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ISBN 978-85-60944-12-5 versão

An 7 Col. LEPSI IP/FE-USP 2009

 

8/11 - COLÓQUIO-COMUNICAÇÕES LIVRES

 

Da curiosidade infantil ao desejo de saber: a criança e a infância

 

 

Francisco Ramos de FariasI; Rita Maria Manso de BarrosII

IUNIRIO
IIUNIRIO/ UERJ

 

 


RESUMO

A criança subverte a condição que veio ao mundo ascendendo à posição bípede e cai sob o logos da razão pela transformação decorrente do aperfeiçoamento da visão e pela incidência do recalque nas formas primordiais de comunicação: o olfato e o reconhecimento da voz materna. A nova aparelhagem produzida pelo olhar engaja a criança numa atividade investigativa acerca do sexo: a curiosidade sexual da infância transforma-se em vontade de saber, percurso mediado pelo desejo. O saber é mistério a ser desvendado, na trajetória pela qual o sujeito escreve a sua história, em querer saber sobre si e sobre as coisas do mundo. Tarefa acionada pelo desejo concorre para a constituição de arranjos subjetivos, impulsionada pelas andanças no campo do saber, terreno onde o sujeito depara-se com o representante da espécie, encarregado da transmissão do legado cultural. Nos dois fragmentos apresentados, na clínica com crianças, depreendem-se aspectos importantes nesse caminhar em direção ao saber. O sintoma fala-nos, primordialmente, dessa incursão do sujeito pelo saber e das conseqüências decorrentes do encontro traumático com o representante da espécie: num dos casos, a criança faz a escolha de nada querer saber apresentando queda significativa no rendimento escolar e no outro, há a eleição do sapato da mulher como objeto fetiche. Em ambos, retrata-se a enunciação do real da castração.

Palavras-chave: saber, desejo, curiosidade sexual.


 

 

1 – Saber e desejo

Articular saber e desejo, além de ser uma questão espinhosa, requer atravessar sendas difíceis, pois, no tocante ao desejo, sabe-se que há como ponto de partida, um objeto irremediavelmente perdido, o que nos faz pensar que o desejo faz um apontamento para o absoluto. Em se tratando do saber, tem-se outro complicador, visto que, qualquer saber a que o sujeito tenha acesso, traz consigo a insígnia de referir-se ao desejo do Outro, tratando-se, pois, de algo da ordem do impossível. Eis o objetivo pretendido aqui: esboçar as sinuosas linhas que a cria humana traça em sua existência, em decorrência do assujeitar-se ao saber, na tentativa de descortinar o emaranhado de enigmas suscitado pelo desejo. Para tanto, recorre-se a duas vinhetas clínicas que ilustram as conseqüências do real da castração, no processo de formação de sintomas apresentados em quedas significativas no rendimento escolar.

A partir das observações clínicas, nas quais se constata uma posição subjetiva de não querer nada saber, diante do real traumático do sexo, aventa-se que existem duas saídas a serem seguidas no encontro do sujeito com o saber: por um lado, tomá-lo como já sabido ou, por outro, tomá-lo como um interrogante que aponta para o impossível. No primeiro caso, tem-se uma relação de corte, visto que o saber é considerado como algo em si mesmo que apresenta um fim, enquanto no segundo caso, compreende-se que o saber comporta algo da ordem de um enigma que, ao invés de algo terminado, é apenas uma condição de possibilidade de acesso ao insondável e ao obscuro. Nessa vertente, o saber comporta um mistério: um ponto comparável ao "umbigo do sonho".

Tendo em consideração o fato de que, no domínio da curiosidade infantil, o acesso ao saber encontra-se condicionado ao ver, por uma via ou por outra, a relação do sujeito com o saber é sempre problemática. Em princípio, pelo fato de que, mesmo considerado um ponto de corte, o saber abre o pórtico do saber-fazer ou, na melhor das hipóteses, se o saber é tornado acessível o que o sujeito deve fazer nessa circunstância? Curioso paradoxo encerra-se nessas duas possibilidades. Quando o sujeito encontra-se na posição de possuidor do saber, não pode deixar de experimentar a impossibilidade própria ao desejo de possessão. Eis o encontro com o impossível que a trama do saber abre para a cria humana. Por outro lado, enveredar pela trilha tortuosa que lança o saber no campo do impossível é uma tarefa que comporta uma parcela de gozo, pois dessa empreitada o sujeito sai sempre de mãos vazias. Esse pórtico, aberto ao vazio, é sugestivo de um momento de realização impossível. Basta que para isso busquemos a origem etimológica de saber — "sapere" — para constatar que é a mesma de sabor, de modo que o saber é aquilo que tem tal ou qual sabor.

Do empreendimento socrático ao ensinamento freudiano forja-se um trânsito que tem num extremo, a ignorância e, no outro, a formulação de uma espécie de vazio próprio da operação do recalque originário, incluindo aquilo que ronda as duas modalidades de diferenças irredutíveis nos falantes: a diferença de gerações e o mistério acerca da existência de homens e mulheres. Circundar o abismo existente entre essas diferenças faz com que o sujeito lance mão de seu desejo para inventar-se e conseqüentemente inventar o seu viver, mas à custa da produção de saber. Sendo assim, partilhamos a idéia de que quem duvida, sabe de alguma coisa; da mesma forma que o curioso sustenta sua curiosidade em razão também de saber algo. Igualmente sabemos que o sujeito sabe algo, vacila em não querer saber aquilo que sabe. Nessas circunstâncias, adota a posição de se recostar na cômoda ignorância, mas obviamente jamais na estupidez, mesmo porque não podemos sequer pensar a ignorância como o contrário do saber, visto que aquilo que faz antípoda ao saber é a impossível verdade.

A verdade é certamente aquilo que se insinua como um vazio cada vez que o saber é produzido. Em certo sentido, a verdade sempre deixa o sujeito de mãos vazias, especialmente se tomarmos como ilustração o mito de Édipo que diante da verdade que não admitia saber, tomou duas decisões radicais: privar-se da visão e da existência, quando fez a escolha pelo esquecimento de si, ao decretar o seu não sepultamento. Que outro vetor o teria levado a tomar essa decisão senão o saber? Mas o que o saber revelou, senão uma filigrana da verdade, esta sempre da ordem do impossível? Mas, queremos assinalar que quando situamos a tragédia edípica, estamos formulando a idéia da constituição humana, pois "o Édipo não é o mito, mas a estrutura que, por intermédio da rivalidade, liga o sujeito a uma ordem simbólica, subordinando assim a única e mesma Lei o advento da verdade e do desejo" (SAFOUAN, 1970:86). Estamos assim compreendendo que a Lei é a origem do recalque, na medida em que sinaliza a barreira que interdita o incesto, marcando assim a impossibilidade de realização absoluta do desejo.

Impossível porque concerne à operação fundadora do recalque originário. Eis um conteúdo para o qual não podemos pensar um levantamento do recalque, visto concernir à ordem da estrutura, ou seja, "o recalcamento real que se encontra na origem que mantém a ex-sistência para um sujeito que se encontra ligado à linguagem" (MELMAN, 1992:163). Se esta operação do recalque funda a estrutura e, por isso mesmo, produz um vazio no tocante ao saber, temos suas conseqüências e seus efeitos em termos de produção de sentido.

Disso deduz-se que o recalque originário cria uma franja de ignorância nas bandas do saber. Mas, certamente, quando situamos o recalque propriamente dito, estamos diante da possibilidade de um retorno que desfaça o véu que serve de fachada na sustentação do estado de ignorância. Então temos de pensar uma espécie de saber absoluto que seria dado ao homem, caso o material decorrente do recalque originário fosse passível de retorno, e um saber parcial que se produz mediante o retorno daquilo que fora afastado da consciência num tempo posterior ao recalque originário, que tem valor de ser uma operação de cunho mítico. Sendo assim, no universo da linguagem que produz a cria humana, a produção de saber encontra limites, visto que, ao mesmo tempo em que as operações da linguagem têm lugar, instaura-se o processo de nomeação, próprio do recalque propriamente dito, ocultando aquilo que é da ordem do indizível, do inominável decorrente do recalque originário.

Assim, compreendemos que para que o sujeito nomeie as coisas do mundo, valendo-se das andanças pela produção de saber, faz-se necessário que algo permaneça no âmbito do inominável. A existência do inominável possibilita ao homem nomear as coisas que são inscritas no seio demarcado pelo muro da linguagem. Eis, pois, as duas posições do sujeito no que tange ao saber: sustentar a crença de que é possível sabê-lo e confrontar-se com o mistério de sua própria constituição em função da operação do recalque originário. Isso quer dizer que o ser falante, na sua travessia, ao tentar nomear as coisas do mundo, engaja-se num projeto ideal de que seria possível a tudo nomear. A partir disso não pode escapar ao engodo que essa intenção lhe ocasiona. Mas, tampouco, pode abrir mão dessa empreitada, pois assim estaria abdicando de sua condição desejante. Difícil encruzilhada que se complica a cada direção tomada: o homem nunca conseguirá dar por terminada a tarefa referente ao processo de nomeação das coisas, mas também não desistirá de seguir seus intentos de realizá-lo.

Momento delicado: a ciência, numa dada etapa do processo de nomeação, de que há algo que não pode ser dito. Nessas circunstâncias, o que fazer? Tudo indica que a escolha aventada consiste em dar continuidade ao processo direcionado ao tudo dizer. Eis o confronto crucial com as duas vias sinuosas abertas pelo acesso ao saber: por uma trilha, o sujeito tem a sensação de posse do saber enquanto que, por outra, não consegue evitar a impotência em não conseguir terminar o processo de nomeação das coisas. Como se portar frente a tal dilema, se é a impossibilidade que mantém, no sujeito, a vontade de saber. Tanto diante do vazio traçado pelo mais profundo silêncio, quanto através dos ruídos emanados das palavras no processo de nomeação, tem-se, pois uma grande impotência do sujeito. Não obstante, privá-lo do acesso a essas duas vias, equivaleria pensar a possibilidade de deixar o corpo reduzido à sua condição de própria carne, desprovido de qualquer nuança de saber. Sabe-se que a escolha por essas trilhas, nas quais o sujeito se depara com a impossibilidade decorrente do saber, tem a serventia de inscrevê-lo no âmbito da cultura pela negativização decorrente do processo de nomeação de suas partes, pois "o corpo simbólico é aquilo do qual a lingüística tenta fazer ciência, num estatuto para além do vivo" (BRUNO, s/d:5). Então, de quais alternativas o sujeito dispõe em se tratando das andanças no âmbito do saber possível e do saber impossível? Em quaisquer dessas vias o sujeito é obrigado a fazer uma escolha. Tomar o saber como algo já dado seria uma condição, erigi-lo num interrogante, seria outra. Em ambas, constata-se uma não entrega do sujeito, visto que uma e outra constituem caminhos que trazem a expressão da matriz do desejo, remontando, certamente, ao momento das priscas eras que fez o homem ascender à posição bípede e cair de quatro sob o logos, em virtude da perplexidade e espanto experimentados ao entrar em contato com o mundo munido da nova aparelhagem de que dispunha: a visão. A ascensão da cria humana à verticalidade introduziu-a no universo da falta de objeto e, portanto, no âmbito da linguagem representativa. Isso devido ao fato de que o desejo significa que há, no ser, uma falta que é uma falta de ser, simbolizada no falo, com a castração simbólica. A falta aparece juntamente com a parte que separa do corpo, como a exclusão daquilo que se perde do ser. Por isso, consideramos como ficção a tese de que "na origem dos tempos, um período no qual a existência do homem primitivo era regida pelas necessidades biológicas imediatas e o instinto sexual era regido por uma periodicidade orgânica" (REY-FLAUD, 2002:30). Eis a configuração de um estágio evolutivo que pode ser pensado como o equivalente a uma era anal da humanidade em virtude do predomínio do primado do olfato. Outro estágio, na escala evolutiva, teve seu início quando o homem passou de quadrúpede para bípede, modificando sua postura decisivamente, pois destituiu a comunicação olfativa por uma modalidade pautada no olhar.

 

2 – O olhar e a curiosidade sexual

Nos primórdios da existência da cria humana, o olfato media o contato com o mundo, na presença imediata do objeto. Com a visão, o homem pôde buscar o objeto ausente, e em razão da falta, inclinou-se ao saber, como garantia ao desejo. A dimensão do vazio, única possibilidade de realização do pleno impossível, leva o homem à produção de saber sobre o mistério em torno das questões sexuais, primeiro universo de preocupação da criança, pois não "pode evitar o interesse pelos problemas do sexo" (Freud, 1908/1993:214). Tem-se assim, o desejo como a pressão que arranca o sujeito da condição de ignorância, na busca da verdade procurada, a qual toca a ordem do impossível, no enigma da diferença sexual. O sexual põe o sujeito frente ao impossível, forçando-o a produzir na difícil caminhada pelas veredas do saber!

O aparelhamento da visão propicia um tipo de relacionamento que não se calca na presença imediata do objeto (como acontece no relacionamento mediado pela comunicação olfativa), pois o que está em cena é a ausência do objeto, visto ser próprio da dinâmica escópica buscar aquilo que não se encontra mais no lugar de sua aparição. Em suma, se num primeiro tempo da existência, a cria humana tem o olfato como mediação de sua relação como o mundo, isto requer um tipo de contato que somente se firma na presença do objeto. Essa forma rudimentar de comunicação é objeto do recalque orgânico. Por outro lado, com a entrada em cena da visão é possível buscar o objeto na sua ausência, do que resultaria não mais uma relação imediata e sim permanente. Isso quer dizer que a utilização da visão, na mediação do sujeito com o mundo, fez com que entrasse em ação algo da ordem da falta. Daí podermos afirmar que, depois desse momento, somente restou ao sujeito a experiência de, frente ao saber, ter como a única alternativa possível, sair de mãos vazias, especialmente quando se confrontou com a região genital da mulher e comparou-a com a do homem. O sujeito espera entender essa diferença pela construção do saber, movido pelo desejo de aceder ao inacessível encoberto de véus sombrios e mistérios inexplicáveis.

A condição necessária como garantia para o desejo é a de que o saber comporta a dimensão do vazio, o que nos propicia entender que, para a cria humana, a única possibilidade de que dispõe, como meio de realização diante do pleno impossível, é o vazio que, como exigência, leva à produção de saber. Mas se o saber comporta tal ordem de vazio é porque o homem não abre mão de seu projeto assaz ambicioso de tocar o mistério do sexo, sendo essa aspiração a que primeiro faz parte do universo de preocupação da criança: o que é o sexo?

A criança quer saber; o aprendente quer saber; o analisante quer saber e enfim move-se o homem sempre tentando, a duras penas, colocar o seu projeto de produção e transmissão do saber. Pode-se até pensar que a ignorância (como o outro extremo de um contínuo, sendo o contrário do saber), é o ponto de partida que faz do sujeito o curioso desejante de saber, visto que "nenhuma criança — pelo menos nenhuma que seja mentalmente normal e menos ainda as bem dotadas intelectualmente — pode evitar o interesse pelos problemas do sexo nos anos anteriores à puberdade" (FREUD, 1908/1993:188). Podemos compreender a sexualidade infantil como uma teoria sobre o não sabido do sexo, isto é, de como a sexualidade vivida através do complexo de Édipo, sucumbe ao recalque. Comecemos, primeiro, pela idéia de uma amnésia infantil. O que vem a ser isto? Por que deixamos de saber o que aprendemos a duras penas na passagem do Complexo de Édipo? O que tal travessia nos ensina? O complexo de Édipo é uma história de amor, um amor que termina em tragédia. É uma história sobre a origem e sobre o Destino. Essa história dará origem a um marco daquilo que não deve ser lembrado, a saber, o supereu. Como herdeiro do complexo de Édipo, o supereu é guardião do não sabido que um dia foi intensamente vivido. Em muitas circunstâncias, como no adoecimento psíquico, por exemplo, esse não sabido, porque sucumbiu ao recalque, retorna com força total. O supereu encarrega-se tanto da cobrança da realização do desejo como legisla negando essa satisfação, o que poderá redundar na formação sintomática (MANSO DE BARROS e OLIVEIRA, 2004).

Há uma pressão que arranca o sujeito da condição de ignorância que ocorre em função da busca de uma verdade, o que é a condição do desejo. Não obstante, a verdade procurada toca a ordem do impossível uma vez que se assenta no interrogante sempre enigmático do por que existem dois sexos, ou melhor, o que há entre um e outro que faz a diferença. Ora, saber que é em um nada existente, aquilo que faz a marca do que há entre um homem e uma mulher, é o que podemos nomear como sendo um abismo. Abismo, mistério e impossibilidade: eis os três pontos, aos quais, o saber leva o sujeito quando se dispõe à tarefa de querer entender o enigma referente ao sexo. Mas, se o sexual põe o sujeito frente ao impossível, isso o força a produzir, mesmo tendo evidências de que nunca o tudo será produzido.

O homem sonha alcançar a totalidade do saber para realizar o desejo de dominar o universo, mas o acesso ao saber é sempre parcial. Não obstante, quanto mais obscuro o enigma, maior o interesse em desvendá-lo! Assim, a verdade é ocultada por um véu e, toda conquista pelo acesso ao saber, é padecer, pois ao se desfazer o lastro da ignorância, há perda de inocência face ao excesso relativo a qualquer operação de produção da verdade. O sujeito desconhece a resistência à verdade apontada pelo saber, pois querendo sabê-la, cria enredos para nunca alcançá-la. Talvez pelo temor em repetir o drama de Édipo que, tragicamente, arrancou os olhos diante da convergência do saber com a verdade, mas num alto custo subjetivo: o desejo. Todo padecimento adveio do fato de que seu desejo foi de saber, sem o que não há tragédia: o que faz de Édipo herói trágico é ter querido saber.

Quanto mais o sujeito dirige-se ao saber, mais fica na condição de ignorância. Como o desejo não é condescendente, impulsiona o sujeito ao precipício da trajetória na vida, dando-lhe a alternativa de se auto-inventar e inventar o mundo, sendo o artífice da escrita de uma história deixada, nas pegadas causadas pelo desejo. Ignorância, saber e verdade: tríade delicada ao sujeito! A ignorância, necessária à procura de saber, mobiliza o sujeito à ação. O acesso ao saber, marcado pelo abalar dos alicerces da ignorância, é a maior das conquistas possíveis. A verdade, quando produzida, leva ao padecimento. O desejo assinala um logro: há o indizível do sexo. Resta desejar e buscar soluções aos impasses da vida. O grande equívoco do sujeito em acreditar encontrar a verdade, leva-o a refazer o caminho de busca do saber, pois "o impossível da verdade é a razão de querer ter a razão" (SZPILKA, 1979:47).

A relação inquietante entre desejo e saber propicia a busca de resposta movida pelo desejo de saber, pois "o saber faz com que a vida se detenha em certo limite em direção ao gozo" (LACAN, 1992:16). Complexa seara exige supor que o desejo só é definível na tangência da articulação entre desejo de saber e vocação à verdade, vetores que acompanham o sujeito no ingresso à trama da linguagem, dando-lhe os indicativos da condição humana, pois "a referência à palavra, que sustenta o idêntico através da sucessão de figuras ou de suas diferenças, é a mola que autoriza o homem a se tornar sujeito do desejo do Outro" (VASSE, 1999:40). É pertinente situar o modo como tal processo ocorre. Para tornar-se sujeito do desejo, é preciso que o homem transfigure-se de si mesmo, numa multiplicidade de imagens, resultado do ingresso no universo da linguagem que o possibilita inscrever no corpo as categorias de espaço e de tempo.

 

3 – Os impasses da castração

O conceito de castração pode ser pensado como a operação pela qual a "representação inconsciente, interior do corpo da mãe, constitui-se como sexual, assumindo a cunho fálico, modelo primário da distinção dos sexos" (LECLAIRE, 1977:29). Por essa operação, que interdita o gozo, se estabelece a distinção entre representante inconsciente e falo para a cria humana mediante a interdição das normas da cultura. Assim, na constituição da ordem sexual, a cria humana marca sua entrada no discurso, como uma posição subjetiva radical elaborada em função dos ditames de uma educação primordial.

Considerando a formulação kantiana sobre o tornar-se humano, vemos que o homem é o único vivente que, para sobreviver, precisa ser educado, pois o animal, ao nascer, já é razão do instinto (numa trilha traçada, exteriormente, a ser seguida), e o homem é a indicação do que poderá ou não vir a ser, devendo, ao contrário, servir-se de sua razão e realizar a conquista do tornar-se o que deverá ser (KANT, 1996). Ironicamente, a natureza acabou todas as suas obras, mas encarregou o homem de traçar as linhas de seu destino, inventando o que poderá ser "num mundo humano, pré-existente, já é estruturado" (CHARLOT, 2000:52). Sua sobrevivência depende da submissão às injunções, visto encontrar-se no mundo estruturado pela linguagem, o que o torna cônscio de seu desamparo.

Inacabamento peculiar à cria humana recompensado pela plasticidade, fator decisivo na escrita de uma história, a partir do legado cultural. Assim, o determinante principal da condição humana não é o equipamento genético, mas a teia de relações sociais que lhe é excêntrica. Disso decorre que a humanização que, por ser incidência da história, é ausência de ser. Em seu estado de desamparo, o homem ingressa num mundo onde existe sob a forma de pactos, aludindo ao patrimônio da ancestralidade, parcialmente apropriado, pelo saber, numa relação de excentricidade. Deduz-se então que o homem, ao nascer, nada sabe de si nem do mundo, sendo o ausente em si, pela condição de ser falante, e presença fora de si, por ter se constituído a partir do Outro. São esses os aspectos da matriz dinâmica do desejo que engajam o corpo em necessária luta pela sobrevivência, na incursão ao campo do saber. Desse modo, nascer é ingressar na história da humanidade e construir uma história singular, pelas andanças nas trilhas do saber. A vereda estruturada por essa via constitui o desejo de saber, sem relação direta com a verdade, nem com algum saber. O desejo de saber, assentado na impossibilidade e na verdade, "poderá cegar quem contemple a verdade em sua nudez. Ter querido saber supõe não o olhar, senão os olhos que buscam, a causa do desejo" (SALAFIA, 1995:24).

Saber e verdade sem se recobrirem, têm no desejo o acionador que coloca o sujeito diante do Destino: nuança trágica forjada pelo desejo de saber, na árdua tarefa de buscar sua verdade, pois há verdade quando o sujeito, pelo desejo de saber, faz ato. Sob este prisma, o ato heróico que faz do sujeito ser digno da virtude e a razão de sua condenação é, um dia, ter querido saber e, na mais tenra idade, se encarregado da realização de descobertas por intermédio da curiosidade sexual, quando ascendeu à posição bípede, explorou o mundo pelo olhar. A partir daí, inclinou-se à busca de conhecimento, tendo a curiosidade sexual transformada em desejo de saber. Diversos caminhos são trilhados pelo desejo: a) Inocência desejada, como modalidade de saber evitada que delimita as posições subjetivas, masculino e feminino. Tal recusa decorre da inexistência de representação, no inconsciente, da diferença de sexos: há apenas o masculino, quer dizer, fálico. A impossibilidade de representação, decorrente do recalque, "é o efeito da impossibilidade de representar a diferença" (MAGALHÃES, 1995:33), restando ao sujeito operar com os pares de opostos referidos ao lugar dessa falta. b) Saber sabido, apagado ao sabê-lo, aparece nos sonhos, atos falhos e outras formações do inconsciente, fruto do impasse do confronto com a castração. c) Saber impossível que coloca o excesso, na rede significante, sendo forma de gozo. Essas modalidades têm na falta, a mola decorrente do encontro da criança com a nudez na mulher.

Na tentativa de produzir soluções para tal enigma, a criança parte de incômodas indagações que incitam seu pensamento sendo também fontes de angústia: qual a origem das crianças e qual o lugar do pai na procriação? A primeira teorização acerca do sexo é a produção de saber que enuncia a igualdade entre os seres, negando qualquer indício de diferença sexual. Tal construção ficcional faz obstáculo à verdade, forçando a cria humana a produzir soluções sobre a concepção do coito de natureza sádica e a origem anal excrementícia da criança. Neste processo de investigação, a criança se encontra diante do impacto conflitivo de duas realidades opostas: a cosmovisão, baseada na atribuição de um falo a todos, inclusive às mulheres e as evidências que desmentem tal suposição. Daí então, para apreender a realidade, deverá declinar da concepção narcísica e substituí-la pela simbolização, a partir da captação da diferença.

A criança, pela castração, obriga-se a admitir o estatuto da falta no Outro, aceitando as conseqüências dessa evidência, inclusive a condição de ser, também, um ser, estruturado pela falta, que quer saber. Mas, constatar a falta no semelhante é cientificar-se de que o outro deseja. Sendo assim, a falta é captada como ameaça que exige do sujeito responder mediante a construção de uma posição subjetiva, pela produção de saber. O projeto de querer saber força o sujeito a uma perda, não podendo mais se esquivar das conseqüências que acenam ao impossível: o saber jamais será todo sabido. Só há saber possível quando algo fica, para sempre, insondável. Por que então há a perda quando se quer saber? Primeiro, ao querer saber, a posição do sujeito é a de posse. Eis o grande engodo: o saber não é algo a ser possuído! Em segundo lugar, o sujeito se acosta ao saber, debruçando-se na zona constituída pelo impossível de se chegar a uma totalidade. Além disso, a verdade causa cegueira irreversível, conforme Édipo quem, negando-se a ver, contemplou a evidência da verdade diante de si, para viver eternamente nas sombras. Sua escolha deveu-se ao terror provocado pela verdade, como quem seria recompensado. O desvelar da verdade sabida pelo sujeito, na zona de não-saber, é o horror inevitável a ser vivido. Arrancar o véu da verdade tem conseqüências. Um dos filhos de Noé que sabe, quer compartilhar o saber som seus irmãos que, "andando com um manto de costas para cobri-lo de depois recuando para nada ver" (JULIEN, 1997:62), com a intenção de fugir do confronto à nudez do pai embriagado. Seu ato, sendo a negação de sua vontade, teve-lhe alto custo subjetivo: a maldição do pai que constatou seu filho querendo saber.

O querer saber supõe algo estruturado além do olhar e isso, a criança, na posição de cientista, adverte-nos formulando incômodas indagações no confronto aos órgãos genitais: não quer ver para contemplar a cena, seu objetivo é o saber buscado, através do olhar, encoberto por um véu. O olhar faz a travessia desse véu. Como realização, o ver é fonte de inesgotável prazer, pois o prazer de ver e a pulsão de saber enlaçam-se para conduzir o sujeito ao campo do prazer o gozo no sentido de avançar um limite (SALIBA, 1990).

O olhar mostra-se e se oculta na aparência das coisas, alcançando aquilo que, de forma visível, é insondável. Assim, opera vendo o evidente e capta algo onde nada pode ser desvelado. Essas duas modalidades de olhar atreladas ao saber são o acesso estruturado pelo desejo de saber, que emerge, na criança, com o prazer de ver, próprio da curiosidade infantil. Se o não-saber coincide com aquilo que é encenado para não ser visto, o que é sabido, por remeter ao desvelar de uma verdade, deixa um ponto obscuro. Eis o ponto de disjunção entre a verdade e o saber: o que pode ser sabido e o que não pode? Para enveredar na pista de tão complexa questão, remetemo-nos à distinção platônica, sobre os três estados articulados ao saber que incidem sobre o homem: a) o estado de prazer organiza-se pelo saber cingido nos caminhos que conduzem à satisfação e também a própria satisfação. b) no estado de dor, a inquietude é a sensação que faz o sujeito buscar um meio, pelo saber, para a fuga e, c) no estado neutro, o saber se apresenta como harmonia, sendo, no entender platônico, o único saber elevado à categoria de virtude: a dor dissolve a harmonia, enquanto que o prazer incitaria o ser à realização de movimentos para buscá-la. Se, por um caminho, o saber é traduzido pela ruptura, por outro, traduz-se pela busca: a harmonia somente é aspirada quando irremediavelmente perdida. Se o sujeito não experimenta dor nem prazer, tampouco pensa em quietude. A harmonia só é pensada no interstício entre a ausência de dor e o esperado início de satisfação, sendo a modalidade de saber referida à perda e à busca. Tendo experimentado a dor e a satisfação e se livrado desses sentimentos perturbadores, o homem pode encaminhar-se à realização de tarefas nobres, na via do estado neutro, de modo a alcançar a forma divina de vida, momento em que cessaria a busca de soluções das perturbações vividas, pois haveria o conhecimento do prazer puro, dissociado e isento da lembrança da dor, traduzida no Bem. O prazer obtido pelo saber da experiência de dor é estorvo, enquanto que o obtido pelo desejo de saber é estado de pureza, resultado de nenhum sofrimento e tampouco de qualquer falta dolorosa, não estando atrelado ao alívio do desaparecimento da dor. Eis a modalidade de saber chamada sapiência: saber sem dor, mas todo sabor possível. Mas, a experiência do sábio não está desvinculada do desejo: a atitude de sapiência visa ao Bem e à verdade. Tal modalidade desejante aciona o sujeito à descoberta de esteios às incertezas do amanhã como terreno sombrio. Assim, o desejo sobrevém da inclinação do sujeito a si ou do amor de si: eis a via gloriosa que leva ao saber, onde opera o desejo de desejar como condição do desejo de saber. São esses os processos presentes na aventura do sujeito para a garantia de sua existência: o desejo, o ato de desejar e a coisa desejada formulada num ato de desejar. Eis a douta ignorância que faz o sujeito mobilizar-se para inventar, na sua perplexidade, ante as coisas do mundo. Perplexidade, não desconhecimento, mas um modo de ser, cujo ponto de partida é a posição de não-saber, para ser produzido o que é possível saber. O não-saber mobiliza o sujeito à ação. Ao agir, acumula saber na estrutura aberta que incita a construção do impossível ao fechamento. A busca da verdade o aciona para tentar suturar o vazio originário, na esperança de encontrar aquilo que responde pela falha ôntica. Se a verdade é o centro de interesse do ser, há relação entre verdade e ser, sendo o sujeito o esforço empreendido para alcançá-la. Na tentativa de produzir soluções, enigmáticas questões levaram o homem a construir o saber textual, condição da experiência humana, deparando-se com o saber pessoal, enunciado e transmitido pelas pegadas com as quais o homem se livra das amarras que o aproximariam a um ser sem história e sem participação efetiva na transformação do mundo.

 

4 – Vinhetas clínicas

Se o adulto não interferir no desejo de saber de uma criança, teremos nela um pesquisador de si mesmo e do mundo. Todos nós, sujeitos falantes, experimentamos certo deslumbramento com a descoberta do mundo quando nos damos conta dele. Mantemos certo entusiasmo com o novo, antes desconhecido, que nos abre um universo de possibilidades. De todas as questões que o Homem se coloca - de onde eu vim?, quem sou eu?, para onde vou? – a que inaugura o desejo de saber, atiçando suas pesquisas iniciais, despertando a curiosidade, é justamente a que questiona sobre a sua origem. Da forma como este momento será conduzido pelos pais, primeiros educadores, dependerá a opção inconsciente por uma das estruturas na passagem pelo Complexo de Édipo: neurose, psicose ou perversão.

Para enxertar vida à teoria, traremos dois fragmentos da clínica: um atendido em clínica-escola, por estagiária do Curso de Psicologia em supervisão; outro atendido em nossa clínica. Pretendemos demonstrar a interferência de experiências traumáticas sobre o desejo de saber, que repercutirá na aprendizagem na escola.

W. é um menino de seis anos. Foi encaminhado pela escola. Sua professora preocupa-se com o excesso de agressividade da criança em relação aos colegas. Não consegue ficar sentado em sua cadeira, ou mesmo no chão, quando ela está ensinando algo novo. Isso impede que W. aprenda as primeiras letras. Isso é informado à mãe.

Nas primeiras entrevistas, passamos a conhecer um pouco da história de W. Seus pais, ambos com cursos superiores, separaram-se quando ele contava dois anos e seis meses. O pai raramente vê o menino, casou-se com uma mulher mais jovem e já tem outro filho, homem também, que tem hoje dois anos. A mãe se diz uma mulher "moderna", procura ler "tudo sobre educação de crianças" e não "se furta a falar a verdade". Afirma que foi educada "ouvindo a verdade". Atualmente tem um namorado, mas evita que ele freqüente muito a sua casa, pois não quer interferências na educação de W. e não quer perder o namorado.

A estagiária do curso de Psicologia inicia o atendimento de W. e se surpreende com a atenção do menino aos jogos e brincadeiras: concentra-se no jogo, admite quando perde embora com alguma resistência, desenha e constrói histórias de seus desenhos.

Contudo, com a seqüência das sessões, a estagiária percebe a repetição de um interesse, que denominamos como um significante: seu interesse pelos sapatos que ela usava. Reparava em todos nos mínimos detalhes e comentava: "gostei mais daquele sapato que você 'tava na semana passada, tinha umas linhas (pespontos, segundo a estagiária), um lacinho atrás, e o salto não era muito alto e era de madeira". Ou ainda: "aquele tênis de xadrez que uma vez você 'tava é mais bonito do que esse; é de corrida?" "Eu gosto de sapato diferente! Essa sandália não é muito alta?"

Teríamos um jovenzinho fetichista? Recomendo que a estagiária convide a mãe e pergunte como foi que ela respondeu ao filho sobre sua origem. Supondo a correção das formulações teóricas da Psicanálise sobre a perversão, sempre baseada na experiência clínica, podíamos levantar a hipótese de uma experiência traumática além do suportável. O suportável indicaria o caminho da neurose, mas este não era o que se apresentava neste caso.

A mãe conta que, de fato, pela ocasião da gravidez da mulher do pai, W. começou a demonstrar muita curiosidade sobre de onde vêm os bebês. Perguntava muito e ela se lembra que num determinado momento ela resolveu "dizer toda a verdade", porque acredita que é o melhor. Levou-o para o quarto dela, tirou sua calcinha, deitou-se na cama com as pernas abertas e mostrou para ele o buraco de onde ele tinha saído, e de onde saíam os bebês como o irmão dele saíra da madrasta, se não fosse cesariana. "Depois disso, ele nunca mais perguntou nada! Acho que respondi certo!"

O segundo fragmento corresponde ao encontro com H., menino de onze anos. Sua mãe foi chamada pela orientadora educacional, preocupada com a vertiginosa queda no rendimento escolar do menino, que no ano anterior estava entre os melhores alunos de sua turma: interessado, indagador, curioso. Na primeira entrevista, realizada com os pais de H., a mãe admite ter vindo a contragosto, só porque a escola pediu. O pai é mais reticente, mas pensa que se a escola pediu deve-se atender. Diz ser um homem muito ocupado e foi com muita dificuldade que conseguiu obter um horário para estar no consultório. Avisa que talvez não consiga voltar. Ambos dizem não saber o que está acontecendo com o menino que parece ter perdido o gosto pelos estudos. No segundo encontro, a mãe vem sozinha e diz ter um segredo para revelar, mas que este jamais poderá ser tocado com o menino: ele é adotado, mas ele jamais saberá. Avisa que ninguém poderá convencê-la a contar.

H. é fisicamente bastante diferente de seus pais: sua pele é morena e seus pais, ambos, têm a pele bem clara. É pouco falante, aparenta desinteresse quando apresentado ao psicanalista e informado sobre os motivos que levaram seus pais a procurar ajuda a pedido da escola. Nos encontros iniciais, joga de maneira maquínica, não vibra quando ganha nem se aborrece quando perde. O analista se questiona para onde vai sua emoção.

A resposta parcial aponta para um sintoma corporal. É sua mãe que, antes de um dos encontros, relata a psicanalista que no último final de semana foram parar no hospital: H. já não defecava há nove dias, e como sofresse intensas dores abdominais, tiveram que recorrer ao médico que fez um procedimento de lavagem dos intestinos para retirada das fezes empedradas.

Que relação haveria entre reter as fezes e reter o interesse pelo conhecimento? Desde quando esses sintomas apareceram? A mãe vem sozinha a um encontro já que o pai não encontrou como desmarcar seus compromissos para vir falar sobre seu filho. Não consegue entender o que está acontecendo com H. Ao ser indagada sobre se H. perguntara alguma vez sobre sua origem, ela relata um encontro ocorrido no final do ano passado. Recebera em casa a visita de duas primas e de sua irmã, todas acompanhadas de seus filhos. As mulheres passaram a tarde conversando enquanto as crianças brincavam. Um dos temas foi o período da gravidez já que uma delas estava grávida do terceiro filho. Cada uma relembrou o período da gravidez de suas crianças, a maternidade escolhida, os sinais do parto, o nascimento, os primeiros dias, menos a mãe de H. À noite, quando preparava a cama para H. dormir, o menino disse que tinha escutado as tias contarem sobre o nascimento dos primos, mas como ela não tinha falado nada ele queria saber como tinha sido o parto dele. Nesse instante, a mãe de H. é tomada de intensa fúria e grita: "Lá vem você querendo saber! Vê se não me enche e vá dormir!" Ela reflete que ele nunca mais voltou a tocar no assunto.

 

5 – Considerações Finais

Em ambos os casos, vemos o quanto o Outro determinou o bloqueio do desejo de saber. No primeiro caso, indicando o caminho da estrutura perversa na saída fetichista para lidar com o real da castração. É a mãe que se vangloria de ter dado a melhor resposta e toma o silêncio do filho como sinal de seu acerto ao, mais do que falar, mostrar a "verdade": o buraco, o furo, o vazio, de onde o menino saiu. Pretendendo nada esconder, a mãe escancara para a criança o horror de ver os genitais maternos, poço sem fundo, profundeza que chama o sujeito a nele se abismar, despertando o terror. Só restava a esta criança o retorno ao momento anterior à visão do genital materno. Olhando para o chão, os sapatos vêm em seu auxílio, atenuando a angústia e protegendo-o de ter que se deparar com o real traumático da castração.

No segundo caso, vemos o Outro calando a voz da criança, de uma verdade cujo inconsciente já sabia. A ira da mãe diante do fustigar de sua própria ferida narcísica, já que desejara muito ter um filho do próprio ventre, sutura no menino o desejo de saber. Saber é algo que fere sua mãe, e ele sabe que ela não tolera a verdade. Faz-se de bobo, torna-se um robozinho, nada mais quer saber. Retém perguntas e fezes.

Foi a escola, nas duas situações, que possibilitou outra chance para estas crianças, ao solicitar o recurso ao psicanalista.

Poderíamos mesmo admitir nesses extratos clínicos que, por caminhos diferentes, teve lugar a possibilidade de gozo sexual com a mãe. Com isso, pode-se formular que existe algo que não está funcionando do lado do pai, seja pelo enfraquecimento ou mesmo ausência. No âmbito da questão escópica (ver o genital materno), temos uma satisfação insuportável situada no circuito do olho que produz um excedente de excitação paralisante, pois a lembrança de tal cena é algo insuportável. No tocante à obstrução da trilha vinculada ao saber, temos a captura de um segredo acerca do corpo materno que deve ser mantido em silêncio.

Diante de tais circunstâncias, quer dizer, na iminência de ser dissolvido por uma ameaça dessa natureza, o refúgio no sintoma, expresso pelo desinteresse com relação às questões escolares, é a resposta dessas crianças, firmando uma posição subjetiva frente à castração, mas com a dificuldade de poder construir uma via subjetiva que libere o sujeito de sua angústia. Em ambas as situações, o corpo da mãe, explícito ou mantido em segredo encerrando um mistério, mostra-se além daquilo que deveria ser: objeto de pulsão parcial, seja pela apresentação do "buraco", seja pelo silêncio sobre a origem.

De qualquer modo, a mãe aparece como possibilidade de relação incestuosa, o que é demasiadamente conflitante para essas crianças, visto que a função paterna estaria falhando em algum lugar.

Enfim, o saber não pode ser colocado de forma nua e crua no âmbito da pulsão escópica, pois é preciso um véu para encobri-lo; nem pode ser ocultado a ponto de causar curiosidade e ter conseqüências em termos do temor do sujeito ante o desvelar de uma cena.

 

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