7Da curiosidade infantil ao desejo de saber: a criança e a infânciaSintomas na escrita author indexsubject indexsearch form
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 ISBN 978-85-60944-12-5

An 7 Col. LEPSI IP/FE-USP 2009

 

8/11 - COLÓQUIO-COMUNICAÇÕES LIVRES

 

Uma escola que se deixa implicar pela queixa1

 

 

Gabriela Gomes Costardi

Psicóloga, Mestranda da Faculdade de Educação da Unicamp, Psicanalista em formação pela Escola Brasileira de Psicanálise

 

 


RESUMO

Este trabalho se refere a um caso de psicanálise infantil em que o pedido de tratamento partiu da escola, a qual tinha a queixa de que o aluno não entrava em sala de aula, permanecendo em outros espaços da instituição. A partir desse estudo de caso, a autora discute como a intervenção da analista sobre a escola produziu um deslocamento na posição institucional de segregação do sujeito como aluno que desviava da norma. Esse efeito se produziu a partir do momento em que a escola tomou uma posição diante da singularidade do seu aluno, assumindo o risco de realizar um ato não previsto em seus procedimentos usuais, o que teve conseqüências para o próprio tratamento analítico do sujeito. A partir deste relato clínico, a autora, ainda, discute teoricamente questões referentes ao Complexo de Édipo e ao manejo que o psicanalista faz da demanda escolar.

Palavras-chave: Escola, Psicanálise, Complexo de Édipo.


 

 

Localizando as questões

A constituição de um sujeito é marcada por rupturas sobre as quais a psicanálise permite uma leitura lógica dentro de um percurso que nomeia de Complexo de Édipo. Uma forma de definir esse processo é em relação às mudanças que a inserção da lei acarretam para a posição de um sujeito. Essa lei é proferida pelo pai e estabelece um corte em relação ao lugar da criança diante da mãe. Quando se diz 'mãe' e 'pai', torna-se importante esclarecer que não se trata apenas daquele que é nomeado como tal, em geral, é uma função que passa por aquele que a encarna, mas o ultrapassa. Em termos lacanianos, trata-se de funções que se estabelecem em relação ao discurso do sujeito, sendo, a função do pai, instaurar uma metáfora para o desejo da mãe, ao inserir um novo significante na cadeia. A escola, por sua vez, realiza, muitas vezes, a função paterna, ficando às voltas com a instauração da lei para a criança.

Como essa função normalizante não pode ser realizada plenamente, instauram-se impasses no cotidiano escolar. Quando um psicólogo é chamado a intervir, o manejo que fará da demanda escolar será determinante para a possibilidade de uma saída que enlace o sujeito em sua singularidade.

 

Sobre o Complexo de Édipo

J-A Miller (1997, p.462) dá um conselho aos analistas de crianças: "em cada análise de criança, é preciso verificar como o sujeito criança se articula na relação do sujeito feminino com sua falta fálica e como a criança se inscreve nessa relação". O decorrer do texto não deixa dúvidas de que essa questão se coloca à condução de todas as análises, já que a posição de cada sujeito diante da falta materna demarca sua estruturação psíquica.

O fato é que, no sujeito feminino, as posições de mãe e mulher não se recobrem, antes, causam divisão. É isso, inclusive, que possibilitará a sucessão lógica do complexo edipiano a partir da entrada do pai em sua função metafórica. Mas esse processo, não sendo acionado por qualquer dispositivo natural, está sujeito às contingências de cada novela familiar e remonta ao tempo em que, aquela que hoje é a mãe, fazia a travessia do seu próprio Édipo.

Quando Freud escreve A organização genital infantil (1923, p.180), ele estabelece que nessa fase há uma primazia do falo para ambos os sexos. A diferença sexual fica desconhecida até que a visão do órgão feminino ganhe sentido ao ser relacionada com a castração. Especificamente no caso da menina, a travessia do Édipo lhe renderá a constatação da castração em seu próprio corpo, o que não será motivo de conformidade, mas de reivindicação. Com a entrada em cena das teorias sobre a origem dos bebês, a menina passa a desejar receber um bebê do pai como substituto do pênis que lhe falta. Em A Dissolução do Complexo de Édipo, Freud explora essa questão: "a renúncia ao pênis não é tolerada pela menina sem alguma tentativa de compensação. Ela desliza – ao longo da linha de uma equação simbólica, poder-se-ia dizer – do pênis para um bebê." (1924, p.223).

Dessa forma, fica estabelecido o lugar a partir do qual a futura mãe receberá seu filho: como o falo que preencherá sua falta reconhecida no complexo de castração. Assim, há um momento inicial em que a relação entre mãe e filho é complementar, o bebê se identifica especularmente com o objeto de desejo da mãe, vivendo o engodo de completá-la, a mãe, por sua vez, nomeará as necessidades do filho, incluindo-o no registro simbólico da demanda e com isso se instala um assujeitamento do bebê. Primeiro porque ele não participa de qualquer negociação quanto àquilo que está sendo nomeado para ele, depois porque a linguagem já está posta para a própria mãe e ela transita pelo código lingüístico segundo regras que lhe escapam. É isso, inclusive, o que dá um caráter de lei àquilo que a mãe profere. Ainda que ela apresente o mundo ao filho a partir de seu querer, de seu capricho, ela também precisa fazê-lo com significantes que se impõem arbitrariamente, modalizando sua enunciação.

Esse é um momento paradisíaco para a dupla mãe-filho, já que a criança representa metaforicamente o falo e preenche a falta materna. É o momento do fetichismo normal que, segundo Miller (1998, p.9), só será normal se e porque virá a falhar. Esta falha está prevista por vários fatores e é importante que assim o seja para que a criança emirja como sujeito, primeiramente porque haverá um incômodo, ainda no tempo em que a ilusão de completude estiver valendo, já que a mãe começará a se angustiar segundo a fórmula de que é a falta da falta que angustia, depois, porque está dado estruturalmente que o objeto é sempre inadequado ao desejo, havendo nele uma marca da castração que fará com que o investimento pulsional do sujeito deslize para outros objetos. Essa falta só se marcará como presença se a mãe não esquecer que também é uma mulher, ela precisa se dirigir a um homem enquanto aquele que porta o falo, reconhecendo a insuficiência do filho em satisfazê-la, e, para que esse movimento se instaure, é importante que a mãe conte com um apelo do seu parceiro, que levará em conta sua falta como mulher e, a partir disso, poderá fazer valer sua palavra diante do filho.

O que entra em jogo, a partir de então, é da ordem da privação. O pai privará a mãe do falo-bebê por meio de um ato de fala. Lacan (1957-8, p.197) deixa claro que o que conta para a eficiência dessa operação não é a relação dos pais como pessoas, suas qualidades e defeitos, mas se, para a mãe, o que o pai diz não é igual a zero, ou seja, trata-se da relação da mãe com a palavra do pai. Com a entrada do pai, há a passagem para um outro momento do Édipo, pois se, até esse momento, o falo era o objeto com o qual a criança se identificava para satisfazer à mãe, a partir de agora, ele estará localizado em outro lugar, inserindo um elemento externo na relação mãe-falo-filho. A criança percebe, então, que o que a mãe quer é o falo e que isso a faz sair e voltar.

É importante notar que, para realizar a privação da mãe do objeto fálico, o pai opera uma metáfora diante do sujeito-criança, no sentido de que vem substituir o significante materno dentro da cadeia dos significantes. A partir da simbolização das idas e vindas da mãe pelo jogo do Fort-Da, ela deixa de ser um objeto primordial para a criança para ser um símbolo. Quando ela passa a se remeter à lei enunciada pelo pai para além de sua lei de capricho, dando a ele estatuto de autoridade por ser portador do seu objeto de desejo, dá-se uma substituição dos significantes na cadeia, demarcando um lugar para a lei. Nas palavras de Lacan (1957-8, p.202): "o pai é, no Outro, o significante que representa a existência do lugar da cadeia significante como lei. (...) O pai acha-se numa posição metafórica, na medida e unicamente na medida em que a mãe faz dele aquele que sanciona, por sua presença, a existência como tal do lugar da lei".

Nesse segundo tempo do Édipo, está em jogo o abandono de uma identificação, o bebê deixa de ser o falo materno para se submeter à lei paterna e, posteriormente, retomar o processo identificatório a partir da problemática de ter o falo, por meio da constituição do Ideal do eu. O abandono necessário da identificação com o falo depende da aceitação da privação materna, o que pode não ocorrer ou ocorrer parcialmente. Esse fato é nodal para a estruturação psíquica do sujeito, pois não é possível não fazer nada diante dele: assim o sujeito pode aceitar, contornar ou recusar a privação materna e cada posição terá uma consequência. "Não ser o falo da mãe é o efeito da segunda metáfora, e por isso a consequência é a castração fálica materna. Ponto nodal que não é simples de franquear e que pode manter o sujeito em uma certa identificação com o falo". (MEYER, RUBISTEIN E RUIZ, 2000, p.133).

Entendendo que, nesse segundo tempo, houve a experiência do complexo de castração, o sujeito estará apto a pleitear a posse do falo. O pai, que dá mostras de tê-lo com sua potência, será alvo das identificações do menino e tornar-se-á objeto de desejo para a menina. A constituição do Ideal do eu permitirá a cada sujeito algumas saídas possíveis ao complexo edípico, como a identificação com o tipo ideal do seu sexo, a assunção da maternidade ou da paternidade e a tomada de posição em relação ao desejo do sexo oposto.

 

Sobre a entrada na/da escola

Nas lidas do sujeito com a (des) identificação ao falo materno e com a instauração da metáfora paterna, há um momento em que o que era um drama restrito ao interior da família, torna-se um assunto social: a entrada da criança na escola formal. O recorte clínico a seguir ilustra essa questão.

A mãe trouxe para atendimento clínico Pedro2, de 7 anos, que não permanecia em sala de aula e pediu uma orientação urgente para saber como fazê-lo ficar, pois não podia mais faltar ao trabalho para acompanhá-lo. Nesse momento, o menino já tinha subvertido todas as regras institucionais: não cumpria o horário de funcionamento da escola e tinha uma estagiária que o acompanhava para ir aonde quisesse, com autorização para fazer o que quisesse. Seu desejo era ir à escola para transitar.

Sobre o pai, Pedro contou que este morreu quando ele ainda era bebê, mas havia o namorado da mãe que ele fingia ser seu pai. O caráter ineficiente da função paterna também foi reafirmado quando a mãe contou que, apesar de Pedro fazer coisas para chamar a atenção tanto dentro quanto fora de casa, ela não permitia que ninguém chamasse a atenção dele, entrando em conflito com seu parceiro por causa disso, ou seja, nesse caso a palavra do padrasto era igual a zero.

Nas sessões, Pedro dizia textualmente que ninguém o parava e que ninguém mandava nele. Um jogo era pedido repetidamente: xadrez, com o qual tinha o intuito de dar xeque-mate na analista, assim como dava no pai (padrasto) e na mãe. A analista começou a fazer valer as regras do jogo e passou a não se deixar ganhar. Uma fala de Lacan faz referência a essa posição transferencial: "Para que o Édipo exista, é evidentemente no nível do Outro que ele deve produzir a presença de um termo que, até então, não estava em jogo, a saber, alguém que, sempre e em qualquer circunstância, é capaz de jogar e ganhar". (1956-7 p.212)

Pedro, então, usava truques, interrompia o jogo ou dizia que a analista ganhava porque estava roubando. Na iminência de perder, Pedro pedia para parar de jogar para evitar que ele perdesse a vida. Ele dizia que a mãe chorava quando ele perdia, pois ela queria que ele fosse o campeão e ganhasse todos os jogos do mundo. Fica claro que o modelo identificatório relatado pelo menino não dizia do seu Ideal do eu, mas da condição de falo materno, evidenciando os impasses vividos com a tentativa de instalação da metáfora paterna para esse sujeito. Lacan diz, no Seminário 4 (1956-7, p.214), que em relação à castração, há um jogo da criança com o pai onde quem perde ganha e é isso que permitirá uma primeira inscrição da lei para o sujeito. Neste caso, no entanto, perder estava ligado a morrer, não ser mais nada para a mãe, por isso a impossibilidade de perder a identificação com o falo para ganhar, posteriormente, sua posse.

A escola chamou a analista por diversas vezes, repetidamente, a coordenadora ligava para ela e dizia que não sabiam o que fazer com seu paciente, relatando as dificuldades para fazê-lo ficar na escola e na sala de aula e, a cada vez, a analista se dispunha a ir até a escola para escutá-los.

Na primeira conversa com a professora e com a coordenadora, ambas argumentaram que o menino estava com problemas com a professora e que pensavam em trocá-lo de turma. A analista não concordou já que conhecia a dificuldade de Pedro em consentir com a lei e sabia que sua professora estava ocupando essa posição transferencial, não se tratando de uma dificuldade que dizia respeito a ela como pessoa. Ainda assim, ficava claro que a posição da professora era passá-lo adiante, pois não queria mais tomá-lo como seu aluno.

O fato é que o menino sabia se fazer insuportável, não recuava diante das ameaças e seduções das autoridades, tinha uma série de recursos para não ficar no lugar de aluno. Com a analista, no entanto, houve um episódio que mostrou que ele podia deixar-se barrar. Ele resolveu decidir sobre o tempo da sessão, tal como fazia na escola. A analista lhe disse que o tempo ainda não tinha acabado, mas sua palavra foi em vão. Pedro foi para a porta e ela o seguiu, não permitindo sua saída. O menino ficou descontrolado e teve de ser contido fisicamente. Na sessão seguinte, a analista perguntou sobre o encontro anterior e ele respondeu que tinha sido o melhor de todos.

Na escola, as coisas continuavam da mesma forma. A analista foi chamada para uma conversa e, na chegada, ao cumprimentar a coordenadora, recebeu como resposta "é fácil falar que Pedro tem que ser aluno, o difícil é fazer". A analista escutava todos os bons motivos da escola para que Pedro fosse segregado - queriam mudá-lo de turma, de escola - mas não consentia com essa posição, pedia para que fizessem algo além de que permitir que o menino ficasse de fora.

Aqui se delineia uma questão fundamental: não havia um saber que a analista pudesse oferecer à escola para que a questão fosse resolvida. Estavam lidando com um ponto que resistia a todas as estratégias para educar - negociar, compensar, obrigar, ignorar - nada tinha surtido efeito. A analista sabia, entretanto, que o discurso que usualmente sustenta a instituição, o discurso do mestre, não tem recursos pra lidar com esse impasse. O mestre é aquele que quer que tudo funcione, custe o que custar, que não quer saber nada sobre a realidade desejante dos sujeitos. Nesse caso, isso estava sendo inócuo. Era preciso que fosse reconhecida a limitação do saber instituído para que houvesse, então, a invenção de algo que pudesse fazer laço com isso do sujeito que não se deixava articular, que não cedia à ação da palavra.

A escola demandava da analista o que ela não tinha: um saber para dar conta da questão. Então, como fazer a instituição se implicar em sua queixa? Como causar um espaço para que a escola tomasse para si a responsabilidade de criar alguma coisa para lidar com Pedro e não favorecer seu movimento de ficar de fora?

A analista se dispunha a escutar os agentes escolares, não recusava esse pedido. A partir do estabelecimento de um campo transferencial, pôde devolver à escola as perguntas formuladas. Seu único recurso era manejar as coisas sem responder do lugar de saber, sem se colocar a trabalhar pela escola, apostando que esse outro laço social poderia provocar movimento. Uma fala de J-A Miller faz alusão a essa posição:

Pedir algo ao paciente, que volte no dia seguinte, pode ser feito à maneira do Mestre ou da maneira que convém ao psicanalista. A diferença é grande. Trata-se seguramente de assumir uma função pela qual se apresenta uma exigência ao paciente. Mas se deve apagar todo o imaginário do Mestre e efetuar o pedido sendo nós mesmos, se se pode dizer, como um real. Como uma instância do impossível de mudar, por exemplo, e sem escutar os excelentes motivos que o paciente tem para não vir porque não pode, seus outros compromissos, etc. (MILLER, 2002, p.140)

Quase na metade do ano, a entrada de uma nova diretora deu uma outra possibilidade ao caso. Esta mulher ficou surpresa com a dimensão da situação e chamou a analista para discutir, contou que falaram com uma pessoa da Secretaria de Educação para pedir que Pedro retornasse à Educação Infantil, mas não obtiveram sua permissão nesse sentido. A diretora, então, quis que a analista lhe dissesse o que fazer com o caso. Esta, por sua vez, reafirmou que Pedro precisava ser aluno daquela escola e que estava na hora de dar um passo quanto a isso, pois a estagiária, que ainda o acompanhava, não podia se responsabilizar sozinha pelo aluno. A diretora tomou para si a responsabilidade de fazer algo, se propôs a pensar sobre como resgatar o desejo da professora por esse aluno, se implicou como sujeito nessa trama.

Naquele dia, então, Pedro foi carregado à sala de aula e lá permaneceu à força. No segundo dia, foi pedido à mãe que o deixasse dentro da sala de aula antes de ir embora. Ela também precisou carregar o filho, mas ele denegava que sua mãe estivesse fazendo a lei se cumprir: Pedro gritava à mãe por socorro, dizendo que quem o carregava era a diretora. A nova fase foi conturbada, mas esse ato deu a ele a possibilidade de ser aluno dessa escola com desdobramentos que o permitiram tomar um novo lugar subjetivo diante da lei.

O interessante é que a intervenção da escola, nesse momento, auxiliou uma virada no tratamento. Na sessão seguinte à sua inserção na sala de aula, Pedro foi em direção aos jogos e disse: "Estou indefeso". A analista questionou e ele explicou que não sabia qual jogo escolher. A formação do inconsciente produzida aqui não passa desapercebida. Era de uma posição subjetiva que o menino estava falando. A certeza que o levava a escolher repetidamente o jogo de xadrez foi quebrada, pois dar xeque-mate no Outro deixou de fazer sentido a ele, mas o significante que apareceu não foi indeciso, senão, indefeso. Agora, ele tomava uma posição de vulnerabilidade em relação ao Outro, algo se perdeu, decaiu de sua identificação com o campeão.

Portilho (2000, p.80) aponta que as formações do inconsciente são suscetíveis de interpretação a partir da concepção de que elas se produzem com intenção de significação. Essa significação foi construída pela analista a partir do andamento do caso. Pedro fez uma colagem e disse que não conseguia colar perfeito, então, explicou que até um dia antes de ter entrado na escola ele era perfeito, mas depois não mais. Parece que o engodo imaginário da identificação ao objeto materno começava a ruir, havia uma fratura se marcando, tendo efeitos de sustentação para a lei paterna.

Assim, um jogo que envolve dinheiro passou a ser escolhido por Pedro e ele fazia todas as manobras possíveis para ficar com notas de R$ 10,00. A partir de uma pontuação da analista, ele disse que se daria nota sete na escola, pois precisava fazer mais tarefas para chegar até a nota dez. Falou que, para ele, ser dez era ser louco, era botar fogo na rua, como ele mesmo já tinha feito, só que naquele momento ele era louco apenas em sua imaginação, em suas invenções.

Na última ida da analista à escola, a coordenadora lhe disse que eles tinham demorado a entender que Pedro era seu aluno. A posição de segregação, antes assumida pela escola, e o deslocamento que acontecera ficaram marcados nesta fala e ficou claro que os agentes escolares envolvidos no caso produziram um saber diante desses acontecimentos.

O menino iniciou o segundo ano letivo sem repetir as dificuldades anteriores, o que fez sua mãe optar por interromper o tratamento. Nas últimas sessões, Pedro deixou de lado a cadeira infantil, sentando-se na poltrona. Explicou que já tinha crescido.

 

Sobre a demanda da escola ao saber Psicológico

Apesar de ter sido realizado um trabalho pela via da Psicanálise, a analista foi chamada a atuar a partir de sua condição de psicóloga. Serão discutidas as conseqüências práticas produzidas por esse atravessamento, já que a Psicanálise subverte a inscrição da Psicologia no discurso científico.

Entende-se que a escola apresenta à Psicologia diferentes demandas, desde formulações mais permeáveis e dialéticas, nas quais se implica em sua queixa, permitindo-se construir alternativas mais eficientes à sua ação, até pedidos mais fechados, nos quais se refere ao psicólogo como um especialista que poderá oferecer seu saber técnico para suprir todas as dificuldades do cotidiano educacional. Quando a demanda se caracteriza conforme a desresponsabilização da instituição escolar diante do aluno, formula-se um impasse ao próprio trabalho do psicólogo, que está fadado a fracassar. Cabe, aqui, uma reflexão sobre qual demanda a escola faz à Psicologia e como a perspectiva psicanalítica permite trabalhá-la.

Já é de longa data que educadores se dirigem a especialistas para pedir orientações sobre como realizar sua tarefa diante das crianças. Rousseau indica essa realidade quando insere a figura do preceptor no seio familiar, indicando que os pais se dirigem a um terceiro autorizado do lugar do saber para serem orientados sobre qual a melhor maneira de educar seu filho (FERRETI, 2004, p.25). A aproximação da Psicologia com a escola se justifica com essa intenção, tanto no ensino de disciplinas de Psicologia nos cursos de Pedagogia, quanto na entrada do psicólogo na escola ou nos encaminhamentos que esta faz à clínica psicológica.

Quando o objeto sobre o qual se pretende incidir é o humano, o modelo do discurso científico torna-se problemático, pois o humano não responde a leis naturais, não pode ser recoberto por um discurso objetivo. A educação é uma tarefa que implica os sujeitos a partir de sua posição subjetiva, inconsciente, e, nesse âmbito, o saber de ordem técnica tem um efeito limitado. Então, estamos diante de um paradoxo: a Psicologia se sustenta junto à escola a partir de seu estatuto científico e, no entanto, a ação possível à Psicologia não se pauta pelo discurso científico, no sentido de oferecer respostas que já foram testadas e validadas universalmente. Há um deslocamento que precisa ocorrer na demanda da escola para que sua interrogação à Psicologia não se perca na impotência.

No manejo deste pedido, a Psicanálise contribui, já que ela incide sobre os limites de um campo de ação e conhecimento, fazendo uma referência a Freud quanto ao impossível de educar, governar e psicanalisar. A Psicanálise se dedica a operar no registro daquilo que escapa à apreensão, fura o saber, contrapondo-se ao discurso científico que supõe que o saber não tem limites e que por meio dele será possível a transposição de qualquer obstáculo. A ciência tenta oferecer um complemento - seja pelo saber que será descoberto, seja pelos objetos que serão fabricados - à falta que marca o homem, prometendo-lhe um consolo diante da castração. Já a Psicanálise, por sua vez, sustenta que a condição humana está fatalmente confrontada com um "fora de medida", que faz o sujeito sofrer e satisfazer-se de suas faltas e excessos.

Diante dessa perspectiva, fica claro que a educação nunca será realizada de forma total, no sentido da adequação do sujeito às normas, pois, sempre haverá um ponto sobre o qual não incidirá, uma resistência impenetrável que marca a singularidade de cada sujeito. É este paradoxo que atravessa a escola e a constitui. Ela adquire legitimidade social ao testemunhar a castração para a criança e tropeça ao verificar que as regras também estão aí para a transgressão, pois o sujeito é sempre uma exceção. Neste momento, então, a instituição se depara com a impotência e se endereça à Psicologia numa tentativa de cessar a questão sobre a impossibilidade de recobrir o outro totalmente.

Quando a escola se encontra com um aluno diferente do idealizado, abre-se uma lacuna que exige a criação do novo. Este é o ponto que a intervenção do psicólogo deve visar, pois é a partir da criação que leva em conta o impossível que a impotência pode ser transposta. Cohen (2006, p.101) lança a criação como alternativa de movimento ao impasse do impossível: "no que concerne à educação, podemos pensar o processo de criação como uma das formas de abrir caminho para o apaziguamento do impossível de ser dito ou escrito, no qual identificamos o real pulsional que chamamos de ineducável".

Então temos que, diante do cotidiano, a escola se depara com uma falta no seu saber - como fazer fulano aprender? sicrano cumprir as regras? os professores trabalharem coletivamente? os pais virem às reuniões? – e ela se volta ao psicólogo como aquele que pode lhe ofertar esse saber. O fato é que a ação do psicólogo, diante dessas problemáticas, não passa por ele oferecer respostas para serem aplicadas. Sua atuação é exatamente criar um espaço para que os sujeitos se ponham a trabalhar, para que possam inventar algo para lidar com suas questões.

Podemos definir dois pontos para nortear a ação do psicólogo segundo essa perspectiva: sua posição ética e discursiva. Note-se que sua intervenção não pode ser definida a partir de técnicas específicas ou algum tipo de enquadramento standard, por isso o alcance do trabalho só será definido a posteriori. É só no depois que se evidencia qual posição ética e discursiva foi tomada pelo psicólogo, sendo sua ação sustentada por uma aposta inicial.

Em relação à ética, é importante definir que não se trata de pautar-se pelas "boas intenções", no sentido de responder ao sofrimento para tamponá-lo. É preciso sustentar o impossível da completude, não ofertar um saber alienante e ilusório, fazer valer a implicação de cada sujeito com o seu fazer, dentro de uma ética de aposta, ação e responsabilidade. "A psicanálise parte de outros princípios e outra ética: partimos da inexistência do objeto adequado, do impossível da totalidade e da completude harmônica e da ética das consequências" (LAMPERT, 2003, p.50).

Nessa perspectiva, a ação ética aponta para um empreendimento desafiador, o qual está muito distante do seguimento literal de regras. Há um risco inerente a uma posição ética que faz necessário a implicação do sujeito. Archangelo diferencia a "ética" literal ou do controle, no qual o seguimento de um código de conduta regraria homogeneamente o estar do sujeito no mundo, oferecendo-lhe uma perspectiva de conforto, da ética do cuidado, em que o sujeito suporta a dúvida, a contradição, a precariedade das respostas e aceita o desafio de pensar a partir de uma condição ética que leve em conta o cuidado com o outro.

Para tratar da posição discursiva do psicólogo é importante esclarecer que não diz respeito ao discurso enquanto produção de enunciados, mas enquanto laços sociais que se mantêm por certas relações estáveis estabelecidas pela linguagem, a partir de enunciados fundamentais (LACAN, 1969-70, p.11). Ressalta-se que o discurso aqui não se confunde com aquilo que o sujeito fala, mas, principalmente, diz respeito à incidência do gozo no laço que o agenciador do discurso estabelece com o outro.

A ideia de gozo é fundamental para a noção lacaniana de discurso. Lacan desenvolveu o conceito de gozo a partir da pulsão de morte freudiana, aquela que aponta para a repetição e que não se submete ao princípio do prazer (FREUD, 1920). Isso quer dizer que há uma satisfação pulsional que não está ligada à estabilização da excitação no aparelho psíquico, mas ao seu excesso.

Miller (2005) esclarece que ao prazer opõe-se o desprazer, mas ao gozo não é possível estabelecer nem a oposição do prazer, nem do desprazer. Esse termo qualifica a satisfação inconsciente, da qual nada se sabe, podendo significar, inclusive, a obtenção de prazer pela dor. O termo gozo diz do âmbito libidinal que constitui o sujeito e é apenas parcialmente apreendido pelo seu aparato simbólico, ou seja, há sempre algo de libidinal que resta da simbolização significante e é isso que causa repetição.

Os laços sociais permitem a modalização do gozo, pois eles implicam o sujeito a partir de uma relação faltante com o outro. Há uma dissimetria no encontro do sujeito com o objeto, o qual é sempre inadequado. Desse ponto de vista, a relação fica inviabilizada. Voltolini (2007, p.4) parafraseou o conhecido aforisma de Lacan "a relação sexual não existe", postulando que "a relação professor-aluno não existe". Relação aqui tem um estatuto de homogeneidade, de complementaridade fadada ao fracasso, podendo apenas levar a identificações. É na heterogeneidade que se dá o enlaçamento, quando a diferença entre um e outro permite uma distância e causa desejo, criando um laço.

Os laços sociais foram formulados, inicialmente, por Lacan, a partir de quatro posições discursivas: do mestre, da histérica, da universidade e do analista, tendo, posteriormente, acrescentado a essas, o discurso capitalista. Parte-se do entendimento de que o espaço escolar está atravessado predominantemente por três modos discursivos: o discurso do mestre, que diz respeito ao cumprimento da lei dentro da instituição, o discurso universitário, que diz da transmissão do saber enquanto um dado natural, e o discurso capitalista, que prepara os alunos para o trabalho e promete a completude do sujeito a partir dos bens de consumo. O que esses discursos têm em comum é que eles não levam em conta a verdade do sujeito e denegam a castração e o limite do saber.

Ainda que todos os discursos permeiem o espaço escolar, e é desejável que assim o seja, é possível que o psicólogo - tanto por meio do discurso histérico do qual provém o desejo de saber, quanto do discurso analítico que, ao causar desejo, toma o outro como sujeito - instaure uma diferença no discurso de segregação do ineducável, ao levar em conta a verdade dos sujeitos que aí têm lugar.

 

Referências:

ARCHANGELO, A. A ética como alternativa à cultura do literalismo. http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/Etica/5_archangelo.pdf. Acesso em: 23 mar 2008.

COHEN, R. A lógica do fracasso escolar: psicanálise & educação. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria, 2006.

FERRETTI, M. O infantil: Lacan e a modernidade. Petrópolis: Vozes, 2004.

FREUD, S. A dissolução do complexo de Édipo (1924). In: Obras Completas. Rio de Janeiro: Imago Ed., 1976. v. XIX, 394 p.

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LACAN, J. O seminário, livro 4: a relação do objeto (1956/1957). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1995.

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LAMPERT, A. Psicanálise no hospital. Opção Lacaniana, São Paulo, n.37, p. 48-51, set. 2003.

MEYER, A. RUBISTEIN, A. RUIZ, G. Metáfora e tempos do Édipo. In: ESCOLA BRASILEIRA DE PSICANÁLISE (orgs.). Os circuitos do desejo na vida e na análise. Contra Capa Livraria, 2000.

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1 Este artigo é parte de uma pesquisa em andamento no Mestrado da Faculdade de Educação da Unicamp, orientada pela Prof. Dra. Ana Archangelo e financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de SP – FAPESP.
2 Nome fictício.