesmo momento que os dos segmentos adjacentes. Por exemplo, na palavra "que", os gestos para [K] e para [e] ocorrem ao mesmo tempo, resultando em um sinal que entrelaça as informações para os dois segmentos.

A coarticulação nos permite produzir seqüências de segmentos numa grande velocidade, mas complica consideravelmente a nossa percepção: o primeiro problema é a segmentação, todo fragmento de sinal acústico contém necessariamente informações pertinentes para vários segmentos fonéticos. Sendo então impossível dividir o sinal acústico em fragmentos discretos que corresponderiam à nossa percepção em fonemas. O segundo problema é o da variabilidade acústica, e deve-se ao fato que as propriedades acústicas que permitem identificar um dado segmento variam de acordo com o contexto em que o segmento aparece. Por exemplo, a forma de informação acústica característica de [k] seguida por [i] é diferente da seqüência [k] seguida por [u]. Para complicar ainda mais as coisas, um mesmo contraste fonético é assinalado por vários índices acústicos que interagem (Lisker,1986).

Essas características perceptuais nos levam a processos de "alucinações" ou de "ilusões perceptuais", como relatado em Parlato-Oliveira (2005) sobre o fenômeno de epêntese vocálica em falantes de língua portuguesa européia, de língua portuguesa brasileira e em falantes da língua japonesa. O fenômeno de epêntese perceptual foi testado, em cada grupo, com os mesmos estímulos sonoros, eram apresentados logatomas com grupos consonantais ilegais nas duas línguas (consoante-consoante-vogal, como por exemplo "ebzo") e solicitado aos sujeitos que indicassem o que ouviam entre as consoantes. Os falantes de língua portuguesa européia indicavam ouvir as duas consoantes, sem qualquer som entre elas, os falantes de língua portuguesa brasileira ouviam predominantemente uma vogal "i" entre as consoantes e os falantes de língua japonesa ouviam predominantemente uma vogal "u", sempre para os mesmos estímulos. Ou seja, os resultados obtidos mostraram que falantes de línguas diferentes "escutam" de forma diferente os mesmos sons. Tal fenômeno possibilita observar a influência da cultura, através da língua materna, na nossa percepção.

 

O bebê, a percepção, o ritmo e a voz

Os bebês ouvem os sons, a princípio, indistintos, mas as pesquisas psicolingüísticas recentes mostram que os bebês já realizam recortes fonéticos precocemente (Ramus, 1999, Christophe et al. 2003, Trevarthen, 2003) . Os sons da língua, ao invés de uma massa amorfa, constituem para o bebê os indícios para a construção da percepção da realidade que o circunda. Os sons propiciam ao bebê os sentidos, através dos quais ele organiza sua ação no mundo. A relação do bebê com sua mãe passa, necessariamente, pelo sentido que se destaca do som que a mãe imprime a ele na sua fala melodiosa – manhês. O inaudível para a mãe, que lhe escapa ao sentido, é o que promove sentido no bebê.

Desde antes do nascimento o bebê já está exposto à voz da mãe (Grosléziat, 1998). Esta sonoridade peculiar propicia ao bebê, após o nascimento, a segurança frente à presença de algo conhecido e favorece sua inserção no mundo lingüístico que o rodeia. O manhês é encontrado nas mais diversas comunidades culturais, e é produzido por um adulto que se ocupa do bebê, freqüentemente sua mãe, mas que também pode ser produzido por qualquer outro que se ocupe desta função de maternagem.

Esta forma melodiosa de falarmos com o bebê é natural e espontânea. Ela é caracterizada pelo prolongamento das vogais, que a torna mais lenta e sonora, pelo aumento da freqüência, que a faz mais aguda e por glissandos característicos, que a torna mais musical (Dupoux et Mehler, 1990).

Várias pesquisas psicolingüísticas, desde a década de 1970, incluindo os trabalhos de Anne Fernald (1989), Jacques Mehler (1990) e Colwyn Trevarthen (2003), mostraram as competências do bebê para identificar a sua língua materna, preferir a voz de sua mãe e, ainda mais recentemente, com aparatos tecnológicos mais precisos, sabemos que os bebês são capazes de diferenciar duas línguas, de ritmos diferentes, às quais ele não foi exposto anteriormente. O mais interessante é que todas estas capacidades do bebê estão fundamentadas na sua habilidade em discriminar o ritmo, por outro lado, isso nos leva à verificação de uma coincidência extraordinária: é justamente o ritmo a característica que mais diferencia o manhês da fala dirigida ao adulto, ou seja, nós naturalmente utilizamos, ao falar com o bebê, uma característica que ele tem maior habilidade para perceber sonoramente.

Meschonnic (1982) em seu livro a Critique du Rythme, considera o ritmo como uma organização subjetivo-coletiva do discurso. O ritmo é um conceito cultural e relativo e não apenas físico; ele é a marca da subjetividade, seu sistema, a história de um sujeito através de seu discurso. Mais que todos os outros significantes, ele é um significante para os outros significantes.

Um dos fatores que favorecem a relação do bebê com sua mãe é a voz, mas esta relação ocorre de forma multimodal, através dos diversos canais sensoriais, tais como o tato, o olhar e a audição. Sendo que todas estas experiências sensoriais contribuem para o jogo relacional entre a mãe e o bebê.

A multimodalidade nos instiga a considerar outras sensorialidades do bebê. O jogo escópico do olhar e ser visto pelo outro e no outro promove a condição de se reconhecer na linguagem que ora recorta o corpo do bebê, ora delimita os objetos para este. O olfato permite a confirmação da presença deste outro, tornando-o um para o bebê. A gestualidade e o contato tátil compõem uma orquestração de um balé performático, onde a tonicidade desta dança sustenta a intencionalidade da linguagem. A verbalização oral produz os traços de uma escritura inconsciente que engendrará a sua produção significante.

Podemos valorizar então habilidade da percepção auditiva do bebê e pensarmos a pulsão invocante, como "esse impulso que é chamado a mover-se em direção a este significante detentor do inaudito que ultrapassa todo significado"(p.149). (Didier-Weill, 1999). Ainda que ela não seja simbolizável ela é simbolizante, a partir dela o mundo lhe fala, as coisas ganham sentido. Sendo assim a voz poderá ser a realização da promessa da qual o discurso é portador, a confirmação de um suposto saber pela linha diacrônica.

O bebê ouve primeiramente o sentido dos sons, para em seguida ouvir o som das palavras. Porém ao aceder à inteligibilidade da descontinuidade dos fonemas e das palavras, ele permanece sob a ascendência originária da pura sonoridade da voz da mãe. O audível para o bebê, que lhe preenche de sentidos, será também percebido pela sua mãe, nesse jogo de relaçõe significativas.

 

A clínica de bebês

A musicalidade prosódica da voz materna dirigida ao bebê, o manhês, marca a produção de linguagem do bebê e produz a escritura prévia de sua estruturação, nos permitindo, na clínica, identificar os sinais de adoecimento precoce do bebê.

O que sabemos atualmente que podemos observar na clínica é decorrente de uma longa experiência com análise de vídeos familiares de situações relacionais entre mãe e bebê. O material analisado foi composto por filmes familiares de crianças que foram posteriormente diagnosticadas como autistas e por filmes familiares de crianças sem queixas de alterações no seu desenvolvimento. Este rico corpus foi acessível a partir da colaboração com Filippo Muratori e Sandra Maestro, professores da Universidade de Pisa, que coordenam a Fundação Stella Maris, centro de referência para o autismo, na Itália e com Marie Christine Laznik, psicanalista francesa.

O material gravado em vídeo atualmente permite investigar de forma mais minuciosa sinais comunicativos, que antes eram desconsiderados. A partir da análise deste material pudemos constatar um não-direcionamento do bebê ao outro, muito precocemente. Outro fator recorrente é a não-sincronia entre os dois "interlocutores", eles parecem funcionar em ritmos diferentes, o que compromete a troca comunicativa.

A clínica de bebês busca propiciar uma sintonia entre mãe e bebê, a partir da escuta de cada um. O terapeuta assume então a função de intérprete, para que a troca comunicativa seja efetiva. Em alguns casos, dando suporte à mãe, para que ela possa se autorizar a saber sobre seu filho, em outros, dando voz ao bebê, que busca em vão ser compreendido. Os fatores susceptíveis de desencadear a reatividade e a interação mãe-bebê, são identificados e a intervenção ocorre nos componentes semióticos.

As dificuldades aparentes nesta linguagem, considerada numa perspectiva semiótica, estão no centro dos mecanismos patológicos, e as anomalias dos processos de interação, nos primeiros anos, resultarão em anormalidades fixas de estruturação do sujeito. Eis a importância da escuta desta linguagem na clínica de bebês.

 

Bibliografia

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GROSLEZIAT, Chantal. Les bébés et la musique: première sensation et création sonores. Ramonville Saint-Agne: Érès, 1998.

____________________ Bébés chasseurs de sons: les bébés et la musique. Ramonville Saint-Agne: Érès, 1998.

LISKER, Leigh. "Voicing" in English: A catalogue of acoustic features signaling /b/ versus /p/ in trochees. Language and Speech, n. 29, p. 3-11, 1986.

MEHLER, Jacques e DUPOUX, Emmnuel. Nascer Humano. Lisboa: Ed. Instituto Piaget, 1990.

MESCHONNIC, Henri. Critique du Rythme : anthropologie historique du langage. Lonrai: Ed. Verdier, 1982.

NAATANEN, Risto, et al. Language-specific phoneme representations revealed by electric and magnetic brain responses, Nature, n. 385, p. 6615-6618, 1997.

PARLATO-OLIVEIRA, Erika Maria. Une étude inter-langue d'un phenoménè d'illusion dans la comunication verbale: le cas d'éphanthèse vocalique. Thèse de Doctorat, paris, ehess, 2005.

RAMUS, Frank. Rythme des langue et acquisition du langage. thèse de Doctorat, paris, EHESS, 1999.

TREVARTHEN, Colwyn e AITKEN, Kirk John. Intersubjectivité chez le nourrison: recherche, théorie et application clinique. Devenir, n.. 15(4), 2003.