7A escolarização de alunos com acometimentos orgânicos e psíquicos: educação impossível ou interminável?Educação infantil: a educação e o cuidado enquanto espaços de subjetivação author indexsubject indexsearch form
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 ISBN 978-85-60944-12-5

An 7 Col. LEPSI IP/FE-USP 2009

 

8/11 - COLÓQUIO-COMUNICAÇÕES LIVRES

 

Grupo Mix: o convívio entre crianças "diferentes" e uma possível ampliação da circulação social

 

 

Fernanda de Sousa e Castro Noya PintoI; Rogério LernerII; Carolina Cardoso TiussiIII; Joana JunqueiraIV

IGraduada em Psicologia e mestranda no Programa de Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano d o IPUSP. Associada do Lugar de Vida. Participa do grupo de pesquisa "Uso do IRDI (indicadores clínicos de risco para o desenvolvimento infantil) e da AP3 (avaliação psicanalítica do terceiro ano) em instituições", cadastrado no diretório de grupos de epsquisa do CNPq
IIProfessor Doutor e orientador do no Programa de Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano do IPUSP. Associado do Lugar de Vida. Vice-líder do grupo de pesquisa "Uso do IRDI (indicadores clínicos de risco para o desenvolvimento infantil) e da AP3 (avaliação psicanalítica do terceiro ano) em instituições", cadastrado no diretório de grupos de epsquisa do CNPq
IIIGraduada em Psicologia pelo IPUSP. Colaboradora do Lugar de Vida e membro da equipe do Projeto Grupo Mix
IVGraduada em Psicologia pelo IPUSP. Associada do Lugar de Vida e membro da equipe do Projeto Grupo Mix

 

 


RESUMO

O presente trabalho propõe uma discussão acerca de uma atividade em grupo realizada na Associação Lugar de Vida que é tema de uma pesquisa de mestrado: o Grupo Mix. Trata-se de um espaço que promove o encontro de crianças que estruturalmente ocupam lugares diferentes no discurso social. Atualmente, compõem o grupo crianças moradoras de um abrigo e crianças com diagnóstico de autismo e psicose infantil. A idéia que norteia o projeto é a de que o convívio entre crianças que, estruturalmente, ocupam lugares diferentes no discurso social pode propiciar mudanças importantes em seu arsenal simbólico, sua maneira de relacionar-se com o outro e com a cultura. O grupo propõe que se constitua ou se estenda o laço social por meio de atividades que contam com códigos culturalmente compartilhados. Propõe-se também que se responda às demandas das crianças a partir de lugares diferentes dos habituais, lugares que provocam estranhamento e possibilitam deslocamentos em suas posições discursivas. Neste grupo, crianças de abrigo, normalmente consideradas carentes e abandonadas, ocupam um lugar de saber, de quem tem algo a dizer. Orientadas pela instância simbólica das leis, agem a partir de sua maneira neurótica de lidar com as vicissitudes da infância. Crianças autistas e psicóticas, por sua vez, são convidadas a ocupar lugares de infância, a brincar e fazer laço com outras crianças, parecendo escutar o que os pequenos semelhantes têm a dizer de forma diferente da que escutam os adultos. Nesse sentido, seria possível que essas alterações de papéis favoreçam uma mudança da posição subjetiva dessas crianças?

Palavras-chave: abrigo, autismo, psicanálise


 

 

Introdução

O presente trabalho propõe uma discussão acerca de uma atividade em grupo realizada na Associação Lugar de Vida1 e que é tema de um projeto de mestrado: o Grupo Mix. Há alguns anos temos feito montagens diferentes desse grupo, que já passou por três grandes mudanças. Assim, retomaremos brevemente a história do grupo, focando no último período, a fim de discutirmos sua proposta de trabalho.

A idéia de fundar este grupo surgiu quando algumas crianças moradoras de uma comunidade de baixa renda, situada no entorno da Universidade de São Paulo, pediram para conhecer e freqüentar o Lugar de Vida. O pedido dessas crianças suscitou na equipe a necessidade de pensar sobre o que levaria aquelas crianças a quererem brincar na instituição. A partir desse pedido, montamos um grupo com a participação de crianças da comunidade, neuróticas, e crianças em tratamento no Lugar de Vida, diagnosticadas como autistas e psicóticas. Desta experiência, surgiram algumas hipóteses que nos levaram a dar continuidade nesta configuração de encontros entre crianças que ocupam lugares diferentes no discurso social. Percebemos que além da diferença psíquica, estrutural, entre neurose e psicose, essas crianças apresentavam uma outra diferença quanto ao lugar em que são colocadas nos discursos sociais que as circundam. Os meninos da comunidade, que normalmente circulavam pelos espaços públicos ocupando o lugar de marginais e desafiadores das leis, entraram no Lugar de Vida em uma posição oposta. Ou seja, no grupo, eram eles que diziam às outras crianças o que é permitido fazer em nossa cultura. Falavam para as crianças não comerem coisas do lixo, não morderem umas às outras. Por outro lado, as crianças do Lugar de Vida eram vistas por esses meninos a partir do lugar de uma infância propiciadora de certas experiências, lugar em que todos podem brincar, dentro de certas leis. As crianças do Lugar de Vida, que muitas vezes eram tratadas pelos pais ou pela escola como merecedoras de compreensão, o que freqüentemente se encaminhava para uma permissividade excessiva, sob o olhar desses meninos, ocupavam o lugar de uma criança que não comeu direito, por isso não fala, ou que não aprendeu ainda, por isso come coisas do chão. Ou seja, eram enxergadas como crianças, livres dos discursos de tratamento que permeiam o saber sobre autistas e psicóticos.

Em um segundo momento, a equipe recebeu crianças de um abrigo e, logo no início da montagem do grupo, percebeu que a dinâmica das relações, o tipo de demanda e de laço que as crianças do abrigo faziam eram substancialmente diferentes do que havia sido observado com os meninos da comunidade. Essas crianças carregam histórias de separação do convívio com os familiares e também de abandono que frequentemente marcam a forma com que se relacionam com o outro. Além da história individual de cada uma, as crianças que moram nos abrigos freqüentemente são objeto de determinado discurso social que as coloca na posição de carentes afetiva e culturalmente, logo, de desprovidas de produção de saber. Esse lugar pode ser impeditivo de certas reações e de circulação.

Devido a essas especificidades, decidimos começar o grupo apenas com as crianças do abrigo (neuróticas) para mais tarde pensarmos na entrada de crianças psicóticas e autistas. No entanto, realizávamos o grupo com as portas da sala abertas e isso mantinha a possibilidade de circulação de outras crianças. No mesmo horário do grupo, aconteciam no Lugar de Vida alguns atendimentos individuais. As crianças desses atendimentos ocasionalmente entravam na sala do grupo Mix. Essas entradas ficaram cada vez mais freqüentes e, percebendo o possível benefício desses encontros para todos, optamos por incluir as crianças do Lugar de Vida no grupo. Assim, foi a partir da curiosidade das crianças umas pelas outras que se formou o novo grupo Mix. Participam atualmente da montagem quatro crianças do abrigo e duas crianças com diagnóstico de Distúrbios Globais do Desenvolvimento (DGDs2). Elas têm idade entre seis e nove anos.

 

As crianças que participam do Grupo Mix atualmente:

I- A criança abrigada

Impedidas do convívio com os familiares, uma das primeiras coisas que as crianças moradoras de abrigo experimentam é a obscuridade dos limites entre o público e o privado. Não tarda a vivenciarem a institucionalização, que "priva de privacidade".

Segundo o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA, art. 101 § único): "O abrigo é medida provisória e excepcional, utilizável como forma de transição para a colocação em família substituta, não implicando privação de liberdade". No artigo 92, o ECA apresenta ainda as diretrizes e critérios que devem nortear este programa: as entidades que desenvolvem programas de abrigo deverão adotar os seguintes princípios: I - preservação dos vínculos familiares; II - integração em família substituta, quando esgotados os recursos de manutenção na família de origem; III - atendimento personalizado e em pequenos grupos; IV - desenvolvimento de atividades em regime de co-educação; V - não desmembramento de grupos de irmãos; VI - evitar, sempre que possível, a transferência para outras entidades de crianças e adolescentes abrigados; VII - participação na vida da comunidade local; VIII - preparação gradativa para o desligamento; IX - participação de pessoas da comunidade no processo educativo.

Dessa forma, o abrigo é uma alternativa de proteção por meio de uma moradia, que deve ser provisória e que propicie circulação social (escola, atendimento de saúde, lazer) das crianças em um momento de suas vidas onde não haveria um adulto disponível para o cumprimento de suas funções de pai, mãe ou responsável.

Entre outras coisas, a questão da provisoriedade e a possibilidade de mobilidade da circunstância de estar abrigado é um ponto importante a ser pensado. Esta provisoriedade está ligada a alguns fatores: história singular de cada um, tempo em que os trâmites legais duram, idade da criança, número de irmãos, disponibilidade de adultos no abrigo para cuidar de cada caso.

Diante disso, podemos levantar a hipótese de que estar abrigado coloca a criança em certo estado social, que apesar de ter discurso de transitoriedade, é na maioria das vezes um estado prolongado. Quase como se para alguns pudesse ser dito: Sou abrigado. O que significaria esta condição? Minnicelli (1999) diz ser condição de menoridade, "minorância": "Menoridade é chamada – de forma depreciativa – por alguns cidadãos de 'minorância'. Se me permitem brincar com este termo, poderíamos dizer 'menor (ig)norância' ou a 'ignorância do menor' ou 'menor ignorado' " (p.58).

Muito frequentemente vêem-se iniciativas e ações na tentativa de acalentar, pela via do assistencialismo e voluntariado, o sofrimento propiciado tanto pelo abandono por parte dos pais, quanto pela situação de abrigamento. Mas, nesses casos, em qual posição estão colocados esses sujeitos para serem "merecedores" de assistência? Existem pessoas e instituições que acreditam que tais circunstâncias necessariamente levam a uma maior carência afetiva, cultural, menor aptidão ao aprendizado, maior susceptibilidade à barbárie e à agressividade e que, portanto, as crianças necessitam de "compensações". A idéia, em linhas gerais, é a de que resolvendo algo desta "necessidade" colabora-se para uma melhor posição desses "desprivilegiados". As ações baseadas nessa lógica vertem no sentido de fazer doações, prestar atendimento, ensinar, adaptar, fornecer, oferecer, colocando esses sujeitos na posição de necessitados e recebedores incondicionais. Assim, a criança é colocada por esse tipo de discurso no lugar de quem não tem nada a oferecer, de quem não tem nada a dizer, o que impossibilita a ascensão de suas potencialidades diante o olhar do outro. Nossa hipótese é a de que tal discurso impede ou dificulta a emergência da criança enquanto sujeito de desejo e enquanto agente de sua própria história.

 

II- A criança louca

Crianças que se apresentam com comportamentos diferentes, batem-se, mordem, não falam, emitem sons aparentemente sem sentido, são comumente nomeadas como "estranhas", "loucas", ou, de acordo com a nomenclatura psiquiátrica, crianças portadoras de Distúrbios Globais do Desenvolvimento (DGDs). Para os adultos que as cercam, o convívio com essas crianças pode ser muito angustiante. Assistir a uma criança morder seu próprio corpo ou chorar incessantemente é algo difícil de ser suportado. Frequentemente, em uma tentativa de manejar essa situação, é comum ao adulto adotar uma atitude de permissividade excessiva.

No entanto, ao colocar a criança nesse lugar de exceção, ou seja, daquele que pode fazer tudo sem ser responsabilizado apesar da existência de regras, o adulto priva-a justamente da possibilidade de circular no discurso social e, portanto, dos lugares por excelência da infância. Segundo Figueiredo (2008), as regras, as interdições limitam a construção de um espaço compartilhado. Se essas interdições não são colocadas para a criança, esse espaço não pode ser constituído. Ela sempre ficara à margem, excluída. Como coloca o autor, "o jogo só pode ser jogado por quem reconhece seus limites e aceita as regras. São as regras e os limites, ou seja, as interdições que instauram o espaço do brincar..." (2008, p. 117).

Portanto, compreender as bizarrices de uma criança que precisa se apresentar de maneira diferente não é dar a ela permissão para fazer tudo e qualquer coisa. Tão pouco se trata de consertar uma criança "desconcertada", ordenar a criança desordenada, ou controlar e adaptá-la à norma. Mannoni (1987) nos ensina que não se trata de curar ou proteger, mas sim de "receber a psicose", compreendê-la. Essa postura sugerida pela autora pressupõe que essas crianças sejam tratadas como sujeitos singulares, com suas especificidades. Segundo Kupfer et al. (2007), a posição da equipe que intervém no tratamento da psicose deve ser muito mais de alunos, no sentido daquele que não sabe, do que de mestres da psicose. Oferecemos à criança a possibilidade de fazer laços com outros, da maneira que lhe for possível, e nas brechas que o mundo puder lhe oferecer.

Outro ponto importante a ser considerado, diz respeito ao estatuto do grande Outro para o autismo e a psicose infantil. Apesar de encontrarmos algumas diferenças desse estatuto para a psicose e para o autismo, adotaremos aqui o que lhes há em comum: os problemas no laço entre o sujeito e o Outro (Kupfer et al., 2007). Tanto para a criança autista quanto para a psicótica, o contato com o Outro pode ser insuportável. Há crianças que diante de qualquer tentativa de laço, o evitam ativamente, seja tapando os ouvidos, desviando o olhar, ou se esquivando. Nesses casos, a hipótese é a de que o Outro para essas crianças seja insuportável, invasivo, ou apareça em excesso (Kupfer, 2007). É a partir dessa concepção que manejamos nossas intervenções e que interpretamos alguns eventos do grupo.

 

O estilo das intervenções Mix

De criança para criança

Fred3 é um menino psicótico de nove anos que insiste em trancar-se em uma sala e ali ficar sozinho. A qualquer tentativa de aproximação ele responde: – Saia! Não vou abrir. Certa vez, Bela, uma menina de sete anos, neurótica e moradora do abrigo, decide olhar pela janela o que Fred fazia sozinho naquela sala. Ele percebe que está sendo observado e começa a colocar livros na janela para impedir que fosse visto.

Bela: – Eu estou vendo você!

Ele continua fechando os vãos da janela.

Fred: – Saia!

Bela: – Ainda te vejo, Fred!

Bela se esforçou para enxergá-lo, contorcendo-se, até que, em um de seus esforços para vê-lo, acabou derrubando todos os livros. A janela ficou completamente descoberta. Nesse momento, ela se assustou e ele também. Fred reclamou e disse "coisas mal-educadas", segundo Bela. Ele recolocou os livros que ela havia derrubado. Porém, Bela gostou do que acontecera e derrubou novamente os livros, desta vez de propósito, rindo muito. Então, Fred passou a rir também e eles começaram um jogo. Ele recolocava os livros, ela esperava para então derrubar. Ambos riam e ele recolocava os livros e assim por diante. Quando chegou a hora de terminar o grupo, sugeriu-se que eles se despedissem ali mesmo, já que Bela teria que sair logo. Fred abriu a porta e disse: – Tchau, amiga (estendendo as mãos para a Bela).

– Tchau, amigo (ela retribuiu).

Eis aqui uma cena de substituição da recusa ao contato pelo contato prazerosamente compartilhado. Para Fred, o contato com o outro era constantemente evitado, possivelmente pelo tipo de laço que ele estabelece com o Outro, que sempre recai sobre ele como invasivo e ameaçador. No início, Fred ativamente evita o contato com Bela, que o convoca demasiadamente. Poderíamos imaginar um desfecho desastroso para essa cena, com Fred se desorganizando diante de tanta insistência de Bela. Porém, o desfecho que se passou, além de nada desastroso, ainda pode ter sido terapêutico. O que teria levado Fred a conseguir brincar, ou seja, o que teria apaziguado seu pavor diante do Outro?

Pode-se supor que algo acontecera no instante em que os livros acidentalmente caem, mais precisamente quando Fred percebe o susto de Bela diante do incidente. Nesse momento, Bela revela sua condição faltosa, indica com seu susto que algo foge ao seu controle. Em meio a tanta insistência e convocação, Bela aparece, através do susto, como um sujeito barrado. A partir dessa percepção, Fred consegue fazer da situação uma brincadeira, estabelecendo contato.

Por outro lado, não podemos deixar de fora da análise um terceiro personagem, cujo discurso está presente no contexto em que esta cena se insere: o(s) analista(s) que coordena(m) o grupo. Não podemos deixar de notar que os adultos ali presentes são analistas desejosos de que esta criança saia da sala, entre em contato com as outras crianças, faça laço, consiga brincar. Ainda que não façam diretamente essa demanda à criança, por pressuporem que ela possa ser invasiva e ameaçadora, este desejo está presente no grupo e é percebido por todas as crianças, ainda que não seja dito o tempo todo. Diante disso, podemos supor que o desejo de Bela, de simplesmente saber o que Fred fazia ali ou de querer entrar na sala, seja muito diferente do desejo do adulto, de que Fred "entre em contato com o Outro". Assim, em face do desejo dos coordenadores, talvez o de Bela seja muito menos ameaçador para Fred. Nenhum adulto do grupo sairia derrubando os livros de Fred, como Bela o fez, porque para os adultos é preciso que Fred não se sinta invadido, para que em algum momento ele possa estabelecer contato. Ainda, faz parte da posição dos coordenadores uma direção de trabalho oriunda da clínica psicanalítica: a sustentação de condições para que uma original ocupação do lugar no enlaçamento possa ter lugar.

A cena descrita está permeada pela posição discursiva dos coordenadores, assim como o trabalho do grupo, o que permite que as crianças se posicionem da forma como querem e podem, ainda que não tenham acesso ao discurso. Dessa forma, diante da pergunta formulada anteriormente, nossa hipótese é a de que esta brincadeira pode ter acontecido devido ao desejo dos coordenadores, que permeia o grupo, e devido à posição de Bela, uma criança que desejava brincar.

Outras hipóteses ainda foram formuladas a fim de pensar o encontro entre as crianças do grupo Mix. Será que essa cena poderia nos indicar algo sobre a diferença da relação criança-criança e criança-adulto? Poderíamos pensar que o que se passou foi algo da ordem de uma identificação entre as crianças? Será que Fred identificou-se com a curiosidade de Bela em saber por que havia se trancado na sala? Ou ainda, com a angústia de Bela por não saber o que se passava dentro da sala? Talvez Fred também estivesse angustiado com a situação ou curioso a respeito de Bela.

Todas estas são hipóteses investigadas no grupo. Entretanto, um ponto importante a ser esclarecido é o de que não se trata nessa proposta de colocar as crianças neuróticas como "pequenos terapeutas" das crianças com DGDs. Pelo contrário, há de se cuidar para que interpretações nesse sentido não aconteçam e, mais importante ainda, para que nenhuma criança ocupe esse papel no grupo. A nossa hipótese é de que o encontro entre essas crianças pode produzir algo que beneficie, de alguma forma, todas elas, cada uma portando suas questões.

Assim, para Bela, podemos pensar em um benefício gerado por uma mudança de posição no discurso social. Naquele momento, foi ela que conseguiu brincar com Fred, a quem todos tinham dificuldade em acessar. Bela se coloca na posição de quem tem algo a dar, pode ensinar a Fred como se brinca, experimentando um lugar de potência, produzindo um tipo de saber.

 

A direção das intervenções com uma das crianças

Nino é um garoto de sete anos, morador de um abrigo da cidade de São Paulo. Morou durante muito tempo com a família, nas ruas e em casas invadidas. Ele tem cinco irmãos e seus pais são usuários de álcool e drogas, que após inúmeras tentativas de pararem com o uso, alguns sucessos temporários e algumas recaídas, acabaram por deixar os filhos sob os cuidados de uma instituição. Quando começou a freqüentar o Grupo Mix, Nino estava no abrigo havia três meses. Uma das primeiras frases que ouvimos sobre ele da coordenadora do abrigo foi: - É muito agressivo! Resolve tudo no tapa!

Um garoto agressivo, esse era o retrato de Nino na instituição. Imagem que dificilmente mudaria, uma vez que, segundo a própria coordenadora: – Aqueles que nunca tiveram contato com a família podem até dar um "neurológico normal" (SIC), mas eu não acho... Ninguém me convence. E continua: – Os que foram moradores de rua, então, ficam mais espertos.

Nino estava incluído neste último grupo, dos que tinham sido moradores de rua e haviam ficado "espertos". Frequentemente a psicóloga do abrigo nos dizia que Nino "era mesmo um marginal, menino de rua", que havia machucado uma criança que não fizera o que ele queria, não obedecia, era independente demais. Certa vez, ele mordeu o queixo de um menino pequeno, depois de uma disputa por um objeto, e o menino precisou de atendimento médico para fechar o ferimento.

Alguns episódios ilustram estas cenas de um comportamento "marginal" de Nino também no Lugar de Vida. Em um dos encontros, oferecemos instrumentos musicais e fantasias para as crianças. Assim que começaram a escolher os instrumentos, Nino arrancou a gaita das mãos de Enzo, tomou a flauta de Lia, puxou as baquetas das mãos de Binho, ameaçando também as outras crianças com suas ações agressivas. Acabou conseguindo pegar o que queria, sem considerar as escolhas feitas pelos outros. Em outro momento, quando interviemos no sentido de conter estas ações, Nino retrucou dizendo que ninguém mandava nele, que não iria parar de bater se o outro não fizesse o que ele queria.

Em um outro dia, ele brincava com uma espada quando Rico, uma criança autista, encontra uma outra no armário. Nino, considerando a espada de Rico mais interessante, logo tenta arrancá-la das mãos do colega. Ao intervirmos dizendo que Rico havia pegado a espada antes, Nino puxa-a rapidamente das mãos de Rico, e antes que este possa ter qualquer reação, substitui pela outra espada. No jogo com Nino, é como se ele dissesse: Cara eu ganho, coroa você perde, parafraseando Freud.

Diante dessa maneira de se apresentar, nossa escolha foi por propor a ele se descolar deste lugar em que a ação agressiva tem conotação de poder, de potência. Colocávamos a agressividade que ele nos apresentava no lugar de uma dificuldade em lidar com as situações, e não no lugar de marginalidade ou de potência. Investíamos em outras possibilidades de potencialização, como a fala e as negociações com os outros.

Certa vez, Nino subiu em um pequeno muro e escalou até o telhado de um espaço coberto. Uma das coordenadoras aproximou-se de Nino e com muita calma disse:

– Você pode descer e vir conversar comigo aqui embaixo?

Nino: – Por que, vai quebrar a telha?

– Não, não estou preocupada com a telha. É porque você pode cair daí e se machucar e ninguém aqui quer isto, não é mesmo?

Ele estranhou a resposta, sentou-se e começou a balançar a perna para descer dali. Ela o ajudou e enquanto estendia as mãos para ele, disse que estava disponível caso ele quisesse falar sobre o que estava acontecendo. Ele olhou-a desconfiado e perguntou:

Nino: – Você sabe não é?...O que eu fiz...

Lica: – O que você fez?

Nino: – Você sabe... Mordi... Um menino no abrigo. Ele ficou muito machucado, arranquei um pedaço...

Nino parecia preocupado com o que a coordenadora pensaria sobre aquela agressão que ele tinha cometido. Talvez ele quisesse saber se ainda o aceitaríamos depois do que fizera. Deixaríamos de gostar dele? Que lugar ele receberia depois do que havia feito?

Possivelmente, em uma tentativa de acalmar a angústia gerada por perceber as conseqüências de sua agressividade, ele precisava agora fazê-la voltar para si. Colocar-se em risco parecia uma saída encontrada para conter a angústia que irrompia em momentos como este. Por outro lado, ele se surpreendia com a maneira com que lidávamos com isto, ficava intrigado com nossas respostas, como foi possível ver no relato acima. Talvez ele esperasse levar uma bronca por ter mordido a criança no abrigo ou por ter subido no telhado. Nós não aprovávamos as coisas erradas que ele fazia, nem mesmo éramos permissivos em relação a elas, mas propúnhamos falar sobre elas e colocá-las em um lugar diferente da transgressão como estilo de ação, escolha. Víamos os atos transgressivos de Nino como certa falta de alternativa, uma possível maneira destrutiva de lidar com as situações. Fazíamo-nos e também a ele mais perguntas do que afirmações. Nossa maneira diferente de reagir às suas provocações acabou propiciando com que ele também construísse novas formas de lidar com as angustias. Quando perguntamos se ele achava que se machucando resolveria o mal estar por ter mordido a criança no abrigo, ele imediatamente buscou outra forma de dar sentido e elaborar o que parecia tão disruptivo. Nino saiu correndo e propôs uma brincadeira de médico em que ele examinava as outras crianças, medicava e fazia recomendações, como se através da brincadeira pudesse fazer certa reparação daquele ato violento que praticara contra o outro. Nino passou a se apresentar cada vez mais no Lugar de Vida como um menino que podia brincar e bagunçar, capaz de respeitar as regras, obedecer aos adultos e não utilizar exclusivamente a agressividade para resolver os problemas.

Como já apresentado, no discurso do abrigo, as crianças são muitas vezes fadadas a ocupar lugares fixos, que se instalam quando elas chegam, pelas histórias que carregam: o filho da drogada, o irmão do psicótico, a filha de uma ex-abrigada, o morador de rua etc. Com o desenrolar dos encontros com as crianças, notamos alguns deslocamentos desta posição de "marginal" atribuída a Nino. Aos poucos, as regras ocupavam um lugar diferente na vida dele, que passou a nos escutar quando dizíamos que algo era perigoso, que não seria possível fazer daquela forma, sem ouvir o que dizíamos como um afrontamento, uma agressão ou um desrespeito a ele. As regras entendidas antes como pura punição, castigo, ato de despotencialização, agora pareciam ocupar um lugar de lei a qual todos estão submentidos. Serviam como ordenadoras, como referência de limite em nossas falas e não mais como algo disruptivo. Neste sentido, a especificidade da contribuição do Grupo Mix para as crianças neuróticas do abrigo pode ser lida como uma passagem da castração imaginária para a simbólica, através da ajuda de adultos que respondem de lugares facilitadores para que esta passagem ocorra. O Grupo Mix no Lugar de Vida parece oferecer para as crianças abrigadas uma posição diferente do lugar de resto no mundo fálico. Certamente é apenas uma oferta, e nada garante que ela seja aceita, mas ela está ali, circulando, constituindo o que Kupfer chama de um campo discursivo4.

 

Considerações finais

Crianças de abrigo, normalmente consideradas carentes, abandonadas e desinvestidas, ocupam nesse grupo um lugar de produção saber, de quem tem algo a dar, posição da qual são frequentemente retiradas. Orientadas pela instância simbólica das leis, apresentam o que Lacan chamou de sintoma de estrutura e Freud chamaria de neurose normal. Já as crianças autistas e psicóticas são convidadas a ocupar lugares de infância, a brincar e fazer laço com outras crianças, parecendo escutar o que os pequenos semelhantes têm a dizer sobre a função de ordem, do que é permitido ou não fazer na vida em sociedade, de forma diferente da qual escutam os adultos.

As crianças que atravessaram os desafios da constituição psíquica culminando em uma estruturação neurótica apresentam às crianças psicóticas e autistas, através de suas ações e brincadeiras, maneiras de viver a falta, sem que isto seja demasiadamente destrutivo. De acordo com Charlot (2007): Elas propõem aos autistas e psicóticos uma maneira de viver a falta sem se desligar da relação com o outro5; e ao fazerem isto se beneficiam por estarem em condição de produzir saber.

Se a constituição da subjetividade se dá, entre outras coisas, no momento, lugar e posição em que a criança está, é num entorno facilitador do convívio entre os diferentes que poderão se constituir sujeitos menos fragmentados e estranhos às diferenças. Sujeitos que, marcados socialmente por uma posição de exclusão, sejam capazes de recombinar recortes de mundo. Recombinar é, em si, significante, produz novos sentidos, propicia uma possibilidade de entendimento outro, diferente, nova. O encontro com o diferente abre a possibilidade de recortar o mundo, enriquecer as alternativas de entendimento sobre si mesmo e os outros.

Assim, também para as crianças diagnosticadas com DGDs, a convivência com meninos da comunidade e crianças do abrigo foi reveladora, já que aquelas crianças parecem dar às crianças da comunidade e do abrigo um lugar diferente do que dão aos adultos que os circundam. Escutam o discurso das crianças da comunidade e do abrigo do lugar de crianças, e respondem às convocações de uma maneira que por vezes coloca-os inseridos nos códigos de linguagem socialmente compartilhados.

 

Referências bibliográficas

ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE-ECA. Brasília, Ministério da Saúde, 1991. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil/LEIS/L8069.htm>. Acessado em: 08/04/09.

FIGUEIREDO, L. C. Ética e técnica na psicanálise. São Paulo: Escuta, 2008.

KUPFER, M. C. M; FARIA, C.; KEIKO, C. O tratamento institucional do Outro na psicose infantil e no autismo. Arquivos Brasileiros de Psicologia, Rio de Janeiro, v. 59, n. 2, 2007.

LAZNIK, M. C. A voz da sereia: o autismo e os impasses na constituição do sujeito. Salvador: Ágalma, 2004.

MANNONI, M. A criança, sua doença, e os outros. Rio de Janeiro: Guanabara, 1987.

MANUAL DIAGNÓSTICO E ESTATÍSTICO DE TRANSTORNOS MENTAIS – DSM-IV. 4ª. ed. rev. Trad. Dayse Batista. Porto Alegre: Artmed, 2000.

MINNICELLI, M.S. A novela social sobre a infância desamparada. Estilos da Clínica, São Paulo, vol. IV, n. 6, 1999.

 

 

1 Associação Lugar de Vida oferece tratamento psicanalítico às crianças com questões no desenvolvimento psíquico.
2 DSM-IV.
3 Todos os nomes apresentados são fictícios.
4 Comunicação pessoal.
5 Argüição proferida por ocasião da defesa de tese do concurso de titulação da Professora Doutora Maria Cristina Machado Kupfer.