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 ISBN 978-85-60944-12-5

An 7 Col. LEPSI IP/FE-USP 2009

 

8/11 - COLÓQUIO-COMUNICAÇÕES LIVRES

 

Memória educativa e formação profissional a distancia: os (des)caminhos de uma escolha

 

 

Janaina Mota; Adriana Pereira Bomfim; Nastassja Silva Néto

Mestres em Educação pela Universidade de Brasília – UnB

 

 


RESUMO

Enquanto dispositivo de enunciação do sujeito, a produção da Memória Educativa revela-se matéria privilegiada para aqueles que têm a oportunidade de deparar-se com sua elaboração durante seu processo formativo, uma vez que esta corrobora a re-significação da práxis docente/ discente, seja no ensino presencial ou a distância. Considerando que a primeira modalidade de ensino constitui-se por uma formação triangular (professor-aluno-conhecimento) concebida em um cenário pedagógico tátil, no qual as relações pedagógicas aproximam-se pela presença do outro, reconhecemos que a segunda modalidade mencionada não desfaz a relação triádica existente no processo de ensino – aprendizagem, apenas denota a necessidade de se estabelecer estratégias distintas para uma possível transmissão do saber que propicie problematização e reflexão entre os sujeitos do processo. Com efeito, discutimos o quanto ambas têm oportunizado aos profissionais atuantes e/ ou em formação reflexões importantes a respeito da necessidade de re-significação da educação, escola, currículo, estudante, professor, avaliação, gestão escolar, e, principalmente, formação profissional. Inseridos no rol dessa formação, especificamente de professores, questionamos: o que leva um aluno a aperfeiçoar-se atravessando o desafio da modalidade de ensino a distância? Dessa forma, seria possível, através da análise da "Memória Educativa", caminharmos para o enfrentamento do fator "distância" nesta modalidade de ensino? A Memória Educativa seria um dispositivo relativizador da distância entre sujeitos (professor-aluno) de um processo educativo? Neste sentido, ressaltamos, neste processo de formação, os efeitos subjetivos que acabam por determinar o ato pedagógico e, a partir da teoria psicanalítica, a possível leitura das memórias educativas dos alunos de Licenciatura em Artes Visuais na modalidade a distância, ofertado pela Universidade Aberta do Brasil, buscamos compreender quais os (des) caminhos que os levaram a esta modalidade de ensino.

Palavras-Chave: Educação a distância, Psicanálise, Memória Educativa.


 

 

Situando a Memória Educativa enquanto dispositivo de pesquisa

Os estudos sobre a Memória Educativa têm, originalmente, a relevante contribuição do trabalho desenvolvido por Almeida e Rodrigues (1998), por meio do módulo - Imersão no Processo Educativo das Ciências e da Matemática, integrante do Programa de Aperfeiçoamento de Professores de Ensino Médio (pró-Ciências).

A fim de re-significar o processo de formação dos professores destas duas áreas do conhecimento, Almeida e Rodrigues (idem) criaram um Caderno de Estudos que considerava a articulação da trajetória de vida escolar dos educadores com sua experiência e prática docente.

Nesse estudo, os professores foram convidados a refletir e analisar sua prática educacional, por meio de dois momentos inter-relacionados: a sua prática docente como educadores (professores) e a sua memória educativa como educandos (alunos), com o objetivo de reflexão e aprofundamento teórico do fazer educativo (ibidem, p. 7).

De maneira específica, as autoras pretenderam que os professores se apropriassem da construção de suas identidades profissionais; uma vez que a elaboração da Memória Educativa, enquanto dispositivo, propunha uma viagem ao passado, através da sua trajetória como estudante (...) de tal forma que houvesse um resgate, na memória do tempo, episódios, situações, pessoas e processos dessa experiência vivida (ibidem, p. 12).

Esse processo de arqueologia caracterizou uma perspectiva de formação que leva em conta a dimensão histórica do sujeito como ponto de partida para a sua aprendizagem do pensamento científico. A história pessoal do sujeito-aluno resgatada transforma-se em ponto inicial do processo de construção e reconstrução da sua identidade de professor-educador. (ibidem, p. 13-14).

Kenski (1998) ressalta a importância das pesquisas que lançam mão da Memória Educativa como meio para estudar a influência de vivências anteriores dos professores em suas formas de ensinar (p.106). Neste sentido, o levantamento das experiências mais significativas da trajetória de vida escolar possibilita ao professor esclarecer sua postura profissional e pessoal, bem como considerar, para além da competência técnico-metodológica, a relevância de aspectos subjetivos no seu exercício profissional.

Freud (1914) ratifica esta afirmação, salientando que é difícil dizer se o que exerceu mais influência sobre nós e teve importância maior foi a nossa preocupação pelas ciências que nos eram ensinadas ou pela personalidade de nossos mestres (p.248). Na medida em que lembramos daquilo que vivemos, temos a oportunidade de re-significar a nossa trajetória e as marcas que ficaram guardadas por tanto tempo e sem, aparentemente, nenhum valor.

Vale lembrar que, durante a escrita da narrativa, não se tem uma visão fixa, estática, cristalizada dos acontecimentos que ocorreram no passado (...) pois é nesse momento que as lembranças deixam de ser memórias para tornarem-se histórias (Kenski, idem, p.109). E nessas histórias não apenas aquilo que é dito merece nossa atenção, mas, e, sobretudo, aquilo que aparece nas entrelinhas e revela os não-ditos, esquecimentos e silêncios.

Kenski (1998) assegura que a memória é, essencialmente, subjetiva, atemporal e a-histórica (p.311); ao recuperar as lembranças que marcaram a história de vida escolar, nem sempre é possível obedecer a uma ordem cronológica.

 

Educação a distância ou sem distância?

A memória educativa é também um importante dispositivo para a re-significação da práxis docente/discente. Enquanto dispositivo de enunciação do sujeito, sua produção torna-se matéria privilegiada para aqueles que têm a oportunidade de deparar-se com ela durante seu processo formativo, seja no ensino presencial ou a distância.

A primeira modalidade de ensino constitui-se por uma formação triangular (professor-aluno-conhecimento) concebida em um cenário pedagógico tátil, no qual as relações pedagógicas aproximam-se pela presença do outro. Todavia, devemos reconhecer que a segunda modalidade mencionada não desfaz a relação triádica existente no processo de ensino – aprendizagem, apenas denota a necessidade de se estabelecer estratégias distintas para uma possível transmissão do saber que propicie análise, problematização e reflexão entre os sujeitos ativos do processo. Quem sabe uma "mudança"?

[...] passei por várias mudanças de ensino. Antes era uma metodologia pouco construtiva, onde aluno aprendia decorando as formas. Hoje, retornando, encontrei salas de aulas reformadas; as atividades curriculares vão além das salas de aula; o professor e aluno estão abertos a diálogos; a tecnologia facilitando o aprendizado; família podendo se fazer presente. Percebo que, mesmo que a educação se prive em alguns setores, houve sim uma mudança significativa desde 1971 a 2008 , vendo hoje a oportunidade de estudar em Universidade Sem Distância.

(J. F., aluna de Teorias da Educação do Curso de Artes Visuais da UAB - 2008).

A Universidade mencionada no depoimento refere-se à Universidade Aberta do Brasil (UAB)I. Universidade a Distância ou Universidade sem Distância, como sugere a aluna neste trecho de sua memória educativa? Que sentido poderíamos extrair da expressão Universidade sem Distância?

Discussões acerca da modalidade de ensino a distância têm aumentado na última década, a partir do respaldo da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, 9.394/96, em seu artigo 80, como nos mostram os Referenciais de Qualidade para a Educação Superior a Distância (SEAD/MEC, 2007). As mesmas têm oportunizado aos profissionais atuantes reflexões importantes a respeito da necessidade de re-significação de alguns paradigmas que norteiam nossas compreensões relativas a educação, escola, currículo, estudante, professor, avaliação, gestão escolar, e, principalmente, formação profissional. Sua finalidade é capacitar professores da educação básica e levar o ensino superior, por meio de universidades federais, a municípios distantes, carentes e de difícil acesso, com cursos de graduação em licenciaturas e pedagogia.

Inseridos no rol da formação profissional, especificamente de professores, o que leva um aluno a aperfeiçoar-se atravessando o desafio da modalidade de ensino a distância? Da supracitada "Universidade a Distância", para a aproximada Universidade sem Distância: um limiar que não se estabelece a priori, mas sim em virtude da mediação que ocorre entre e através dos principais atores desse processo: professor e aluno.

Dessa forma, seria possível, através do dispositivo de análise "Memória Educativa", caminhar para o enfrentamento do fator "distância" na determinada modalidade de ensino? Ou seja, a Memória Educativa seria um dispositivo relativizador da distância entre sujeitos (professor-aluno) de um processo educativo?

Vejamos o quanto é possível "sentir" sensações semelhantes às que foram relatadas por uma aluna da disciplina Teorias da Educação, do curso de Artes Visuais (UAB/UnB), por meio do relato escrito:

Buscando sensações que me marcaram durante a infância foi possível lembrar de fatos, situações e sentimentos, como o fato de criar amigos imaginários para suprir a solidão de ser filha única, a sensação dolorida de arrancar espinhos e bichos-de-pé, que eu conseguia no sítio do meu avô e os choros e birras com minha mãe neste momento, o calor do fogão a lenha fazendo as comidas nas noites frias, de terço em louvor aos santos de junho, o encantamento ao ver a altura do Cristo Redentor e o sabor da água salgada, da água do mar (K. C. G. P., 2º Semestre do curso de Artes Visuais – UAB/UnB).

De acordo com Almeida (2002), no tocante à formação do professor e, essencialmente, à transmissão do conhecimento, sobressaem-se os efeitos subjetivos que acabam por determinar o seu ato pedagógico. Desse modo, a sua constituição como sujeito perpassa a sua atuação profissional e, assim, a memória educativa é um dispositivo de análise e reflexão do ato pedagógico no momento em que ocorre e constitui o sujeito que o vive.

No momento da produção da memória é possível resgatar episódios que marcaram e constituíram o sujeito e em uma leitura mais acurada emerge a possibilidade de uma reflexão acerca da própria atuação em sala de aula. Neste sentido, Almeida (2002):

A partir desta leitura, impôs-se um instigante e pretensioso pensamento, o de que a memória educativa, com inevitáveis limitações, também possa conduzir à revelação dos arcanos do sujeito-professor, analisar alguns enigmas quanto à sua infância, em especial a escolar e responder questões suscitadas quanto, por exemplo, ao papel desta infância-escolar em sua formação e/ou (de) formação, discutindo e encaminhando análises sobre diferenças que perpassam os memoriais, reveladoras, por exemplo, das relações de poder/autoridade constituídas na infância através de diferentes gerações e que marcam o perfil da autoridade pedagógica exercida pelo professor (p.02).

Contudo, a memória educativa também é um instrumento de reflexão para aqueles que ainda estão em formação e não tiveram oportunidade de estar em sala de aula vivenciando o ato pedagógico como professores, mas podem pensar em como aprenderam os caminhos e descaminhos percorridos em sua formação e de que maneira os mesmos poderão refletir sobre o seu fazer educativo.

Já na terceira série, eu lembro de ter carregado comigo esse medo de responder nas aulas, geralmente eu sabia todas as respostas e falava pra mim mesma baixinho, mas não tinha coragem de responder alto ao professor, até hoje vejo que isso é uma dificuldade para mim, e pensando nesse momento talvez esse fato do passado possa ter alguma relação com o que eu sou hoje. (...) Foi nesse ano que eu comecei a fazer desenhos de pessoas, eu era a melhor da sala, e todas as crianças queriam ver meus desenhos, ela me incentiva muito, e minha aula preferida era a de desenhar histórias. .(Relato da Memória Educativa de A. M., aluna do 2° semestre do Curso de Artes Visuais, UAB-UnB).

Como é possível observar no relato acima, o ato enunciativo proporcionado pelo exercício da escrita permitiu ao sujeito revelar sentimentos vividos ainda no ensino fundamental – como medo de se mostrar em sala de aula, falta de coragem para 'responder' aquilo que o professor deseja ouvir – e a persistência dos mesmos sentimentos ao confessar que até hoje isso é uma dificuldade.Neste instante, percebemos a inserção de um sujeito presente e em formação pessoal/profissional implicado na re-significação de experiências vividas anteriormente, permitindo que o mesmo faça uma reflexão ao relatar que talvez esse fato do passado possa ter alguma relação com o que 'eu' sou hoje.

De acordo com Nóvoa (1995), os momentos de balanço retrospectivo sobre os percursos pessoais e profissionais são momentos em que cada um produz a sua vida, o que no caso dos professores é também produzir a sua profissão (p.26). Aquilo que recuperamos quando investimos na tessitura e reflexão da trajetória educativa de educadores em formação, como é o caso dos alunos do Curso de Artes Visuais da UAB, pode, portanto, revelar o porquê de suas escolhas por um ou outro caminho profissional.

Ainda neste relato, podemos perceber a atuação do desejo no cenário educativo. É válido lembrar que tal desejo não é originário das experiências vividas neste cenário (pois sua fonte é originariamente sexual), mas, re-significado pelo contato com o outro, será veículo que introduzirá o sujeito a chegar a algum lugar.

Em "Inibição, Sintoma e Angústia" (1926), Freud relata que a angústia é um produto do desamparo mental da criança. Porém, esse desamparo não é dado desde o nascimento, mas sim à medida que se processa o seu desenvolvimento mental e durante um certo período da infância. Ao longo de sua trajetória de vida, o sujeito irá se deparar com experiências as quais permitirão a reminiscência de sentimentos infantis vividos com suas imagos parentais, permitindo, assim, que a angústia faça parte de suas reações.

Ainda de acordo com Freud (1917) as recordações da infância não devem ser desprezadas, pois aquilo que a memória preserva é o elemento mais significativo em todo o período de vida, quer houvesse tido tal importância na época, quer tivesse adquirido importância subseqüente por influência de eventos posteriores (p.160). As influências de nossos antigos mestres, por exemplo, acrescentam-se às marcas primordiais e podem revelar-se em nossas práticas atuais, como educadores.

O relato a seguir constata o que a teoria freudiana abordou em 1914 com tamanha maestria: que os caminhos das ciências transpassam e transbordam através da figura do mestre.

Nunca simpatizei com professores autoritários. É engraçado, que às vezes não lembramos a matéria dada, mas lembramos das características dos professores, sendo boas ou não. Se bem que acho que desenvolvi afetos por vários. (...). Demorei muito para perceber a importância da educação na minha vida.Chego a pensar que estou aqui por acaso, que o sistema é assim, nem parece que passei por tantas etapas.(Relato da Memória Educativa de N.P., aluna do 2° semestre do Curso de Artes Visuais, UAB-UnB).

As reflexões de Freud o levam às imagos parentais e a possibilidade de reconhecê-los nos professores e assim estabelecer o vinculo afetivo necessário para a transmissão do conhecimento. Conclui Freud que transferimos aos mestres o respeito, as expectativas atreladas aos pais e passamos a tratá-los como tratávamos os pais em casa.

Nesse sentido, ao afirmar que às vezes não lembramos a matéria dada, mas lembramos das características dos professores, o relato acima corrobora o pensamento freudiano elaborado em "Algumas reflexões sobre a psicologia escolar", de tal modo que ao relembrar o período escolar é possível ponderar as marcas deixadas e que insistem em comparecer no presente.

É difícil dizer se o que exerceu mais influência sobre nós e teve importância maior foi a nossa preocupação pelas ciências que nos eram ensinadas, ou pela personalidade de nossos mestres. É verdade, no mínimo, que esta segunda preocupação constituía uma corrente oculta e constante em todos nós e, para muitos, os caminhos das ciências passavam apenas através de nossos professores (1914, p. 161).

E continua, apresentando os efeitos do ato pedagógico e do encontro com alguns mestres marcantes em sua formação escolar:

E pareço relembrar que durante todo esse tempo, tinha a premonição de uma tarefa futura, até que esta encontrou expressão manifesta na minha redação de despedida da escola, como um desejo de que pudesse, no decurso de minha vida, contribuir com algo para o nosso conhecimento humano (p. 247).

Nesse ínterim, Lajonquière (2002) nos faz perceber que a relação professor-aluno, também à distância, é uma "via de mão dupla", trafegada pela transferência. A psicanálise traz a questão do que é ensinar (ensina-se por dever ao mestre) e do que é aprender (aprende-se por amor), bem como mostra que a relação entre o professor e o aluno, uma relação transferencial, estaria no cerne do que proporciona o aprendizado. E é graças à transferência aos professores dos sentimentos de submissão à autoridade, carinho ou agressividade, nutridos pelos pais, que o aluno pode acreditar no professor como autoridade que teria algo a lhe ensinar, ainda que não se saiba o quê.

...Lembro que teve uma pessoa especial, muito carinhosa que sempre me falava palavras bonitas e que acalmava, minha primeira professora. Sempre tive grandes professores, todos eles de alguma forma marcaram minha vida, cada um com seu jeitinho de ensinar. Lembro do nome de alguns, outros só da fisionomia, mas todos foram de grande importância na minha vida escolar.(...). Sempre me destaquei em aulas de arte, porque gostava e porque sempre tive grandes incentivadores, talvez por isso esteja fazendo essa faculdade, porque teve pessoas que perceberam em mim talvez "uma artista" e me motivaram. (Relato da Memória Educativa de D., aluna do 2° semestre do Curso de Artes Visuais, UAB-UnB)

 

Memória e Transferência a Distância?

Freud (1914) afirma que a aquisição do conhecimento depende da relação que o aluno tem com seus professores. Por meio das transformações da libido objetal e da libido narcísica, a criança vai assimilando os traços das pessoas a sua volta, o que torna suas as exigências dessas pessoas (p.282).Isto acontece, pois, durante o período de latência, os nossos mestres ou aquelas pessoas que exerceram esta função passam a ocupar o lugar que era exclusivo dos nossos pais.

No processo transferencial há uma atualização dos desejos inconscientes com determinados objetos, a partir das relações estabelecidas entre o professor e o aluno. O que se transfere são as experiências vivenciadas, especialmente com os genitores, agora atualizadas na relação professor-aluno.

Laplanche e Pontalis (2008) afirmam que aquilo que é transferido são os patterns de comportamento, tipos de relações de objeto, sentimentos positivos ou negativos, afetos, carga libidinal, fantasias, conjunto de uma imago ou traço particular desta (p.515).

Já na primeira série as tarefas eram muitas, lembro que a "Tia M. I." era muito exigente. Alem das apostilas tínhamos dois cadernos o "caderninho" que era para cópias e ditados e o meu tão amado "cadernão" um caderno de poesias e desenho (...). No segundo ano primário tive que trocar mais uma vez de colégio. Minha professora a "tia Zoraide" era muito brava e puxava o cabelo de quem não soubesse a tabuada, ela era daquelas professoras antigas. Sempre tive tudo na ponta da língua, pois morria de medo.(Relato da Memória Educativa de B.R., aluna do 2° semestre do Curso de Artes Visuais, UAB-UnB).

Isto posto, podemos afirmar que o uso da memória educativa nos cursos de formação de professores revela-se um instrumento valiosíssimo para a reflexão de como aprendemos e o de que maneira ensinaremos. Pois, são os mestres da infância que repetiremos no cenário pedagógico com os alunos.

Hoje tento mudar aquilo que eu não gostava que acontecia comigo, como por exemplo, gosto de aulas mais dinâmicas, ter relação mais amigável e afetiva com os alunos, e principalmente no caso de crianças ensinar brincando, cantando e dançando, isto eu faço hoje com eles e são coisas que eu nunca tive na escola e que em poucos lugar se tem. . (Relato da Memória Educativa de M., aluna do 2° semestre do Curso de Artes Visuais, UAB-UnB)

O ato de narrar as trajetórias de vida e formação docente, por meio da Memória Educativa, parece possibilitar o desvelamento de alguns modelos e princípios que conduzem os discursos e práticas pedagógicas atuais, especialmente em relação a que profissional se deseja ser.

Reconhecer-se enquanto profissional em constituição; talvez seja este o maior benefício da escrita da Memória Educativa para educadores em formação a distância ou sem distância. Os caminhos por que passa o educador em busca da construção da sua identidade profissional parecem tomar contorno quando se retomam os acontecimentos antes esquecidos ou simplesmente ignorados.

Novamente Freud (1893) contribui para esta discussão em "Lembranças encobridoras" quando diz que as lembranças infantis são tudo que possuímos, contudo, não são fidedignas ao que realmente foram, mas, tal como foram despertadas posteriormente, e assim não emergem, no entanto, se formam por diversos motivos sem preocupação com a cronologia dos fatos e com a seleção das lembranças. Dessa maneira, as memórias dos alunos de sua jornada escolar possibilitam o entendimento das escolhas feitas e dos caminhos traçados.

...Agora vou falar de como eu fui alfabetizada, isto é, que aprendi a ler...Meu pai era analfabeto e minhas irmãs mais velhas trabalhavam na cidade e as patroas delas dava livros e revista para elas (fotonovelas), meu pai pegava as revistas e começava a folhear e pedia para eu ler para ele (eu tinha uns 5 anos) como eu não sabia ler ainda, inventava as historias, às vezes ele falava "isso não tá escrito ai não",depois comecei juntar as letras e formar palavras.A leitura foi espontânea para mim.Fui para escola com seis anos e já sabia ler.(...). Para falar a verdade a escola não era nem um pouco importante para mim eu não me lembro nem de professores nem de colegas, da primeira ate a quarta série me deu um branco total. Eu amava minha casa meu pai e minhas irmãs eram bem mais importantes para mim. (Relato da Memória Educativa de A., aluna do 2° semestre do Curso de Artes Visuais, UAB-UnB)

 

Os (des) caminhos da escolha

A proposta da escrita dessa memória não é de modo algum o oferecimento de algum tratamento terapêutico ou de análise do sujeito, mas uma proposta de conjuntamente, professor e aluno, ao ler e reler a memória educativa, reflexionar sobre a futura (ou atual) prática docente. Ao professor cabe instigar o aluno a perceber seus caminhos e descaminhos educacionais, como sua jornada escolar o afetou e influenciou em suas escolhas profissionais e quiçá pessoais, assim sendo, que o aluno busque identificar seus mestres e re-elaborar suas práticas pedagógicas.

Na busca por esta reflexão o foco deste trabalho recai sobre a escolha da modalidade do ensino a distância e qual o impacto dessa escolha na vida profissional desses futuros docentes.

"Terminei o ensino médio, e a possibilidade de ingresso na faculdade era muito remota, pois naquela época não existia tantas facilidades para alguém sem condições financeiras. Por força da necessidade de ajudar nas despesas de casa, me afastei dos estudos por vinte e sete anos, voltando agora, diante dessa oportunidade de estudar à distância. As dificuldades ainda existem, em relação ao tempo disponível para estudar, mas o desejo de vencer supera os empecilhos, e meu agora parece mais próximo de ser realizado." (M.C.S.) 2º Semestre do curso de Artes Visuais – UAB/UnB).

Na maioria dos relatos dos alunos, deste curso a distância, fica claro o desejo latente de ser professor, apesar das muitas dificuldades e impedimentos no decorrer da sua trajetória de formação.

Nasci numa vila pequena comarca de uma cidadezinha em Minas Gerais, lá vivi até os quatro anos de idade...Nossa casa era... muito simples, tínhamos de tirar água do poço, tomar banho de chuveiro manual, não tinha energia era lamparina, à noite dormíamos cedo, nos fins de semana ficávamos acordados até mais tarde sentados na frente da casa ouvindo estórias dos mais velhos, quase sempre histórias de assombrações. (...).Fazia recuperação nos sábados de leitura e assim superei minha dificuldade na leitura, mas até hoje não gosto muito de ler para um público grande não, sou de falar no improviso, explicar o que sei e entendo e do assunto que domino...(...).Comecei a ter experiência como professora logo no primeiro ano de magistério, como era uma boa aluna comecei a substituir professoras sem remuneração, só como estágio e experiência.Essa que me fez seguir com dedicação a profissão e amá-la.(...). Apesar de ter passado por muitas dificuldades na vida nunca desisti de ser uma professora. (Relato da Memória Educativa de A . J., aluna do 2° semestre do Curso de Artes Visuais, UAB-UnB)

Em toda investigação psicanalítica da história de uma vida, diz Freud (1917), é possível compreender o significado das lembranças da primeira infância ao longo de suas linhas. De fato acontece, habitualmente, que a própria recordação à qual o paciente dá precedência, aquela que relata em primeiro lugar, com a qual introduz a história da sua vida, vem a ser a mais importante, a única que contém a chave das páginas secretas da sua mente.

...a educação é minha vida, e ensinar realmente é o meu caminho, gosto do que faço e me dedico em meu trabalho, para que meus alunos possam ter as melhores oportunidades na vida.(...).Eu vim de uma família pobre e consegui tudo que tenho e que sou hoje com esforço e estudo e sei que para vencer na vida o estudo sempre está em primeiro lugar, por isso tento fazer para eles o que alguns professores fizeram para mim, me motivar a aprender sempre!(...).Vejo que tudo que sou hoje tem um pouco de cada professor e cada pessoa que passou na minha vida. (Relato da Memória Educativa de C.R., aluna do 2° semestre do Curso de Artes Visuais, UAB-UnB)

Percebe-se, na leitura das Memórias dos educadores em formação seu esforço para a conquista de um lugar diferente daquele ocupado por seus pais ou familiares. Neste sentido, a modalidade de ensino a distância revela-se um facilitador do processo de conquista dos ideais profissionais, uma vez que possibilita a adequação aos horários de trabalho, às distâncias dos centros de capacitação, dentre outros fatores que alimentam o desejo de mudança e de pertencimento a um lugar socialmente reconhecido.

A Educação a distância, de acordo com Locatelli (et alli, 2008), proporciona um processo de formação e interação sujeito-sujeito, diferente da proposta tradicional de concepção da sala de aula. O professor perde, portanto, aquela imagem de detentor do conhecimento e passa a ter uma função de mediador. O aluno não é mais o sujeito que absorve, ele pode interagir com o objeto de estudo, buscar informações, construir sua autonomia (p.7).

A Memória Educativa revela-se um dispositivo de aproximação desta distância entre professor e aluno, especialmente porque se percebe o quanto das marcas das histórias de vida pessoal interfere em suas escolhas e práticas profissionais, tanto de um, quanto de outro.

A escrita da Memória, possível a ambos os sujeitos, aponta para "coincidências" em seu processo formativo. As lembranças dos mestres do passado e de sua influência no fazer educativo atual é um exemplo disso. Ambos, professor e aluno, embora ocupando posições diferentes, sentem-se extremamente íntimos pela via de acesso à trajetória de suas constituições, que a escrita da Memória Educativa lhes possibilita.

Neste sentido, o que as memórias educativas de nossos alunos enunciam em relação à opção pela modalidade de educação a distância? A "suposta" distância, dos cursos ofertados pela UAB, acaba aproximando os percursos de formação e de constituição profissional de professor e aluno, fazendo convergir, em muitos momentos, os caminhos subjetivos e inconscientes inerentes ao ato educativo dos quais nem um, nem outro pode escapar, seja qual for a sua modalidade de escolha formativa.

 

Referências

ALMEIDA, Inês Maria Z. P. de.; RODRIGUES, Maria Alexandra M. (1998). Imersão no Processo Educativo das Ciências e da Matemática. Módulo Comum. Programa de aperfeiçoamento de Professores de Ensino Médio (Pró-Ciências). Brasília, UNAB (Universidade Aberta do Distrito Federal), 41p. MEC/CAPES/FAPDF/UNAB – SE- GDF.

Freud, S. (1893). Lembranças Encobridoras. Primeiras publicações psicanalíticas. Obras completas. Vol. III. Rio de Janeiro, RJ: Imago, 1996.

___________ (1914). Algumas reflexões sobre a psicologia escolar. Totem e Tabu e outros trabalhos. Obras completas. Vol. XIII. Rio de Janeiro, RJ: Imago, 1996.

___________ (1917). Uma recordação da infância de Goethe. In: Edição Eletrônica Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Vol. XVII. Rio de Janeiro, RJ: Imago, 1969. Disponível em CD-ROM.

___________ (1926). Inibição, Sintoma e Angústia. In: Edição Eletrônica Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Vol. XX. Rio de Janeiro, RJ: Imago, 1969. Disponível em CD-ROM.

KENSKI, Vani Moreira. (1998) Práticas Interdisciplinares de Pesquisa. In: R.V. Serbino (org.). Formação de Professores. São Paulo: UNESP, p.309-320.

LAJONQUIÈRE, Leandro de. (2002). Infância e ilusão (psico) pedagógica: escritos de psicanálise e educação. Petrópolis, RJ: Vozes.

LAPLANCHE, Jean & PONTALIS, Jean-Bertrand (2008). Vocabulário da Psicanálise. São Paulo: Martins Fontes.

NÓVOA, António.(coord.). (1995). Os professores e sua formação. Lisboa: Dom Quixote.

 

Documentos Eletrônicos

ALMEIDA, Inês Maria Marques Zanforlin Pires de. O Ser infante e o Ser professor na memória educativa escolar. In: COLOQUIO DO LEPSI IP/FE-USP, 4., 2002, São Paulo. Anais eletrônicos. Disponível: em: http://www.proceedings.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=MSC0000000032002000400011&lng=pt&nrm=abn>. Acesso em: 31 Out. 2008.

TREIN, D. ; LOCATELLI, E. L. ; SCHLEMMER, E. Formação Docente em e para EaD. In: 14o. Congresso Internacional ABED de Educação a Distância, 2008, Santos SP. 14o. Congresso Internacional ABED de Educação a Distância, 2008.

 

 

I Sistema de Educação a Distância oriundo da parceria Ministério da Educação (MEC) e Universidade de Brasília (UnB) que tem como principal objetivo interiorizar a formação de nível superior no país.