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 ISBN 978-85-60944-12-5

An 7 Col. LEPSI IP/FE-USP 2009

 

8/11 - COLÓQUIO-COMUNICAÇÕES LIVRES

 

Sofrimento subjetivo na profissão docente

 

 

Francisco Moura

Universidade Federal de Ouro Preto, Departamento de Educação, mourafrancisco@hotmail.com

 

 


RESUMO

O objetivo deste artigo é refletir sobre a formação de profissionais do campo educacional que estão em atividade e analisar a produção de "relatos livres orais e escritos (do tipo autobiográfico) das experiências cotidianas vividas no ambiente escolar" por profissionais que participaram do curso de extensão Psicanálise e Educação oferecido pelo Departamento de Educação da Universidade Federal de Ouro Preto para as Prefeituras da Região dos Inconfidentes, em Minas Gerais, no ano de 2005. Baseado na perspectiva de Guiust-Desprairies e Cifali (De la Clinique, 2006), no que se refere a intervenção sobre grupos de professores, propomos aos participantes a produção de texto retratando suas experiências. A produção escrita dos participantes foi utilizada como objeto para ilustrar os propósitos teóricos e conceituais evidenciados pela psicanálise. Partiu-se do princípio que este instrumento – a escrita – é um forte aliado na transformação e mudança de postura daqueles que atuam nas profissões de humanos. E, relatar alguma coisa, como está nos textos que entregaram os professores, é narrar ou contar uma história de uma experiência vivida, de uma verdade : os relatos são a priori uma verdade original de alguém que a vivenciou. Nele estão presentes cenários, personagens – e biografias de outrem – e conflitos entrelaçados com os do autor, com a sua história – mesmo que subjetiva. Buscou-se analisar, principalmente, aspectos subjetivos correlatos à profissão docente. O referencial psicanalítico foi o recurso teórico utilizado durante os encontros. Por se tratar de Curso de Extensão, que visa a formação de profissionais em exercício de suas profissões, observou-se que a psicanálise como « tela de fundo » nesta perspectiva de intervenção\formação possibilita aos participantes terem acesso a conceitos teóricos partindo de suas próprios experiências. Nos últimos anos, debates sobre "subjetividade" têm tomado frente nas discussões acerca da formação de futuros educadores. Assim como na clínica psicanalítica tradicional em que o inconsciente se manifesta através de diferentes formas, a intervenção sobre grupos de profissionais do campo educacional provoca esses mesmos efeitos na relação humana, colocando em movimentos fenômeno subjetivos e inter-subjetivos dos envolvidos no processo. Os dados obtidos neste trabalho põem em evidência diferentes tipos de sofrimento que a profissão provoca nesses profissionais.

Palavras-chave: subjetividade, sofrimento mental, autobiografia, docente.


 

 

Introdução

O relato a seguir é fruto de intervenções realizadas no curso intitulado Psicanálise e Educação oferecido para professores em exercício da região dos inconfidentes em Minas Gerais. Todos os participantes foram convidados por intermédio de carta-convite encaminhada para as prefeituras e a participação dos alunos nos cursos foi livre, sem a obrigatoriedade de seus superiores. Desde o início todos estiveram cientes que a participação estava condicionada ao "relato livre oral ou escrito de suas experiências cotidianas dentro do ambiente escolar". Esta perspectiva se enquadra numa metodologia "pró-ativa", participante e intrigante, pois os participantes têem que se implicar, eles têem que sair do lugar de observadores e irem para a posição de atores de suas vidas e de suas experiências, numa proposta de ação, interação e construção consciente da experiência vivida. Uma vez emitida a sua posição crítica sobre sua experiência de vida no Campo Escolar, cada participante se posiciona, responde, interpreta e tenta compreender coletivamente as situações que se apresentam. Apesar das experiências serem vivenciadas no singular, elas são tratadas aqui no coletivo. Como veremos nos relatos apresentados abaixo, constatamos que o simples fato de o próprio "autor" poder "escutar o que ele próprio fala" ou de "poder interpretar o que se escreve" dentro de uma situação de reunião profissional – como é o caso dos nossos encontros – há um efeito retroativo sobre a compreensão de suas ações. Em suma, esta proposta de intervenção, que se dá no quadro da formação de professores e profissionais da área educacional em exercício, é vista como um forte aliado em suas práticas.

Esta perspectiva metodológica está baseada na proposta psicanalítica de escutar o discurso do outro. Uma escuta que não é neutra e descomprometida, mas que causa um efeito do estilo bumerangue sobre o outro que fala. Ou ainda, é um exercício de espelho, no qual, o organizador dos encontros funciona como "pára-raios" de tensões vivenciadas pelo grupo em seus ambientes profissionais e que faz retornar sobre o próprio emissor-autor a descarga energética emitida pelo seu ato de fala. O artigo que descreve e elucida A força da palavra no campo educacional (Moura, 2006) deixa clara a importância da palavra no processo educativo. Considera-se neste processo de intervenção as funções subjetivas implícitas nas relações humanas intermediadas pela linguagem, e por isso, o humor, a disposição e os entraves psíquicos da história de cada um são colocados na "arena de debates" onde conflitos emergem, experiências antigas se atualizam com a mesma força e a intensidade de outrora; angústias, paixões e sofrimentos da experiência de vida são re-acessos e se misturam, se confundem com as figuras do contemporâneo: com os pares professores, com os pais dos alunos, com os alunos, enfim, com todos os profissionais da escola. A psicanálise atua justamente na interseção existente entre o prazer e o sofrimento, entre o Eu e o Não-Eu. Atua numa dimensão da incógnita, do não compreensível, do inominável. Há uma lógica na organização do discurso do outro que necessita ser decifrada urgente, principalmente, por se tratar de um espaço de formação do outro, da libertação do outro das angústias que o aprisiona. Mas, como é possível falar nisto se os próprios atores responsáveis por intervir sobre seus discípulos vivenciam esta angústia que os fazem sofrer justamente lá onde deveria sentir prazer ?

É possível constatar nos relatos apresentados que as situações descritas na sua maioria retratam um sofrimento subjetivo vivido por cada uma dessas profissionais ; como pode ser constatado abaixo, a solicitação para se fazer o texto não dava enfoque ao sofrimento, mas sim solicitava descrever somente uma experiência profissional que tenha marcado sua vida. Uma única professora optou, também livremente, sem um motivo aparente, por relatar uma experiência que ela classificou como positiva. A pergunta que nos resta é a seguinte : por que a experiência negativa, ruim e desagradável, assume a frente de nossos relatos quando temos que falar deste espaço profissional carregado de tensões ? Por quê ?

A proposta apresentada por escrito estava expressa com os seguintes dizeres :

Descreva uma experiência que você tenha vivido na sua experiência profissional que marcou sua vida. Procure relatar livremente esta experiência. Ela pode ser do tipo: vivência em sala de aula com um ou vários alunos, um momento especifico na sala de professores no intervalo entre uma e outra, um fato acontecido dentro de uma reunião profissional, uma discussão com um colega de trabalho. Não se prenda a julgamentos, descreva o fenômeno como você o percebeu.

De forma intencional, a orientação da proposta de trabalho não induz à natureza do evento a ser relatado, favorecendo a escolha livre. Também não solicita uma interpretação ou uma crítica à sua vivência. É apenas um relato sem julgamento do qual podemos fazer analogia com um tipo de produção autobiográfica induzida. Para De Certeau (2007, p. 17) "escrever é construir uma frase percorrendo um lugar supostamente em branco, a página". Podemos ir além do que escreve De Certeau pois, nos relatos livres, subjaz uma força inconsciente que dá o tom do enrredo que se apresenta na folha em branco.

Sobre a nossa amostra adotamos os seguintes critérios : todos os nomes reais dos participantes foram substituídos por nomes aleatórios com letras iniciais de A a Z a fim de mascarar a real identidade do autor. Qualquer semelhança com fenômenos que assemelhem às suas experiências é mera coincidência. Então, as citações no corpo do texto das participantes guardam esta identificação aleatória. Os textos em itálico são das professoras participantes, optamos por citá-los literalmente.

Sofrimento e subjetividade são fenômenos humanos por excelência. No entanto, quando entramos no seio de determinadas profissões de humanos há certa ampliação – ou expansão – desses fenômenos: o sofrimento mascara fenômenos subjetivos de uma existência; ou, por detrás de comportamentos se encaixa um sofrimento subjetivo de força e intensidade variada podendo ser descarregada no ambiente profissional de forma descontrolada. Alguns podem ser identificados de forma clara. Por exemplo, Gabriela relata que "estava trabalhando como professora em um distrito e estava tendo problemas pessoais que refletiam no seu dia a dia na escola. Estava infeliz e ansiava em trabalhar em outro lugar". Quantas pessoas estão vivenciando esta experiência aqui do nosso lado e que não reagem não fazem nada para mudar e não têm condições de trabalhar em outro lugar?

Colegas de trabalho podem ser alvos, os pais dos alunos ou os próprios alunos também. O relato de Gabriela revela um pouco dos efeitos negativos da relação profissional na Escola: "Esse fato de ser bem recebida [na escola atual onde trabalho] marcou muito devido eu ter sofrido maus tratos e humilhações dos colegas de trabalho [onde trabalhava anteriormente]". É isto o que temos visto no nosso freqüente contado com profissionais da educação. E os relatos demonstram que a primeira lembrança que vem na mente deles quando têm que explorar parte de sua experiência é marcado por algo da ordem do negativo, da crise, do conflito, do que incomodou. Por exemplo, afirma Aline: o que "marcou minha vida profissional em 2003 foi quando recebi uma aluna que estava com quase oito anos porque ela tinha um retardo mental e não conseguia acompanhar os outros alunos". Ou, como relata Inês: "Este ano estou com uma aluna que sofreu aneurisma cerebral, ela tem nove anos, não enxerga direito, sua coordenação motora é ruim e possui muita dificuldade da fala". Vejam que a sutileza da subjetividade implícita na experiência revela algo que transcende o conhecimento técnico do professor. Tal fenômeno põe em evidência as imperfeições dos profissionais que ocupam esta profissão. Por que teria esta experiência tomado frente nas recordações de Aline e, ainda, por que um fenômeno acontecido no ano de 2003 há aproximadamente quatro anos, permanece presente nas suas recordações? As marcas do passado não saem do nosso cotidiano presente, elas se re-atualizam constantemente nas nossas novas relações de humanos : são protótipos que se atualizam. Esses protótipos ascendem algo que parecia ter apagado e desaparecido. Como nos ensina a psicanálise, ao se referir à vivacidade do inconsciente, ele é atemporal, e na sua dimensão cronológica ele não envelhece. Por isso, nossas experiências boas ou traumáticas, nos servem de substrato para nos suportarmos uns aos outros. É necessário trazer um pouco mais do texto de Aline, pois, desses traços e marcas que circulam na nossa psiquê está a base que sustenta nossas relações humanas contemporâneas. E vejam o argumento utilizado por Aline para atestar o fracasso desta referida aluna "algumas professoras não tinham paciência e até pediam para que ela não ficasse na sala de aula delas", afirma.

A seqüência do relato de Aline nos mostra uma outra variável importante neste modelo de análise. Desta vez, fica em destaque um procedimento importante na valorização da auto-estima e da identidade da Professora. Isto pode ser visto nos resultados positivos que são obtidos frente às experiências negativas vivenciadas no campo escolar. O que é que se opera nas relações humanas que provoca transformação dos outros? É algo mágico, inexplicável! A surpresa frente aos resultados obtidos é surpreendente em várias situações. Para Aline "o que marcou mesmo foi que um dia quando eu estava dando um ditado na sala, ela [a aluna] pegou o caderno e escreveu tudo o que eu ia ditando corretamente". [...] Depois disso, ela passou a se interessar mais pelas aulas e ficar dentro da sala de aula porque foi muito estimulada". Para Diva fica em destaque o sucesso e o progresso da alfabetização de adultos: "Para minha surpresa, vi uma senhora rasgando uma letra de uma sílaba, e de repente ela me mostra toda feliz a palavra QUADRO, percebi que a letra "O" ela havia pegado de outra sílaba e o A que estava no lugar (DRA) ela amassou e guardou. Bom, no momento não sabia o que fazer, mas quando ela me mostrou percebi que não era interessante chamar sua atenção, mas sim elogia-la por ter formado uma palavra."

Frente aos relatos apresentados é possível constatar que o processo de ensino e aprendizagem é atravessado por inúmeras circunstâncias contextualizadas influenciadoras dos resultados finais. Aspectos da cognição não são meros reflexos das experimentações do mundo externo físico-material. Eles se substancializam pelo viés de uma psico-afetividade inerente ao desenvolvimento sócio-humano, posto que, cultura e sociedade somente se internalizam nos indivíduos se forem atravessadas pela afetividade. Afeto é fenômeno fisiológico na base e psíquico no final. E toda e qualquer relação humana se configura por intermédio do afeto e é do afeto que se atinge a razão, à cognição. Assim, aprendizagem é um procedimento psíquico posterior a uma relação afetiva favorável entre um indivíduo e outro. O amor e o ódio, o carinho e a atenção são conceitos humanos para representarem determinadas manifestações corporais, biológicas e fisiológicas. Partindo desta perspectiva, somos conduzidos a afirmar que o conceito precede a sensação fisiológica sensitiva. Então, se falta afeto "a cria do ser humano" não se humaniza. A comunicação mediada pela linguagem humana possibilita isto. Vejam o relato da Joana:

"Um momento marcante em sala de aula foi a chegada de uma menina de quatro anos em minha sala. O fato que me chamou atenção é que ela só queria ficar debaixo da minha mesa, era muitas horas de conversa para convencê-la a sair. Numa das conversas com a mãe da menina, ela me disse que tinha seis cachorros e que a menina só ficava embaixo da mesa brincando com os cachorros – e que ela deixava. Só assim ela tinha tempo para fazer as tarefas do dia a dia".

A aprendizagem cultural e social se instalam nos indivíduos devido a capacidades que têm herdadas filogeneticamente de apreenderem e imitarem os comportamentos e sons dos seres vivos que os cercam. Visto por esta ótica nada de anormal no mecanismo de identificação com um cachorro da aluna supracitada. Entretanto, nossa sociedade está organizada sob outras formas de comportamentos e que o apresentado pela criança é nos dias atuais inapropriado e principalmente, inaceitável. E quando nos é relatado, mesmo em situação de investigação científica e acadêmica, causa certo estranhamento a nós e a professora Joana que nos apresenta o relato. E nós questionamos, por que e como uma sociedade tão evoluída como esta ainda aparece famílias que educam seus filhos nessas condições? Agradecemos em particular a Professora Joana por nos ter descrito este relato.

Nos relatos aqui presentes constata-se que a "contaminação psíquica inter-humanos" sofre influência direta ao ver que alguém sofre diante dos olhos de um professor. O sofrimento do outro provoca uma situação subjetiva de incomodo no professor que, inexoravelmente, o conduz a ação. Por exemplo, Valéria quando "foi trabalhar numa escola, como diretora, num sub-distrito da região relata ter encontrado no local apenas pessoas carentes (de tudo) principalmente de afeto e de carinho". Isto pode ser considerado como um comportamento natural e esperado no processo educacional dessas professoras. Entretanto, a questão que se coloca nessa modalidade de curso é sobre a direção da intervenção : será que a professora está fazendo emergir situações traumáticas de suas experiências passadas que se fazem emergir com o fenômeno atual ?

Emergem de forma desenfreada comportamentos inerentes à natureza humana: a raiva, o amor, o ódio, os terrores... São inúmeras as reações vivenciadas por uma professora e um professor no ambiente escolar. E elas não têm necessariamente uma relação direta com o vivido no dia a dia. Muitas vezes nós profissionais da educação temos adormecidos nossos traumas, nossos temores que nos dificultam compreender o sofrimento do outro. Carla faz o seguinte relato, quase que sob a forma de desabafo: "Fiquei impressionada com a forma rude que me dirigiu [a palavra aquela professora]. Ela poderia ter falado o mesmo de forma mais educada. Se eu precisei [de todo aquele material] foi devido à importância e urgência do material a ser levado para elas [professoras]. [O que fiz] foi para qualificar o próprio trabalho delas". Caso você se identifique em uma ou várias das passagens a seguir é porque algo dentro de você se incomoda com o que está vendo, ou melhor, lendo. Pois, apesar de os cenários serem diferentes, muitas das cenas são vividas da mesma forma em outros ambientes.

De fato, todo o debate exposto acima se dá dentro de um "Campo Escolar". Optamos por denominar Campo Escolar devido aos diferentes tipos de definições que podemos apresentar para a palavra Campo. Em determinadas disciplinas universitárias, muito frequentemente, utiliza-se a terminologia trabalho de campo para se referir a uma parte da formação do aluno, por exemplo, o trabalho de campo de alunos de biologia. Neste aspecto o campo passa a ser visto como um lócus importante na formação de um futuro profissional, onde se obtém dados, os analisa e os interpreta e descreve os fenômenos e dados obtidos deste espaço chamado campo para a biologia. O mesmo se dá da mesma forma em outras disciplinas.

Há ainda a determinação do campo de futebol, onde espectadores e atores-jogadores do futebol demonstram habilidades, fanatismo, paixões etc. É um espaço marcado por contatos físicos e muito frequentemente é palco de expressões violentas e agressivas entre os diferentes participantes, tanto os expectadores como os atores-jogadores. É um campo em que circula muita energia, muito contato humano, retomando o debate apresentado acima, é um local onde a afetividade está literalmente à "flor da pele". Os nervos sempre se exaltam. Não acredito que este seja um espaço onde acontecem aprendizagens. Em outras palavras, o fanatismo pode apagar qualquer outro tipo de aprendizagem que não seja aquele objeto da idealização do fanático.

Há também o campo de concentração. Fenômeno da nossa história – da humanidade – de difícil reconstituição, pois, foi palco de inúmeras destruições de vidas humanas, de extermínio em massa. Um horror e uma ferida que nunca cicatrizará na imagem dos que a conheceu. É um campo de destruição de vidas. Um espaço onde se pretende anular o outro, porque ele me incomoda por um motivo qualquer, porque o outro não merece viver, porque o outro é inferior a mim etc. As justificativas para tal ato podem ser ampliadas segundo o relato dos que se propõem a isto.

Depois temos os campos magnéticos da física. – São simplesmente fantásticos! Fenômeno da natureza capaz de manter determinados corpos ou partículas em posições específicas para garantir a existência de determinados micro-organismos ou macro-sistemas.

O Campo Escolar ao qual faço referência é tudo isto ao mesmo tempo: há organização, há conflito, há tentativa de anular a ação do outro, há fanatismo etc. Há, principalmente, aprendizagem e crescimento, apesar de não serem os resultados mais freqüentes dentro deste campo.

Um Campo Escolar é constituído de atores colocados em posições justapostas que nem sempre assumem organizações similares e análogas às que se constata nos campos magnéticos. Os alunos e seus familiares, que mesmo estando ausentes do interior dos muros deste Campo, os familiares ocupam funções importantes na organização dele. Inês relata que os familiares "não aceitam a possibilidade de um acompanhamento em uma instituição onde ela teria mais apoio". Os professores com suas expectativas, perspectivas e anseios frente ao seu futuro e o futuro de seus alunos ocupam uma função central neste Campo: às vezes são colocados na posição de juiz de futebol, têm que definir resultados e penalizar; outras vezes são vítimas da anulação que recebem, ora dos alunos, ora dos pais que constantemente não estão satisfeitos com seus procedimentos, com seus métodos e com seus resultados – Deixemos a violência contra o professor de lado; ora dos superiores, daqueles que deveriam apoiá-los.

O relato de Bárbara é claro e demonstra um sofrimento direto sobre o impacto negativo deste desrespeito sobre o profissional docente pelos gestores da educação:

"Trabalhava em outra escola, que não a atual. Sempre participei das atividades que os professores aplicavam em sala de aula [...] O trabalho transcorria normalmente até que certo dia chegou uma carta transferindo-me pra outra escola. Senti muito, chorei, mas, tomei esta decisão: serei tão importante na outra escola como fui nessa. Aceitei o desafio".

Sofrimento na profissão docente não pode ser encarado como abandono e desistência dos desafios. O sofrimento pode ser encarado como uma forma pessoal para enfrentar e superar desafios, como bem definiu Bárbara ao afirmar que Ela será tão importante em outro campo escolar como Ela foi na escola anterior: isto é mais que aceitar desafios, é superar as situações adversas que nos atravessa nesta profissão docente. A definição de Campo Escolar pode pegar dos diferentes tipos de definições existentes para a palavra campo. No que se refere à aprendizagem que este campo pode oferecer aos professores, fica evidenciado o crescimento e o amadurecimento que a profissão docente provoca em todos que estão neste Campo profissional. Mesmo com as angústias que determinadas situações provocam.

Com relação a angústia vivenciada nesta profissão observe a experiência de Sara e os impactos sobre a sua limitação profissional. Limitação no sentido que, enquanto professora, ela não pode ultrapassar os limites de suas ações. Em toda profissão tem limites da ação. De fato, a angústia é uma marca sutil em nossas vidas, por isto ela é subjetiva. Por isso ela é "uma imensa tristeza" na vida de Sara:

"A experiência que marcou foi quando encontrei pelo caminho, um aluno 'problema', de família pobre, não tinha mãe e o pai bebia muito e o espancava. Foram feitas várias tentativas para ajudá-lo desde materiais até reforço escolar, atenção individual. O aluno batia nas outras crianças, não queria ficar na sala depois da merenda, era muito difícil. Depois de duas reprovações o aluno conseguiu ler, mas em seguida foi transferido para outra escola, onde não ficou muito tempo. Um ano depois não foi aprovado para 3ª série e largou a escola o pai não deixou que ele ficasse com a família que estava cuidando dele. Quando penso nele sinto uma imensa tristeza por não ter feito mais por ele".

E as experiências negativas vão se acumulando nas nossas relações profissionais: no processo de formação de nossos alunos, nos seus fracassos e nas suas desistências; nos conflitos entre profissionais e outros. Às vezes nos deixa a um passo de desistir, vejam as palavras de Marcela: "descobri que em todo desafio temos que dar o máximo de nós e ter muita paciência. Foi difícil, claro, várias vezes tentei desistir". O que se percebe é que há uma força interior inconsciente que impulsiona sempre profissionais da área de educação para frente. Que força é esta? De reparação? De dó? De angústia? De salvação? Materna? ou outra?

Educar uma pessoa não é como aguar uma árvore. Uma árvore produz naturalmente seus frutos no seu quintal; educar uma criança é uma incógnita, pois nem sempre é possível colher frutos e nem sempre ela ficará no nosso quintal, ou na nossa sala de aula. Paradoxalmente, observa-se que para se ter certeza que uma educação deu certo é necessário que nossos alunos, ou nossos filhos, saiam da nossa sala de aula, da nossa casa, do nosso quintal, para continuarem suas vidas. E o desejo de proteção que temos enquanto adulto-educador é que eles permaneçam o maior tempo possível ao nosso lado. Entre as aves isto é representado por sair do ninho e voar livremente pelos ares. Mas a angústia que permanece é esta de sabermos se sozinhos e com suas deficiências ele será capaz de prosseguir suas vidas? Isto é o que incomoda e deixa Sara triste pois as reprovações progressivas na vida estudantil desse aluno anuncia o seu insucesso na inserção social. E se a nossa função – ou missão – é de reparação, de educação e de transformação de pessoas e, neste caso de Sara, ela não deu conta no pouco tempo que teve contato com este aluno de transformá-lo. A marca desta experiência cria uma sensação, uma emoção, um afeto que é traduzido nessas linhas como uma angústia.

No caso contrário ao da Sara, no qual o sucesso é vivenciado ao final de situações de extrema dedicação e resultados lentos entre os ou o aluno constata-se que a angústia é diluída entre a sensação de prazer e o que subjetivamente se apresentava como um sofrimento, um desgaste físico, psíquico e profissional, entre outros, vê-se ao final um desfecho diferente: Para Tânia, a persistência em procurar mecanismos para alfabetizar uma criança pode ser visto na seguinte passagem:

"foi um trabalho árduo, cansativo, desafiador, mas enfim, graças ao meu esforço, dedicação e empenho consegui o que queria: alfabetizá-lo. Lembro que desgastei muito, sofri, chorei, mas tive o reconhecimento dele, da família e de duas amigas que acompanharam de perto, pois trabalhavam na Escola e vivenciaram todas as etapas do processo ensino-aprendizagem".

Uma palavra simplesinha mas que tem um peso importante para todos os profissionais da educação pode ser expressa da seguinte forma: ter o reconhecimento pelo seu trabalho. Ninguém, ou melhor, muito pouco é feito pelo reconhecimento profissional e de todo esforço dos professores para fazerem essas transformações nos seus alunos. Tânia continua dizendo que seu aluno progrediu e "ele sempre vai com os familiares em [sua] casa e [a] agradece sempre pela oportunidade e dedicação que lhe proporcionei na época."

Já o relato de Bárbara é mais forte neste sentido e demonstra o reconhecimento recebido por parte de seus colegas de trabalho e alunos sobre a sua atuação profissional:

"Disseram que eu fui muito importante para eles, que eu consegui fazer a "diferença" para eles. Isto me marcou muito, pois numa escola com mais de 20 profissionais da educação acima de 200 alunos, consegui fazer a diferença para uma turma. Para eu vivenciar isto foi gratificante, pois percebi que o trabalho quando é feito com amor e dedicação, colhemos os frutos, um a um, devagarzinho. Mas frutos saborosos."

Medir a distância ideal para se relacionar com uma pessoa é uma tarefa difícil. No campo escolar é necessário antecipar e criar condições de previsibilidade do que acontecerá com nossa ação. "Abrir as portas de nossa casa" para acolher nossos alunos, principalmente aqueles que têm mais dificuldade no processo de aquisição do conhecimento, pode favorecer o seu crescimento. Entretanto, compete a cada profissional reconhecer a necessidade de uma aproximação e de um distanciamento em função do que ele estiver sentindo com os seus aluno. Ou então, como assume Marcela: "tornamo-nos 'amigos', ele pegou confiança em mim e se desenvolveu mais do que eu esperava". O Emílio, de Jean jacques Rousseau (1969), reaparece em muitas experiências do cotidiano dessas professoras.

A força das palavras é algo que merece sempre nossa atenção. Marcela relata que "no primeiro dia de aula sentou-se com ele e viu que seus olhinhos só pediam ajuda". Que mecanismo é este que nos possibilita projetar sobre o outro uma necessidade que na verdade é dele. Quais fenômenos rodeiam o pensamento de uma professora: de dó, de cuidados, de tratamento, de atenção, de maternagem etc. o que devemos fazer com esses sentimentos que nos pertencem? E Marcela conclui o seu relato afirmando que se "lembrava daquele rostinho triste que precisava de mim, mais do que eu precisava de trabalhar, e continuar."

O relato de Zélia é marcante, é um traço e uma marca que permanecerão pelo resto de sua vida. Ela diz: "foi a experiência mais traumatizante na minha carreira. Os alunos eram indisciplinados, desrespeitosos, agressivos sem limites, além de estarem fora da faixa etária, ninguém queria assumir a turma." Acrescenta ainda que "colocaram todos os alunos problemáticos em uma mesma turma." Contudo, esta primeira experiência com o ensino não a desanimou. Ela criou condições para atuar como professora em outra escola e "no mês seguinte consegui uma vaga em uma escola, localizada em um distrito. Não pensei duas vezes, me mudei para lá e abandonei a escola que somente me trouxe angústia, insegurança." O que os dirigentes de escolas deveriam fazer para amenizar a entrada dos novos profissionais em exercício? O que constata Zélia na sua primeira experiência com o ensino é justamente a ausência de apoio por parte dos dirigentes:

"a supervisora deslocou a professora da 4ª série para a 3ª, que seria minha por direito, porque ela não agüentava mais aqueles alunos. Assim, eu que estava começando, acabei 'tendo' que assumir a 4ª. série. Achei que dói uma falta de consciência, solidariedade e abuso de poder por parte da direção, manipular uma situação em beneficio de alguém. Não pude desenvolver o meu trabalho e ainda fui muito criticada por não conseguir 'dar jeito' naqueles meninos".

Finalmente, constato que há um sofrimento subjetivo que ronda os profissionais desta profissão. Sua força é antagônica, pois, pode favorecer da mesma forma que pode prejudicar. Seus aspectos positivos podem ser identificados em várias passagens dos textos. O simples fato de reconhecer a influência desses fatores sobre nossa prática educativa favorece a eliminação do impacto de sua força. Alguns exemplos estão explicitados acima. Mas carece ainda acrescentar este acontecimento de uma reunião de Conselho de Classe, que discutiam sobre o rendimento de alunos, apresentado por Nair :

" [Nair relata que] um professor de maneira pessimista começou a pontuar cada aluno como alguém que não tinha jeito, que se encontrava na escola por estar, e o futuro de cada um deles era negro nebuloso e impossível de ser clareado [pois] estão fadados a continuarem a viverem aquela mesma vidinha sem graça, sem perspectiva e sem futura".

Nair deixa claro que discorda deste posicionamento pois, a missão da escola vai muito além da mediocridade do discurso do referido professor. Ela reforça a necessidade em levar os alunos a uma melhor aprendizagem, levantar a auto-estima e promover portanto, um melhor rendimento no campo escolar. E diz que "se não acreditarmos nos outros não podemos acreditar em nós". Com certeza qualquer tipo de relação humana só se dá se duas ou mais pessoas se colocarem a disposição para que ela aconteça. Independente da posição que ocupa o professor neste campo escolar, há um constante fenômeno de ensinar e aprender que atravessa as relações humanas. A conclusão obtida desse tipo de reunião é positiva e quase me força a dizer que a escola é o espaço nobre da nossa sociedade para formar cidadãos nobres. Mas prefiro apresentar a conclusão do relato de Laura que expressa assim, minha idéia: "a confiança dela em nós, fez com que ela percebesse o quanto a escola era importante". É um espaço onde se pode dar opiniões e também pode possibilitar – a alguns – mudarem de opinião. A seqüência do texto de Nair retrata o que é esta mudança de postura e de comportamento entre profissionais docentes. Veja abaixo:

"Outro professor se posicionou dizendo que estávamos ali para ajudar aos alunos e para nos ajudar, afinal quando discutíamos o rendimento dos alunos, estamos também discutindo nosso trabalho. Estamos também perguntando se também não fizemos bem, se não houve de nossa parte alguma falha se precisamos melhorar, quais estratégias para melhorar necessitamos. Logo após a explanação do último professor, todos se calaram, não se posicionaram nem pró e nem contra, um dos professores cabendo então a eu dizer que se estávamos hoje nesta posição, invejada por muitos, cobiçada por outros é porque alguém havia acreditado em nós. Afinal, todos já haviam passado pela sala de aula, e hoje tinham alguma profissão, o que demonstrava que alguém acreditou na potencialidade de cada um. Passado alguns dias, em uma outra reunião em que se observava planos para uma melhora de desempenho dos alunos, não é que o professor diz algo semelhante ao que tinha dito anteriormente, isto me deixou bastante feliz."

Quando o Campo Escolar não é visto como um espaço de convicções rígidas do estilo fanatismo ele se transforma num espaço de transformação e de aprendizagens naturais. Já li em algum lugar que o professor aprende junto com os seus alunos. E é justamente isto que se pode constatar nas múltiplas experiências e nos relatos que temos diante dos nossos olhos. O crescimento pessoal e a aprendizagem nos relacionamentos humanos e no processo de formação de pessoas vai se aperfeiçoando progressivamente frente as transformações sociais e culturais. Não conseguimos vislumbrar uma escola que seja somente tradicional. Uma boa estratégia de adaptação e favorecimento do processo pedagógico é a freqüente atualização e adequação aos valores contemporâneos.

E relatar alguma coisa, como vi nos documentos que entregaram os professores, é narrar ou contar uma história de uma experiência, de uma verdade: os relatos são a priori uma verdade original de alguém que a vivenciou. Nele estão presentes os cenários, os personagens e os conflitos entrelaçados com o autor, com a sua história – mesmo que subjetiva.

Ver e interpretar o mundo com nossos olhos é uma forma dentre tantas que existem para descrever uma verdade. E nem sempre ela coincide com a dos nosso pares. Sendo assim, a "costura" que faço dos diferentes textos que me apresentaram tenta unir as experiências particulares a uma teoria geral, ou seja: buscou-se alinhavar experiências de professores em espaços diferentes, para finalmente compreender a especificidade desta complexa profissão docente. A introdução do termo subjetivo e sofrimento no título foi proposital pelo fato da dificuldade de apreendê-los na sua singularidade pois, há pessoas que mesmo sofrendo vivem felizes e outras que têm tantos benefícios, tantas condições favoráveis para bem viver mas levam a vida reclamando de um constante sofrimento. Contudo, sofrimento aqui não é tratado enquanto sinônimo de desprazer. Sofrimento humano é sempre um fenômeno subjetivo.

 

Referência Bibliográfica

BELKAID, M.L. Travail biographique et formation clinique. In : Gist-Desprairies, F., Cifali, M. De la Clinique. Bruxelles. De boeck & Larcier s.a., Pp. 89-102, 2006.

DE CERTEAU, M.A. Escrita da história. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007.

GIUST-DESPRAIRIES, F., CIFALI, M. De la Clinique. Bruxelles. De Beck & Larcier s.a., 2006.

MOURA, F. A força da palavra no campo educacional. In : SIMPOED – Simpósio de Formação e Profissão Docente. Ouro Preto : Editora da Universidade Federal de Ouro Preto, v.1. p. 1-4, 2006.

ROUSSEAU, J.J. Emile ou De l'éducation. Paris : Gallimard, 1969.