7Uma escola que se deixa implicar pela queixaEducação integral e/ou jornada ampliada no ensino fundamental: uma leitura psicanalítica author indexsubject indexsearch form
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 ISBN 978-85-60944-12-5

An 7 Col. LEPSI IP/FE-USP 2009

 

8/11 - COLÓQUIO-COMUNICAÇÕES LIVRES

 

Sintomas na escrita

 

 

Ilana Katz Zagury Fragelli

psicanalista, mestre no IP/USP. doutoranda na FE/USP, pesquisadora do LEPSI, membro do NEPPC (núcleo de estudos e pesquisas em psicanálise com crianças)

 

 


RESUMO

Se o discurso social incide sobre o sujeito para determiná-lo, o sintoma que se institui no tempo da infância, seja na ordem de um impedimento ou de uma ação radical, é tecido em relação ao lugar social da criança em seu tempo.
Hoje temos, de um lado, a "criança maravilhosa" da qual cobramos a restituição narcísica de um gozo que deveríamos ter dado conta de perder e, de outro, a ciência dizendo que sim sabe tudo, e que se por acaso nossos rebentos falhem na hora de cuidar do nosso narcisismo, ela poderá nos vender a solução em forma de cápsulas ou de adestramento. Na hiância desse discurso, o sintoma aponta para verdade do sujeito, que aí tenta dizer-se.
O tratamento que o discurso social dá aos fenômenos que assolam a escrita das crianças (as ditas dislexias) são exemplos importantes de um paradoxo de nossos tempos. Ao propor teorias e suas terapêuticas associadas de confronto direto e corretivo do acontecimento na escrita, tais tratamentos tem como efeito colateral o apagamento do sujeito.

Palavras chave: sintoma, escrita, dislexia.


 

 

Se o discurso social incide sobre o sujeito para determiná-lo, o sintoma que se institui no tempo da infância, seja na ordem de um impedimento ou de uma ação radical, é tecido em relação ao lugar social da criança em seu tempo.

Examinar esse lugar, portanto, trará elementos que permitirão o entendimento sobre o sintoma, essa resposta subjetiva, e portanto absolutamente única, que inventamos na trombada com o discurso social.

Hoje temos a "criança maravilhosa", de quem cuidamos e protegemos; em quem investimos muito, para quem "damos o nosso melhor". Fazemos isso porque queremos dar toda a condição pra que essa nossa criançinha faça a restituição narcísica de um gozo que deveríamos ter dado conta de perder: ela será o que não fomos, gozará do que não tivemos acesso.

A nossa "criança maravilhosa" é aquela criança que não pode nos desapontar, não pode indicar para si uma direção diferente da que determinamos narcisicamente que cumprisse.

Caso nossa maravilhosa criança insista em "desbussolar", em mudar de direção, em apontar para caminhos que não coincidam com nossas pretensões narcísicas, o cientificismo correrá em nosso socorro: sim, ele poderá nos vender a solução em forma de cápsulas ou de adestramento.

É nesse panorama que a criança faz seu sintoma, insiste numa resposta, numa versão singular, ao que a determina discursivamente.

Quais são os determinantes discursivos?

O primeiro é esse que apontei: o lugar da criança na atualidade. Vejam o paradoxo: nossas criancinhas estão obrigadas à felicidade, bem como aos seus correlatos atuais: sucesso, competência e dinheiro.

O outro determinante discursivo do qual não quero deixar de falar é o que é transmitido pela escola. A escola é um dispositivo discursivo de importância relevante, uma vez que é lá que as famílias, cada vez mais nucleares, encontram-se com outros, dão-se a ver no coletivo, enredam-se na socialização. A escola é o lugar da criança na atualidade, e, à aculturação, à tarefa de imprimir os signos da cultura sobre a criançinha, acrescentamos a educação do cidadão moderno como uma de suas prerrogativas. Como não pretendo discutir exaustivamente esse ponto, que certamente merece atenção redobrada, apenas marco a idéia que tenho de que esse dispositivo discursivo tem operado de um modo cínico. Como isso acontece?

Se a escola se engaja na luta eco-política por um planeta melhor e acredita que precisamos reciclar o lixo, todos nós separamos, coletamos, recebemos panfletos escritos pelas criancinhas culpabilizadas sobre a economia da água e a importância da reciclagem… e a escola? A escola ensina tudo isso, instala latas de lixo reciclado em seus corredores, todos vemos e colaboramos… e a mesma escola recebe todos os dias crianças que levam sucos em embalagem plástica ou de tetra pack, porque não se reorganiza, não gasta tempo e dinheiro para oferecer o suquinho dos meninos.

Outro exemplo: se a escola é inclusiva, ela sustenta junto aos seus alunos que todos sejam tolerantes à diferença, e demanda que todos sustentem a mesma posição. O que acontece? Qual é o resultado quando pensamos e agimos de um mesmo modo? Não há mais diferença. Seria necessário nos perguntarmos se tolerar a diferença é minimizá-la…

Na rede pública de ensino, temos uma situação dramática: as crianças, dentro da escola, fingem que escrevem, são "copistas": desenham as letrinhas que seus professores escrevem na lousa, e os professores… eles fingem que acreditam que seus alunos escrevem, e assim caminham, ano a ano, até o fim do ensino fundamental.

É claro que existe toda uma série de considerações que deve ser feita para cada um desses exemplos que dei, mas, em todos os casos, afirmo, estamos diante de uma articulação cínica.

Evidente que a singularidade não pode ter expressão absoluta no coletivo, não se trata de produzir um aglomerado de "sujeito do desejo" desordenado, fora da ordem social. Evidente que a estrutura discursiva deve comparecer para propor modos de vínculo de um sujeito com outro, mas o cinismo não é a única maneira dessa montagem acontecer.

A vinculação de um sujeito a outro engendra, como condição, não o singular, mas o plural. E a pluralidade não pode ser tomada como equivalente do homogêneo, do idêntico, da pasteurização. A pluralidade deveria sustentar o desvio, a modalização feita pelo sujeito às determinações discursivas. Porém, não é isso que temos encontrado. E é a essa condição discursiva que o sujeito vai precisar responder para se situar.

Como o discurso social tem tratado os problemas relativos à escrita da criança?

Trocas de letras, omissões, ilegibilidade, cópia ou sua curta extensão discursiva, quando resistem aos recursos que a escola tem para resolver esse problema são rapidamente diagnosticadas como dislexias. Crianças que resistem a escrita são disléxicas. Até aqui nenhum problema. Porém, quando chegamos mais perto do que está presente atrás dessa idéia de dislexia no discurso social, nos surpreendemos.

A dislexia como formulação socialmente difundida ultrapassou as barreiras do discurso médico e foi, não sem querer, oferecer-se como parâmetro para a avaliação do professor a respeito da produção de seu aluno. Temos agora visto a escola usar com alta frequência a idéia de que quando a escrita de uma criança vai mal é porque ela é disléxica. Segundo o "milagre da multiplicação dos diagnósticos" (LEITE, 2006) é fácil dizer porque uma criança não aprende a ler ou escrever: é só porque ela tem um problema, um problema de escrita.

A formulação corrente de dislexia apresenta a idéia de que a dislexia é, como categoria diagnóstica, uma condição anterior ao encontro do sujeito com a escrita, é um problema hereditário e de ordem neurológica. Diga-se apenas como curiosidade, tal origem neurológica da dislexia é tratada pela medicina cientificista como comprovada ou presumida… vou repetir: presumida! É, portanto, independente do modo, da circunstância, e da época em que esse encontro se dá. O impasse na aquisição, a partir do diagnóstico da dislexia não tem relação com a escola, seus métodos, seus professores, e também é independente de questões familiares ou da posição do sujeito diante do que a escrita põe em jogo.

Assim sendo, tomar uma criança como disléxica é necessariamente desimplicar a escola, a família e a própria criança na instituição do problema. (vale lembrar que a desimplicação registrada quando se trata da instituição do problema não é a mesma na administração demandada pela terapêutica). A criança diagnosticada como disléxica é disléxica quando o professor ensina e ela não aprende. A família se alivia, afinal, não fez nada errado… Como categoria diagnóstica a dislexia não é problema de ninguém, é apenas uma conjectura, uma herança genética, que faz parte do problema que aparece na aquisição de escrita de algumas crianças. E é por esse motivo que, acredito, tem encontrado tanto espaço no laço social.

À pergunta referente ao porquê uma criança resiste à escrita, o discurso social, apoiado na produção da ciência, responde, rapidamente: porque ela é disléxica. Tal afirmativa não é sem consequências: o tratamento da dislexia que acompanha essa visão se dá por confronto direto e corretivo do acontecimento na escrita, e dispensa a implicação do sujeito que sofre. Trata-se de um diagnóstico em que se a dislexia é a categoria causa, (é por causa da condição disléxica que a criança escreve/lê mal), certamente não é sintoma. Esse procedimento tem efeitos sobre o sujeito. Entendo que a dislexia serve ao discurso social na direção de um descompromisso radical com o que aparece como questão do lado do sujeito.

Do ponto de vista do sujeito, responder ao discurso social é correspondente a responder ao que nos determina no campo do Outro. Essa resposta, evidente, pode ser afirmativa ou negativa.

Se o sujeito diz que sim, que vai encarnar, vai se realizar como o que o determina no desejo do Outro, ele estará dizendo que não haverá espaço entre si e o Outro, ou seja, que "vai ser o que o outro precisa que ele seja", será oferenda ao seu deleite e desse modo ele resolve a tensão: consente ao empuxo que o campo do Outro opera.

Se o sujeito responde que não vai ceder, e tenta negar assim a condição de mais um no mundo, ele resolve a tensão tentando fincar-se como única exceção possível.

Entre a submissão radical e a exceção pura, o neurótico responde: nem sim, nem não, e muito pelo contrário!! Responde tentando não escolher… Ele faz SINTOMA! Faz sintoma para conseguir atender as determinações desse Outro que quer gozar as suas custas, e ao mesmo tempo resistir a elas. Esse é o seu muito pelo contrário, uma tarefa pra lá de complicada!

Examinemos mais de perto: o sintoma media a relação do sujeito com a cultura, trata-se da modalização que falamos acima. É uma resposta subjetiva que, ao mesmo tempo que impede, também facilita muito a vida do neurótico.

O sintoma fóbico parece ser um bom exemplo dessa articulação: Hans não sai de casa porque tem medo, isso o impede de movimentar-se, de "conhecer o mundo"(como nos diria Piaget), mas também facilita sua vida: justifica, pela impossibilidade que o medo cria, a sua necessidade de ficar em casa, guardião de seu lugar junto à mãe, ameaçado pelo nascimento da irmãzinha. Vemos como o sintoma de Hans se oferece como tratamento à angústia que experimentava quando precisava sair de casa e se afastar da mãe…

Aos olhos dos outros, porém, Hans não explica, complica: ninguém entende porque esse garoto esperto resolveu fincar pé dentro de casa. Ele sustenta uma posição enigmática.

O sintoma, qualquer sintoma, tem sempre essa dupla vocação: uma resposta subjetiva que aponta para dois lados (impedir e facilitar), e sua eficiência está no grau de articulação que consegue manter entre esses termos: verdade e gozo.

O sintoma faz uma mediação entre a verdade do sujeito e sua condição de objeto a ser gozado pelo Outro. Institui-se em um funcionamento tal que aparelha o sujeito para gozar da significação que assume no desejo do Outro bem como na criação de seu lugar autoral, de exceção em relação ao discurso social.

Assim, responder é, de todo modo e a partir dessa tensão entre o ser e o Outro, engendrar-se subjetivamente, arriscar-se numa tentativa de articulação milimetricamente calculada de um lugar possível para a existência.

O sintoma, para concluir, permite ao neurótico escavar-se como sujeito através da articulação de sua verdade à sua condição de gozo ( aqui situado como gozo do Outro). É um aparelho que, como parte da nossa condição subjetiva, é efeito da impossibilidade de termos acesso aos termos que fechariam a conta de nossa existência, dessa condição de incompletude que movimenta nossa existência. "É um efeito da impossibilidade da relação sexual" (VALLAS, p. 250).

Pela via sintomática o sujeito arma uma resistência ao Outro, o sujeito não sucumbe completamente ao gozo do Outro, faz seu sintoma, trata sua angústia (que é sempre de castração) responde que "nem sim, nem não, nem muito pelo contrário", ele deixa algo para fora da significação e do entendimento desse outro, e assim tenta uma diferença, institui-se num enigma. Escolhe não escolher e faz sintoma porque precisa pagar o preço de não responsabilizar-se por seu gozo, ao mesmo tempo em que pretende veicular-se a partir de seus próprios termos, de sua verdade.

Para entrarmos mais diretamente na temática da escrita aponto a articulação que faço entre sintomas e escrita. Não aponto para sintomas de escrita, isto porque o termo sintomas na escrita institui uma posição: através dessa construção proponho a abordagem dos problemas que aparecem na escrita articulados à condição subjetiva que os institui. São sintomas do sujeito que se desdobram em sua relação com a escrita, um fato de linguagem.

O sintoma na escrita é, assim como qualquer outro sintoma, um fato de estrutura que tem a função, do ponto de vista do sujeito, de amarrar sua condição de subjetivação na medida em que faz uma resistência ao Outro. É um sintoma que serve como um tratamento à angustia, no sentido em que nos ajuda a suportar a incompletude do Outro, e por consequência, a impossibilidade de termos acesso ao que nos completaria.

Bem, ao atribuir esse lugar ao sintoma, imediatamente somos obrigados a nos perguntar de que modo incidimos sobre o que vai mal em nossas crianças. Quantos encaminhamentos para especialistas/técnicos não têm como objetivo extirpar o mal que acreditamos assolar nossos pequenos? Quantas vezes não escolhemos o confronto direto com o sintoma como "solução rápida" para velhos problemas?

Na clínica, diante de uma criança que não consegue ler ou escrever, não é suficiente pensar no que é relativo à funcionalidade da língua; é preciso ainda considerar as condições necessárias que sustentam a escolha – relativa ao sujeito do inconsciente – de uma articulação sintomática neste e não em outro ponto.

Sabemos que a alfabetização, alfabestização em termos lacanianos, supõe a alienação ao código como condição. Não aprendemos a ler e a escrever sem nos curvarmos ao arbitrário que está em jogo nesse sistema, que, como sabemos, tem seu funcionamento ancorado no simbólico.

Pois bem, alienar-se aqui é uma operação relativa aos termos da cultura. Temos que abrir mão de significações muito particulares, como por exemplo de tomar a letra S como uma minhoquinha, em prol de uma significação arbitrária e independente da nossa experiência. A alfabetização marca um ponto importante de articulação do sujeito ao discurso social: há uma ampliação radical no acesso aos termos do Outro. Há uma ampliação em jogo não somente dos termos da cultura como também de sua dinâmica.

Assim, começamos a responder a questão a respeito do que faria, do lado da criança, resistência ao submetimento à escrita. É como se pudéssemos dizer que uma criança que resiste à escrita, nesse movimento, nos deixa saber de que ordem é a questão relativa ao impedimento que constitui. Ela resiste à alienação, possivelmente porque não pode armar satisfatoriamente a separação necessária do que guarda seu lugar no desejo do Outro, mas não de qualquer Outro, do Outro primordial, encarnado. De acordo com Bergès e Balbo (2001), quando a criança passa para uma escrita que não seja desenho é porque ela parou de escrever sobre o corpo da mãe, é porque o suporte para seu texto mudou (p.29).

É nesse sentido que sustento a idéia de que a construção sintomática no nível do texto acontece porque o sujeito está submetido, sua movimentação está interrompida por um impedimento que se manifesta em sua relação com a língua. A escrita não pode encadear-se sem tropeçar porque o sujeito não pode se lançar, se deixar acontecer na movimentação significante. Trata-se de um não poder despregar o corpo próprio da forma do desejo do Outro (e portanto daquilo que lhe falta). Por outro lado, é pela via do sintoma que o sujeito vai tentar fazer diferença em relação a isso, ele vai dizer que sim, interrompe sua movimentação para não se afastar do sentido fechado que assume no campo do outro, mas também vai dizer que não, e nem muito pelo contrário! Vai escrever de um modo próprio, propõe a si numa articulação textual que não é coincidente com a norma culta, norma do Outro.

É por causa dessa última conjectura que acredito ser necessário que nos perguntemos sobre o modo de abordagem do sintoma no tratamento.

Aqui, então, encerro minha fala perguntando a vocês: o que seria "corrigir" a uma escrita? Cadernos de caligrafia? Exercícios motores? Reordenação de padrões cognitivos?

Muitas vezes, a correção é equivalente a destituição do recurso que o sujeito inventou para engendrar-se numa separação, e, fazer isso sem dar-lhe condição de armar essa separação por outra via não parece ser uma boa idéia.

Tratar a "dislexia" a revelia do sujeito que a instituiu é desconsiderar que esse sintoma cumpre alguma função na economia psíquica do sujeito. Incidir sobre ela de modo a corrigi-la, sem abrir condições para que o sujeito trate da condição psíquica que fundamentou o uso desse recurso, é certamente tirar do sujeito a armação que abre seu lugar no discurso. Incidir diretamente sobre um sintoma é desarmar o tratamento que o sujeito deu à sua angústia.

Isso não é qualquer coisa.

 

Referências bibliográficas

BERGÉS, J. E BALBO, G. A atualidade das teorias sexuais infantis. Porto Alegre: CMC Editora, 2001.

DE NEUTER, P. Do sintoma ao Sinthome. in: Dicionário de Psicanálise Freud & Lacan, pp. 247-258. Salvador: Agalma, 1997.

LEITE, M. Hipocondria de resultados: revista médica acusa indústria farmacêutica de fabricar moléstias para vender remédio. Folha de São Paulo, São Paulo, domingo, 23 de abril de 2006

MILLER, J-A. O sintoma como aparelho, in: O sintoma-charlatão. Textos reunidos pela Fundação do Campo Freudiano, p.9-21. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.

MELMAN, C. Verbete Sintoma. in: Kaufmann, P.(org.) Dicionário enciclopédico da psicanálise. O legado de Freud e Lacan. p.478 e 479. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,1996.