7À escuta da linguagem na clínica de bebêsGrupo Mix: o convívio entre crianças "diferentes" e uma possível ampliação da circulação social author indexsubject indexsearch form
Home Pagealphabetic event listing  




 ISBN 978-85-60944-12-5

An 7 Col. LEPSI IP/FE-USP 2009

 

8/11 - COLÓQUIO-COMUNICAÇÕES LIVRES

 

A escolarização de alunos com acometimentos orgânicos e psíquicos: educação impossível ou interminável?

 

 

Fernanda Braga de Araújo

 

 


RESUMO

O presente texto levanta as questões relevantes e os impasses vividos nas escolarização – regular e especial - de alunos com graves acometimentos orgânicos (surdez, paralisia, cegueira, síndromes, etc) e psíquicos (autismo e psicose).
A educação de alunos com tais quadros revela-se, desde as primeiras iniciativas no panorama histórico, como aquela em que diferentes discursos especialistas transitam, prevendo técnicas, manobras e estimulações precisas para minimizar as deficiências e, dessa forma, viabilizar a tarefa educativa mais propriamente dita. O que se constata é uma idéia de educação apoiada numa ação preventiva e corretiva, lançando o professor numa busca por discursos das mais variadas ciências, na tentativa de corroborar sua ação e instrumentalizar-se para responder a questões sobre as quais se vê convocado diariamente, como saúde, alimentação, desenvolvimento motor, entre outras.
A tarefa educativa – entendida como a transmissão de marcas simbólicas que possibilitem à criança aceder ao mundo compartilhado1 -, já tão questionada na modernidade, se vê ainda mais obturada no caso da educação especial ou inclusiva, demitindo o professor de seu lugar de educador e transformando-o em um "estimulador de capacidades" e "detector de déficits, deficiências e dificuldades".

Palavras-chave: educação especial, educação inclusiva, deficiência múltipla, distúrbios globais do desenvolvimento, contemporaneidade.


 

 

Para todos aqueles que se debruçam sobre a questão da escolarização especial ou regular, as crianças e os jovens com graves acometimentos orgânicos e psíquicos escancaram desafios, questionando a prática escolar e, principalmente, revelando impasses ao professor em sua tarefa de educar.

Em primeiro lugar, deve-se entender o que se chama de acometimentos orgânicos e psíquicos. Estes são os alunos que apresentam alguma deficiência de base, como surdez, paralisia, cegueira, ou seja, algum comprometimento orgânico, associada a falhas na estruturação psíquica, os chamados distúrbios globais do desenvolvimento, como autismo e psicose. Não raras vezes, estes alunos chegam às escolas sob o crivo da "múltipla deficiência", evidenciando que o diagnóstico engloba mais de uma deficiência, por isso o termo "múltipla". Ou seja, o termo múltipla deficiência vem, muitas vezes, referindo-se a uma deficiência sensorial ou física e a algum comprometimento psíquico – autismo, psicose - dessa forma também tomado como deficiência. Nas escolas e nas políticas que norteiam sua escolarização, estes são alguns dos alunos categorizados como detentores de "necessidades educativas especiais".

Deparamo-nos, portanto, com uma clientela que pouco – ou nada – pode ocupar o lugar de aluno designado pela escola: não se sentam em carteiras (muitas vezes, nem se sentam), não se interessam por livros, cadernos, tintas, lápis, não brincam, não interagem com colegas ou profissionais, ou o fazem de forma bastante peculiar, com estereotipias, rituais, deixando intrigados os professores e questionando a própria tarefa educativa.

São estes alunos que escancaram ainda mais as dificuldades para o professor, que se vê questionado em seu saber de ensinar e passa a ser convocado a responder sobre questões de saúde, cuidados e estimulações. O enfrentamento da tarefa de escolarização dos alunos com graves problemas orgânicos e psíquicos revela impasses ao professor, que passa a responder de diferentes formas diante do que à sua frente se revela. É a tarefa educativa que parece, pois, deixada em segundo plano diante da avalanche de interrogações e demandas a respeito do desenvolvimento maturacional, orgânico, psicológico, pedagógico dos alunos.

Como pode o professor empreender sua tarefa educativa diante de tantos apelos e demandas de diversas áreas de conhecimento? Deve ser ele um professor especialista? Como ser especialista em tantas áreas de conhecimento? Como ser professor e, ao mesmo tempo, ser responsável pela saúde de alunos convulsivos, ou pela adaptação de materiais que possibilitem melhor acuidade visual de um aluno com baixa visão, ou ainda, tendo que pensar sobre estereotipias e formas nada convencionais de se relacionar, por exemplo? São essas algumas das perguntas que ecoam em reuniões escolares.

A história da educação especial mostra-se recente no panorama mundial. As primeiras iniciativas de atenção educacional às crianças com deficiência datam do início do século XIX, na Europa, Estados Unidos e Canadá. Conforme afirma Mazzotta (2001, p. 16) "até o século XVIII, as noções a respeito da deficiência eram basicamente ligadas ao misticismo e ocultismo, não havendo base científica para o desenvolvimento de noções realísticas".

Ainda segundo esse autor (op. cit., p .17), até o final do século XIX, proliferaram diversas formas de atendimento educacional às pessoas com deficiência, com diferentes nomenclaturas: Pedagogia de Anormais, Pedagogia Teratológica, Pedagogia Curativa ou Terapêutica, Pedagogia da Assistência Social, Pedagogia Emendativa.

Desde então, várias iniciativas, no Brasil e no mundo, surgiram, buscando formas de prestar atendimento educacional a esses alunos. O que se nota é que, desde o início, a educação buscou alianças com outras áreas de saber, na tentativa de encontrar conhecimentos que pudessem fazer avançar os efeitos educacionais para este alunado. Termos como "reeducação do sistema nervoso", "treinamento motor e sensorial", "ação preventiva e corretiva", "assistência", "amparo", "clínica", "conforto e bem-estar" se fazem presentes nos documentos oficiais desde essa época.

Ao traçar um panorama geral sobre a história e as políticas públicas da Educação Especial no Brasil até 1990, Mazzotta conclui (op. cit., p. 129):

"As principais tendências que caracterizam tais políticas, em âmbito nacional, até 1990, são: centralização do poder de decisão e execução, atuação marcadamente terapêutica e assistencial ao invés de educacional, ênfase no atendimento segregado realizado por instituições especializadas particulares" (grifos nossos).

O que se percebe, portanto, é que a educação especial já nasce tomando emprestados conhecimentos de outras áreas, ou seja, já tem seu início marcado por alianças entre diversos saberes, numa tentativa de tornar possível e eficaz a tarefa educativa voltada aos alunos com deficiências. Desde sempre, a educação destes alunos buscou alicerce no dizer especialista, prevendo técnicas, manobras e estimulações precisas para minimizar as deficiências e fazer avançar a educação.

Kassar (1999, p. 22), citando o pensamento de Mazzotta a respeito da primeira iniciativa particular de atendimento educacional a alunos com deficiência mental no Brasil (Instituto Pestalozzi, criado em 1926), diz:

"Essa instituição introduz no Brasil a concepção de 'ortopedia das escolas auxiliares' européias. Tal concepção decorre da incorporação dos conhecimentos das ciências naturais pelas ciências humanas e da visão estritamente organicista da deficiência mental".

Ora, não é de se estranhar, portanto, que, ainda nos dias de hoje, o panorama de educação de alunos com deficiências seja exatamente este. Lançando-se um olhar mais abrangente sobre o que se faz presente na escolarização de tais alunos, encontramos traços que se repetem na grande maioria das escolas, quer sejam especiais ou regulares.

Em primeiro lugar, notamos que a idéia de "estimulação" ou "reeducação" é fortemente presente nas escolas, configurando-se uma área onde se encontram diversas especialidades que se dizem parceiras da educação na "adequada" estimulação dos alunos e no estabelecimento de programas e métodos. Dessa forma, supõe-se que os déficits ou deficiências possam ser minimizados a partir de uma estimulação adequada e constante, advinda de práticas psicológicas, pedagógicas, fonoaudiológicas, fisioterapêuticas, médicas, visando, sobretudo, uma adequação da criança ao meio e o seu desenvolvimento nas áreas estimuladas.

Munidas desse discurso, muitas das escolas traçam objetivos precisos e adotam métodos que supõem especiais, levando especialistas das mais variadas áreas para dentro dos muros escolares. Não raro nos deparamos com fonoaudiólogos, psicólogos, fisioterapeutas, terapeutas ocupacionais, pedagogos especialistas, enfim, variadas especializações em sala de aula, adequando os programas e controlando o ambiente para "facilitar" a educação desse aluno. Assim, mobiliário, iluminação, recursos visuais e auditivos, extensores, pranchas, tudo está lá, pronto para ser usado pelo ou com o aluno e, dessa forma, espera-se promover sua educação.

Em segundo lugar, ainda que a este primeiro ponto associados, comparecem na educação destes alunos os cuidados, entendidos aqui como as ações que visam o bem-estar e a saúde do aluno, tais como higiene, alimentação, vestuário. No caso destas crianças e jovens, estes aspectos tomam grande parte do cotidiano escolar, tendo em vista a dependência que apresentam, seja de ordem física ou psíquica. Estes alunos, portanto, prolongam os cuidados que a priori existem em contextos de crianças menores, como em creches ou, no máximo, na educação infantil. Aqui, observam-se dois fenômenos: ou estes aspectos são renegados, não sendo almejada qualquer autonomia do aluno neste sentido, sendo o professor encarregado de fazer pelo aluno, não enxergando nenhuma função educativa em ensinar-lhe, por exemplo, a comer sozinho ou a controlar os esfíncteres. Um segundo fenômeno facilmente observável com relação aos cuidados é uma supervalorização destes aspectos, com tabelas de controle esfincteriano, técnicas e manobras apropriadas para estimular o aluno a se alimentar de forma independente, entre outras. Aqui, muitas vezes, são traçadas alianças entre o professor e os terapeutas, que se encarregam de estipular os programas a serem seguidos. De qualquer forma – ou renegando ou supervalorizando - as ações que visam o cuidado dos alunos são sempre realizadas, tomando grande parte da programação escolar.

Um terceiro ponto que se destaca na escolarização de tais alunos refere-se à alienação a que ficam submetidos em termos das tarefas mais precisamente do âmbito escolar, ou seja, aquelas para as quais o professor se vê realmente preparado. São as pinturas, modelagens, recortes, atividades de escrita, enfim, todo o "pedagógico". Muitas vezes, vemos trabalhos que envolvem traçados precisos, conceitos, pinturas bem delimitadas, que, claramente, não podem ter sido feitas pelo aluno, mas são "por ele" assinadas. Os professores seguem fazendo tais atividades, muitas vezes pegando as mãos dos alunos e utilizando-as para apertarem um papel a ser colado ou espalharem a tinta numa superfície, sem a menor participação do aluno ou mesmo sem seu consentimento.

Vale ressaltar, ainda, a eterna infantilização que aparece na escolarização de tais alunos. Não raro, diante de jovens ou adultos que permanecem nas escolas especiais, os professores seguem falando de forma infantilizada, contando histórias, contos e canções infantis e propondo as mesmas atividades durante anos a fio, sem qualquer modificação. É como se se esperasse que o aluno demonstrasse domínio sobre um determinado conteúdo para, então, poder passar ao próximo. Como estes alunos muitas vezes não demonstram reconhecer cores e formas, por exemplo, passam anos e mais anos de suas vidas tendo que pintar quadrados amarelos, círculos vermelhos, e assim por diante. Com Levin (2005, p. 261), podemos pensar:

"O grande risco para o professor ou profissional do ensino 'especial' é gerar na criança um pensamento, um saber e uma lógica de execução sem sujeito, sem que ela exista nesse pensamento e no que faz. Socializar, aprender e ensinar nunca pode equivaler a domesticar".

Diante disto, observamos, ainda, que estes alunos são aqueles que nunca saem da escola especial. Aqueles que, porventura, estiveram nas escolas regulares em processos de inclusão, muitas vezes chegam às escolas especiais já na vida adulta. Ou seja, a escola especial passa a ser o destino da vida adulta dos alunos com graves comprometimentos psíquicos e orgânicos. Estes adultos são sempre alunos, apesar de não serem. Não atingem a programação considerada mínima em termos de autonomia de ação e pensamento, e nos bancos escolares permanecem, repetindo o mesmo, usando uniformes, mochilas e lancheiras, ano após ano, até a vida adulta, numa escolarização que se mostra interminável.

Estes são apenas alguns dos pontos diagnosticados na escolarização dos alunos de que aqui falamos. De qualquer forma, o que se destaca em todos estes aspectos é um olhar que recai precisamente sobre o desenvolvimento, fortemente voltado para o organismo-criança. A partir de escalas que prevêem padrões a serem alcançados, a escola lança-se a adequar seus alunos a atividades previamente definidas, correndo atrás do tempo perdido por meio de "estímulos" precisos. E mais: diante do pouco avanço que se obtém em termos educacionais, os professores "congelam" jovens e adultos num tempo infantil e fazem de conta que ensinam para alguém que, fazem de conta, quer aprender. O aluno é olhado por suas deficiências – e, nesse sentido, tem-se que correr para minimizá-las – ou no ideal pedagógico dos alunos "normais", que pintam, recortam, colam, escrevem, ou, ainda, num tempo descompassado, como se, por não aprenderem o que prepara a escola, tivessem que ficar presos numa eterna infância.

Mas, mesmo com tudo isso, são os próprios professores que constatam: a educação não acontece. São eles mesmos que nos vão contando o que se passa – ou melhor – o que não se passa em suas salas de aula. Não há aprendizagem que se sustente, os professores se percebem paralisados diante daquilo que não avança, e almejam, numa busca frenética, parcerias com especialistas das mais diversas áreas para, dessa forma, encontrar meios de atingir a tarefa educativa.

Os professores, apesar de seus esforços hercúleos, constatam que estes alunos "não se desenvolvem", "não aprendem" como outros. Os diagnósticos, prognósticos e orientações deixam escapar algo: os alunos permanecem alheios, apresentam estereotipias, não se interessam por aquilo que o professor apresenta em sala, tão "apropriadamente" pensado para os alunos com tal diagnóstico e tal faixa etária. Os mobiliários estão corretos, a inclinação da folha é precisa para o melhor ângulo de visão do aluno, o pincel tem a espessura adequada para facilitar a preensão e, no entanto... o aluno nem ao menos olha para o papel, atira o pincel ou bate-o insistentemente sobre a mesa, questionando todos os saberes do professor, que passa a buscar, em outras áreas de conhecimento, mais e mais informações que lhe sirvam de ferramentas para trabalhar com o aluno à sua frente.

Dessa forma, as escolas não se cansam de convocar médicos, fisioterapeutas, fonoaudiólogos, psicólogos, terapeutas ocupacionais, enfim, o saber especialista, depositário de todas as incertezas e dúvidas e suposto como aquele que pode tornar possível a empreitada educativa destes alunos.

O que se constata, pois, é que o saber do professor - que deveria recair precisamente sobre a educação - fica sem lugar diante destes alunos e das demandas de saúde, cuidados e estimulações. O professor, ao ver-se convocado a responder sobre diversas áreas de conhecimento, vive aquilo que se pode chamar de crise em sua identidade profissional, curvando-se às demandas de estimulação e saúde, passando a responder quase como um terapeuta, enfermeiro ou médico em sala de aula. Os atravessamentos dos discursos especialistas que, em primeira instância seriam para aliviar as dúvidas e questionamentos, são justamente os que escancaram ainda mais o "sem lugar" do professor, que permanece numa errância entre os saberes especialistas, solicitando que a escola lhe ofereça especializações e formações para que sua prática seja possível.

Fazendo-se uma leitura de materiais e apostilas veiculados pelo Ministério da Educação, freqüentemente deparamo-nos com guias que apontam exatamente o que aqui falamos. Por exemplo, em um material produzido pela Secretaria de Educação Especial de Brasília (2004) encontramos:

"O avanço no processo de desenvolvimento e aprendizagem das crianças com múltipla deficiência compreende uma ação coletiva maior, intersetorialidade e responsabilidade social compartilhada. Requer colaboração entre educação, saúde e assistência social: ação complementar dos profissionais nas diferentes áreas do conhecimento (neurologia, fisioterapia, fonoaudiologia, terapia ocupacional e psicologia escolar) quando necessário, fornecendo informações e orientações específicas para o atendimento às peculiaridades decorrentes de cada deficiência". (op. cit., p. 12)

Percebemos, então, que a educação prevê alianças com outras áreas para que sua prática seja viável no atendimento à múltipla deficiência, priorizando a interdisciplina. Porém, como aqui pensamos, muitas vezes tal idéia vem justamente lançar o professor na busca por saber tudo sobre o aluno, em todas as áreas, transformando-o (o professor) num co-terapeuta em sala de aula e fazendo com que perca de foco sua ação educativa.

Concordamos, pois, com Levin (2005, p. 255):

"(...) a interdisciplina nunca é o que já se sabe, mas também o que não é sabido. Este paradoxo desfaz a pretensa correspondência precisa entre a criança e a patologia, o professor especial e o especial da criança, os terapeutas especialistas e o especializado da criança (...)".

Com Lajonquière (1999, p. 110), podemos pensar:

"Por que a "educação especial" pensa que deve ser especial? Pois, considera que em se tratando de seres tão especiais, uma empresa educativa "normal" acabaria se revelando ineficaz."

Obviamente, não queremos, aqui, isolar o que ocorre em termos da educação voltada a alunos com deficiências. Na verdade, constatamos que todo o panorama descrito com relação à educação especial ou inclusiva reflete o que se passa também na educação como um todo, tanto escolar como familiar, em que o saber especialista e os ditos da Ciência ganham espaço e descaracterizam a educação. Ao refletir sobre a presença do saber médico na educação de crianças, Guarido (2008, p. 40) afirma:

"Um conjunto complexo de disciplinas se organizou em torno da criança, da família e da infância ao longo dos dois últimos séculos; um novo jogo de idéias e práticas passou a sustentar as intervenções destinadas a fornecer as referências modernas de cuidado e moralização das crianças".

Práticas médico-psico-pedagógicas passam a responder pela educação das crianças, oferecendo referências e modelos aos pais e educadores em suas tarefas educativas. É o saber das disciplinas, o saber científico que passa a ser, em primeira instância, a referência de todos aqueles que se dedicam à educação, seja no seio familiar ou na escola. Nesta última, segundo constata Guarido (op. cit., p. 46),

"(...) os professores foram também chamados a serem extensão do olhar especialista na prática cotidiana, levados a observarem as variações de comportamento das crianças e a orientarem seus familiares na busca de tratamentos adequados aos problemas apresentados pelos alunos".

Como afirma Lajonquière (1999), o discurso psicopedagógico ganha hegemonia no terreno educacional, com uma série de saberes "psi" para calcular e intervir na educação, que passa a ter que responder às capacidades psicomaturacionais dos alunos, num desenfreado processo de estimulação de capacidades, demitindo o adulto do papel de educador e transformando o saber especialista em responsável pela tarefa educativa. Assiste-se, portanto, a uma renúncia à educação, sendo a figura do mestre substituída pela figura do especialista.

Ou ainda, como afirma Jerusalinsky (1999, pp. 6, 7):

"Eis aí um dos problemas atuais na educação; o saber se desloca do pai para a ciência. E a ciência moderna propõe que o objeto seja a fonte do saber (...) Pedagogos e técnicos diversos da infância são consultores, conselheiros e orientadores, que, armados de testes, parâmetros estatísticos, sistemas, protocolos e metodologias variadas, oferecem um saber objetivo (sic), em lugar de opiniões, princípios ou modelos identificatórios".(grifos do autor)

Parece ser, justamente, esse perigo ao qual nos alertava Freud, em sua importante conferência XXXIV (1933, p. 147), apontando-nos o risco de uma pretensa ciência ou algum método educativo que se disponha a homogeneizar a tarefa educativa. Diz ele:

"(...) a educação tem de escolher seu caminho entre o Sila da interferência e o Caribdis da frustração. A menos que o problema seja inteiramente insolúvel, deve-se descobrir um ponto ótimo que possibilite à educação atingir o máximo com o mínimo de dano. Será, portanto, uma questão de decidir quanto proibir, em que hora e por que meios. E, ademais, devemos levar em conta o fato de que os objetos de nossa influência educacional têm disposições constitucionais inatas muito diferentes, de modo que é quase impossível que o mesmo método educativo possa ser uniformemente bom para todas as crianças". (grifos nossos)

Podemos avançar, ainda, com as idéias de Hannah Arendt (2007) sobre a crise na educação. Segundo Arendt, aquela que seria a essência da educação – iniciação dos recém-chegados em um mundo simbólico comum e público – mostra-se ameaçada pela ausência do senso comum, de significações partilhadas. O que se assiste, pois, é a um abandono das tradições e da cultura, numa hipervalorização do novo e desresponsabilização generalizada pela continuidade do mundo, em que interesses privados se sobrepõem aos públicos. A constante valorização da produção, do novo, do trabalho, do consumo imediato, deixa esquecido o que foi construído por gerações passadas, ameaçando de forma marcante a educação das crianças.

Ao elencar as idéias que configuram a crise contemporânea da educação, Arendt (op. cit., p. 230) aponta uma importante mudança de papel dos adultos na educação das crianças, que se vêem perdendo a autoridade - que antes era certo que detinham - e deixam com que crianças fiquem banidas do mundo adulto, entregues à própria sorte, ou à tirania do seu grupo.

Mais ainda, Arendt alerta para o fato de que, além de perderem a autoridade diante das crianças, os professores acabaram por desligarem-se completamente da tarefa de ensinar, não mais reconhecendo a necessidade de conhecerem sua própria disciplina. Sobre esse aspecto, Arendt afirma (op. cit., p. 231):

"(...) não apenas os estudantes são efetivamente abandonados a seus próprios recursos, mas também (...) a fonte mais legítima da autoridade do professor, como a pessoa que, seja dada a isso a forma que se queira, sabe mais e pode fazer mais que nós mesmos, não é mais eficaz."

Outro aspecto de suma importância apontado por Arendt (op. cit., p. 232) refere-se ao pragmatismo que vem se tornando imperativo na educação. Segundo ela, "esse pressuposto-básico é o de que só é possível conhecer e compreender aquilo que nós mesmos fizemos, e sua aplicação à educação é tão precária quanto óbvia: consiste em substituir, na medida do possível, o aprendizado pelo fazer. É, pois, a partir dessa idéia, que o ensino passa a ser mero coadjuvante no fazer do aluno, em que o aprendizado passa a ser substituído pela ação, o trabalho pelo brincar.

Na medida em que defende a autoridade e responsabilização do adulto em relação à criança, Arendt fala em conservadorismo como sendo aquele capaz de proteger "(...) a criança contra o mundo, o mundo contra a criança, o novo contra o velho, o velho contra o novo" (op. cit., p. 242). Como ela mesma afirma:

"Exatamente em benefício daquilo que é novo e revolucionário em cada criança é que a educação deve ser conservadora; ela deve preservar essa novidade e introduzi-la como algo novo em um mundo velho, que, por mais revolucionário que possa ser em suas ações, é sempre, do ponto de vista da geração seguinte, obsoleto e rente à destruição".(op. cit., p. 243)

Vale ainda ressaltar o que Arendt diz a respeito da diferença entre educação e aprendizagem, aspecto fundamental para se refletir a respeito da crise na educação. Segundo nos conta, a função da escola "(...) é ensinar às crianças como o mundo é, e não instruí-las na arte de viver" (op. cit, p. 246). Mais ainda, tece uma severa crítica ao papel que vem sendo atribuído à Pedagogia nos tempos modernos, papel este que vem tornando-a única responsável pela educação das crianças:

"O que nos diz respeito, e que não podemos, portanto, delegar à ciência específica da pedagogia, é a relação entre adultos e crianças em geral, ou, para colocá-lo em termos ainda mais gerais e exatos, nossa atitude face ao fato da natalidade: o fato de todos nós virmos ao mundo ao nascermos e de ser o mundo constantemente renovado mediante o nascimento". (op. cit. , p. 247)

Podemos, portanto, avançar em nosso pensamento e concluir que o que se apresenta hoje no âmbito da escolarização dos alunos com deficiências e comprometimentos psíquicos é justamente o que nos deparamos no campo educacional de uma forma ampla. Os dizeres da ciência, como afirma Lebrun (2004, p. 53), substituem a "relação mestre-sujeito" por uma "relação saber (acéfalo)-sujeito". Mais ainda, o que se encontra na relação com o saber (acéfalo) não é o sujeito-aluno: podemos entender que aí se encontra o aluno na posição de objeto da ciência, a ser investigado, estudado, diagnosticado, catalogado. Como nos conta Lajonquière (1999, p. 121):

"Antes, o professor parecia saber que falava ao sujeito. Hoje, pensa falar com um objeto. E se desespera porque não consegue ensinar nada para esse suposto objeto. Seu aluno rebela-se, opõe-se, grita, e é como se estivesse dizendo: 'Você está enganado, não sou esse tipo objeto da psicologia do desenvolvimento, que deveria agora estar no período das operações mentais de ordem x, mas que está exibindo apenas as de ordem x-1!'".

A propósito desta busca frenética por um saber que oriente e prescreva a tarefa educativa, concordamos com Camargo (2006, p. 94):

"Apostar no sucesso de uma educação em decorrência deste ou daquele artifício prescritivo-metodológico mais ou menos explícito não faz mais que revelar a ilusão de todo e qualquer pré-tenso educador na possibilidade de abster-se dos riscos impostos pela aventura pedagógica-educativa, que muito tem a ver com o risco de estar em contato permanente com o inefável, o avesso e o inesperado, já que a docência é vivida no campo das trocas intersubjetivas, onde surgem imagens outras que insistem não ser idênticas àquelas do próprio educador ao mirar-se no espelho".

Assistimos, portanto, em nosso mundo contemporâneo, a uma submissão da educação aos dizeres das mais variadas ciências, as quais se oferecem de forma a cada vez mais obturar as inquietações, dúvidas, faltas que assolam a tarefa de educar, propondo e vendendo discursos que tamponem os mal-estares e desautorizem os protagonistas de pensar. Lebrun (2004, p. 73), ao falar sobre as idéias de Arendt a respeito do professor não mais autorizado em seu saber, afirma:

"Não se trata de um sujeito maléfico, mas de um sujeito que se demite de sua posição de sujeito, que se submete totalmente ao sistema que o comanda, que não se autoriza a pensar, que não pensa mais; é um sujeito que se demite de sua enunciação e se contenta em ser congruente com os enunciados aos quais consentiu em se sujeitar".

Mais ainda, como constata Voltolini (2004, p. 137):

"Que um professor deva eclipsar-se frente ao aluno permitindo que ele acesse o objeto de conhecimento, premissa tantas vezes alardeada pelo discurso pedagógico hegemônico, é algo que não deveria ser alçado à condição de uma premissa metodológica. Sua posição, a maneira como ele investe o objeto com um "dom", o fascínio ou a repulsa que ele provoca quando ensina, não são elimináveis mesmo que o desejássemos".

A partir de todas essas considerações, podemos, pois, voltar, novamente, nosso olhar mais especificamente para a educação dos alunos com graves acometimentos orgânicos e psíquicos. As perguntas que se fazem, portanto, são: como é possível, para uma educação que, desde seu início se articula com o discurso científico para daí extrair sua ação, fazer-se possível? O que garante ao professor da educação especial seu lugar de mestre, de educador, no sentido acima exposto? Quais os impasses vividos em sua tarefa educativa?

Não tratamos, aqui, de procurar respostas para tais indagações e oferecer saídas que tamponem ainda mais a tarefa educativa. Neste sentido, concordamos com Lajonquière (1999, p. 19):

"Longe de propormos a forma positiva de uma educação adequada, ou seja, de mais uma teorização pedagógica, pensamos estar contribuindo no sentido de assinalarmos, apenas, aquilo que não deve ser feito, caso se deseje o acontecimento de efeitos educativos".

Ou ainda, como afirma Lebrun (2004, p. 110):

"Ora, a tarefa de governar, como a de educar ou a de psicanalisar, como já indicava Freud, é uma tarefa impossível, o que significa que se trata de uma tarefa que exige sustentar-se pela falha, pela falta".

O caminho aqui percorrido pretendeu, portanto, apenas tecer uma reflexão a respeito do que se concebe como educação especial e educação inclusiva na contemporaneidade, numa tentativa de compreensão dos limites e possibilidades com os quais se deparam todos aqueles envolvidos na sua escolarização, sem qualquer proposição de novos métodos especiais ou propostas educacionais, numa posição ética de apenas revelar e discutir o que se passa no campo educacional destas crianças e jovens.

 

Notas:

1. Concordamos, aqui, com as idéias de Lajonquière (1999, p. 173): "(...) educar não é nada mais que o corriqueiro pôr em ato de um processo de filiação ou sujeição a ideais, desejos, sistemas epistêmicos e dívidas".

 

Referências Bibliográficas

ARENDT, H. A crise na educação. In: ____________. Entre o Passado e o Futuro. São Paulo: Perspectiva, 2007, p. 221-247

CAMARGO, A.C.C.S. Educar: uma questão metodológica? Proposições psicanalíticas sobre o ensinar e o aprender. Petrópolis, RJ: Vozes, 2006.

FREUD, S. Conferência XXXIV. Explicações, aplicações e orientações. In: FREUD, S. Edição Standard das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, vol. XXII. Rio de Janeiro: Imago, 1996.

GUARIDO, R.L. "O que não tem remédio, remediado está". Medicalização da vida e algumas implicações da presença do saber médico na educação. Dissertação (mestrado). Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo. São Paulo, 2008.

JERUSALINSKY, A. Apresentação. In: CALLIGARIS, C.(org.) Educa-se uma criança? Porto Alegre: Artes e Ofícios, 1999, p. 05-08.

__________________ Psicanálise e desenvolvimento infantil. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 1999.

KASSAR, M. C.M. Deficiência múltipla e educação no Brasil. Discurso e silêncio na história de sujeitos. Campinas, SP: Autores Associados, 1999.

LAJONQUIÈRE, L. Infância e Ilusão (Psico)Pedagógica. Escritos de psicanálise e educação. Petrópolis, RJ: Vozes, 1999.

LEBRUN, J-P. Um mundo sem limite: ensaio para uma clínica psicanalítica do social. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2004.

LEVIN, E. Clínica e Educação com as crianças do outro espelho. Petrópolis, RJ: Vozes, 2005.

MAZZOTTA, M. J.S. Educação especial no Brasil: história e políticas públicas. São Paulo, Cortez, 2001.

MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. SECRETARIA DA EDUCAÇÃO ESPECIAL. Educação Infantil: saberes e práticas da inclusão. Dificuldades acentuadas de aprendizagem, deficiência múltipla. Brasília, 2004. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/seesp/arquivos/pdf/educação%20infantil%204.pdf, acessado em 10/10/2008.

PETRI, R. Psicanálise e educação no tratamento da psicose infantil: quatro experiências institucionais. São Paulo: Annablume, Fapesp, 2003.

VOLTOLINI, R. A relação professor-aluno não existe: corpo e imagem, presença e distância. ETD - Educação Temática Digital, Brasília, DF: 2004. Disponível em: http://143.106.58.55/revista/viewarticle.php?id=415, acessado em 14/10/2008.