7Psicólogo costurando com educador a rede do desejo da criançaTGD, TID, TDAH, TDO, TOC ... será que educamos melhor com os diagnósticos ? author indexsubject indexsearch form
Home Pagealphabetic event listing  




 ISBN 978-85-60944-12-5

An 7 Col. LEPSI IP/FE-USP 2009

 

8/11 - COLÓQUIO-COMUNICAÇÕES LIVRES

 

Um psiquismo para dois na psicose: a escola e a psicoterapia como interdição1

 

 

Katia BrasilI; Deise Matos do AmparoII; Fernanda FontouraIII; Lana WolffIII; Leon MurelliIII

IProfessora do Curso de Psicologia e do Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Católica de Brasília. katia@ucb.br
IIProfessora do Curso de Psicologia e do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Católica de Brasília. deise@ucb.br
IIIGraduandos do Curso de Psicologia. Alunos de Iniciação Científica e de Estágio Supervisionado da Universidade Católica de Brasília. fernandafontoura.r@gmail.com

 

 


RESUMO

Este trabalho tem como objetivo abordar a relação mãe-filho em um caso de psicose no qual a escola e a psicoterapia têm um efeito interditor da simbiose e da colagem psíquica. A dificuldade de separação da díade, nos atendimentos clínicos e na avaliação, realizada com o método de Rorschach, aponta para a existência de um fantasma fusional pré-genital, um psiquismo-para-dois. Discute-se nesse trabalho fragmentos das sessões de psicoterapia da mãe e dados do Rorschach da mãe e do adolescente diagnosticado como psicótico. Na psicoterapia, a repetição fusional ocorre pela via da transferência e a simbiose mãe-filho comparece nas atuações da paciente no setting terapêutico, o corpo fusionado surge concretamente, denotando a dificuldade de realização da mediação simbólica. No Rorschach da mãe fica caracterizado o comprometimento psíquico, pelos seguintes sinais: auto-referência, depressão, concretização do pensamento, instabilidade do humor, dificuldade de diferenciação e de constituição da identidade corporal. O Rorschach do adolescente apresenta: contato com a realidade precário; mundo externo percebido como ameaçador, persecutório e destrutivo; sinais de fragilidade do controle afetivo; pouco domínio dos impulsos e, tendência à passagem ao ato. A análise qualitativa da prancha materna evidencia elementos fusionais, desvitalização e conteúdos mórbidos. Diante da natureza fusional do vínculo, as possibilidades de distanciamento e separação entre mãe e filho se fazem pela via do espaço escolar e psicoterapêutico. Nesse sentido, as ambivalências do investimento da mãe na escolarização do filho denunciam a temida filiação simbólica do adolescente com a instituição escolar e a psicoterapia permite à mãe a construção de um contorno corporal e psíquico que dão sentido à vida pulsional. A tentativa concreta da mãe em demolir o espaço psicoterápico e escolar, como função de interdição da relação fusional com o filho, denota que a separação e a diferença são temidas, pois ameaçam a (in)divisão essencial para sobrevivência psíquica de ambos.

Palavras-chave: simbiose, escola, psicoterapia


 

 

A relação mãe-filho e a simbiose

Será abordada neste trabalho a problemática relacional mãe-filho, na psicose, analisando o modo como o conflito simbiose e separação marcam esta relação e como este conflito pode ser identificado por meio do método de Rorschach, bem como nos atendimentos psicoterápicos da mãe e nas dificuldades de inserir seu filho na escola.

Diante da psicose de um filho, o cuidado materno é solicitado na sua forma mais radical. Freud (1972) destacou que a relação mãe-bebê se revela como protótipo de qualquer relação de cuidado e que o modo como a mãe se ocupa do seu bebê é marcado pelo lugar que este filho ocupa no seu inconsciente, assim, as primeiras relações de cuidado deixam para o sujeito pistas dos desejos e conflitos do inconsciente materno.

A relação mãe-filho é descrita por Laplanche (1992) como fundamental e é marcada pela situação originária na qual o recém-nascido confronta-se com o mundo adulto num estado de desajuda ou hilflosigkeit. Esse é um estado em que a criança não é capaz de ajudar-se para suprir suas necessidades básicas de sobrevivência, nem de atuar em reações de medo, precisando de um adulto que o resgate de seu desamparo.

Nesse investimento, de cuidados cotidianos e de contatos físicos que a mãe tem com seu bebê, ela revive emoções passadas e transmite nesta relação partes de conteúdos inconscientes das falhas e das gratificações das suas primeiras relações (GOLSE; BYDLOWSKI, 2002). Nesse processo de reviver emoções do passado são tocadas as partes mais frágeis do inconsciente da mãe que estariam "obscuras" até o nascimento do bebê. Portanto, é através do mecanismo de identificação regressiva que muitas vezes há um desejo inconsciente da mãe em colocar-se no lugar do bebê, seja para compensá-lo no que lhe faltou ou para reparar suas experiências mais decepcionantes. Mas, ao mesmo tempo em que esse processo acontece, há um desejo da mãe de evitar ou de proteger-se daquilo que vem do bebê e que mais a mobiliza. Esse modo de relação certamente intranqüilo, marca a ambivalência como algo inevitável na díade mãe-bebê.

Em relação à identificação regressiva Aragão (2004) aponta-nos que a mãe projeta no bebê-objeto os conteúdos psíquicos inconscientes e possibilita uma via de comunicação inconsciente com o bebê. A comunicação da díade é marcada por uma tarefa materna necessária, mas em si mesma contraditória que seria segundo Deutsch (1951) a tarefa de construir uma unidade harmônica com o filho, mas dissolvê-la harmonicamente em um período posterior. Portanto, é a partir de uma contradição fundamental que a relação mãe-filho se constitui, a saber, é preciso uma união simbiótica, em que o bebê percebe seu corpo como um prolongamento e extensão do corpo da mãe para posteriormente separa-se deste. Esse processo simbiótico, no entanto, é de extrema importância para o bom desenvolvimento da criança, que tão logo terá possibilidades de crescimento, individuação e independência da figura materna (WINNICOTT, 2006).

O conceito de simbiose originou-se na biologia apontando a associação duradoura e proveitosa de organismos vivos. Nesse sentido, Laplanche (1992) nos convoca a pensar a associação simbiótica aplicada à subjetividade da relação mãe e filho. Para esse autor a associação duradoura e benéfica no plano da autoconservação de dois organismos vivos, como apontada pela biologia, torna-se, por vezes, duvidosa quando aplicada à relação mãe-bebê. Nessa relação, a fusão elimina a angústia da separação, da individuação e da autoconsciência, mas o faz à custa da dificuldade em que criança a trilhará para se constituir como um sujeito gerando, em seu lugar, o objeto aglutinado.

O objeto aglutinado se refere às mais primitivas fases do desenvolvimento, em que não há diferenciação nem discriminação entre eu e não-eu. Esse objeto resulta da relação mãe-bebê, que é sustentada numa vinculação simbiótica. O vínculo simbiótico demarca uma relação condensada de elementos complexos e contraditórios, que precisam ser discriminados para que possam ser reintrojetadas e elaboradas (BLEGER, 1988). Desse modo, no vínculo simbiótico há uma perda significativa da personificação, dos sentimentos de identidade e da experiência corporal.

Na psicose, a experiência corporal e o sentimento de identidade se relacionam ao investimento materno sobre o corpo do filho, corpo este vivido como um acréscimo ao seu próprio corpo. Este modo de vinculação mãe-filho ocorre pela via da simbiose e da não-diferenciação. Em outras palavras, durante a gestação, há uma impossibilidade da mãe em criar uma representação imaginária da criança que abriga em seu ventre, e "a relação parece se dar entre a mãe e essa massa em seu próprio interior, uma espécie de enchimento corporal, de órgão justaposto que, nela e graças a ela, se desenvolve" (AULAGNIER, 1991, p. 60).

Esse modo de vinculação durante o período da gestação se materializa após o nascimento, quando o estado de dependência fisiológica em que se encontra o bebê concretiza o desejo materno de autoridade absoluta sobre o objeto tornando o corpo real da criança apenas uma testemunha acerca da excelência e onipotência da função materna, reforçando assim o seu ideal (AULAGNIER, 1991).

A mãe é, em primeiro lugar, quem exercita a função de pensar para o filho, todavia havendo ausência de diferenciação na relação mãe-filho, mantém-se uma simbiose que denuncia uma vida psíquica para dois. Frente às ameaças de distinção entre o corpo próprio e o corpo materno o sujeito tende a buscar o meio intra-uterino perdido, por sua vez, a mãe responde ao desejo de seu infante. Há aí uma matriz somatopsíquica que necessita de diferenciação para o desenvolvimento da psique infantil e, todo fracasso nesse processo fundamental irá comprometer a capacidade da criança de integrar e de reconhecer como próprios, seu corpo, seus pensamentos, e seus afetos (MCDOUGALL, 1987).

 

A psicose no método de Rorschach

O método de Rorschach é uma técnica projetiva que pode ter seus dados analisados a partir da compreensão de eixos psicanalíticos, buscando os aspectos estruturais e psicodinâmicos do funcionamento psíquico. Essa análise dinâmica permite a investigação da natureza do funcionamento psicótico trazendo elementos para discutir o que se passa no vínculo mãe-filho (CHABERT, 1983; RAUSCH de TRAUBENBERG & BOIZOU, 1977).

Considerando o contexto da psicose propriamente dito, Chabert (1987) analisa: o conteúdo, o processo associativo, as cinestesias e as significações latentes da lâmina, investigando, em uma linha psicanalítica, as características do funcionamento psicótico do pensar. A autora sinaliza que a impossibilidade de identificar um objeto separado enquanto entidade distinta do outro é sustentada pela relação de englobamento com o seu primeiro objeto. Alguns índices do Rorschach demarcam essa tendência de englobamento e indiferenciação: a forte tendência ao nivelamento, pela indiferenciação figura-fundo, que caracteriza os processos cognitivos; a falta de diferenciação que se associa à falta de garantia dos limites sujeito/objeto e a perseveração, colocando em acento a perda do intercâmbio com o mundo exterior. Esses três índices podem ser interpretados em termos das dificuldades de representação da separação e da diferença nos psicóticos. Na proposição da autora, efetiva-se na psicose uma "colagem" entre o corpo e o psiquismo impedindo que os processos de pensamento sirvam para a organização dos conteúdos fantasmáticos relacionados à vivência do corpo próprio e do universo relacional.

É interessante destacar que muitos dos indicadores apontados como próprios do Rorschach de psicóticos, comparecem nos protocolos das mães desses pacientes muito embora clinicamente elas não apresentem um quadro psicótico francamente dissociativo. Esse aspecto indica a dificuldade de estabelecimento da distinção dentro-fora, sujeito objeto e da integração da imagem corporal, aspectos estes que contribuem para a impressão de colagem psíquica presente na clínica e observada na relação mãe-filho na psicose. Diante desse fantasma de fusão o atendimento clínico psicoterápico deve construir espaços possíveis de interdição à colagem psíquica entre mãe e filho.

 

O setting psicoterápico e a instituição escolar como um terceiro na díade mãe-filho

O desafio de acompanhar em psicoterapia uma mãe que vive com seu filho psicótico uma colagem psíquica é ajudá-la a separar-se deste sem que ela tenha a sensação de ameaça de morte e de destruição. Isso significa oferecer pela via do setting psicoterápico, um espaço de proteção dos contornos do corpo dessa mãe que é permanentemente invadido pelo corpo do filho. Contudo, tal espaço não está livre do mesmo movimento inconsciente que essa mãe estabelece com seu filho, assim, no setting psicoterápico ocorre uma regressão que implica na reativação do objeto aglutinado e que marcará o modo de relação transferencial. Nesse sentido, a interdição no setting psicoterápico se dará pela separação entre o corpo do analista e o corpo do paciente, tendo em vista que a separação do analista exige do paciente a elaboração lenta e progressiva da relação simbiótica e do objeto aglutinado, que é o modo privilegiado de relação com o objeto (BLEGER, 1988).

Em relação à escolarização, as políticas educativas recomendam a inclusão de crianças e adolescentes psicóticos nas classes regulares, contudo, entende-se que dependendo do modo como o conflito simbiose/separação encontra-se estabelecido entre a díade mãe-filho, ir e permanecer na escola pode não se arquitetar num caminho fácil de ser percorrido e estabelecido. Com o ensino obrigatório para todas as crianças, a escola constituiu-se como um lugar social, de modo que "nossa criança moderna é, por definição escolar" (KUPFER, 2000, p. 42).

A inclusão da criança psicótica apesar de desejável, não é um caminho fácil, Jerusalinsky (2007), destaca que um dos aspectos, que em geral, dificulta o processo de ensino aprendizagem dessas crianças é que elas não têm a curiosidade primordial, apontada por Freud (1973, apud Jerusalinsky 2007) como o fator que inspira a inquietação cognoscente e que convocaria os recursos inteligíveis empregados à aprendizagem. Entretanto, Jerusalinsky (2007) argumenta que essa curiosidade pode ser promovida, mesmo que parcialmente, de modo a favorecer e permitir a aprendizagem dessa criança, além de possibilitar a construção de caminhos em direção à simbolização e o resgate da dimensão da ordem social.

A seguir, apresentaremos o caso clínico da mãe de um adolescente psicótico atendida em psicoterapia na clínica-escola da Universidade Católica de Brasília. A paciente e seu filho passaram por uma avaliação psicodiagnóstica, que dentre outros métodos, utilizou-se o teste projetivo de Rorschach.

 

Simone e Aquis: um corpo e um psiquismo para dois

Simone, uma mulher de 40 se apresentou para o primeiro encontro com o psicoterapeuta e descreveu os cuidados zelosos que dispensava a seu filho mais velho, um adolescente psicótico chamado Aquis . Outros atendimentos se seguiram e Simone relatou a gravidez conturbada e sofrida de Aquis, tendo em vista a feroz oposição de seu marido em relação a sua gestação, pois ele já tinha dois outros filhos de um relacionamento anterior. Ao contrário do marido, Simone desejava imensamente este filho e idealizou ser para ele, uma mãe carinhosa e protetora. Assim, para um filho especialmente desejado, Simone buscou um nome típico da nobreza, o nome de um rei da bíblia: Aquis.

Simone dedicava-se durante o dia a seu bebê, e a noite também não se separava dele, tanto assim, que Aquis dormiu no quarto de seus pais até completar seis anos. Neste período, por insistência do pai, Aquis passou a freqüentar uma pré-escola e a dormir em seu próprio quarto. Todavia, a rotina de separação para ir a escola era sofrida para Aquis e sua mãe. Além disso, as dificuldades de relacionamento com os colegas da escola e com a professora foram se evidenciando. Preocupada com a solidão de Aquis, Simone teve mais dois filhos: Caio e Carla. Na nova configuração familiar, o comportamento violento de Aquis se agravou e, aos 10 anos ele apresentou um episódio de surto psicótico.

Diante desta situação, Simone raríssimas vezes o levava a escola e, quando o fazia, Aquis somente ficava na sala de aula caso ela permanecesse a seu lado. Vale destacar que, raramente o pai se envolvia com os cuidados aos filhos e, quando Aquis estava em surto, seu pai dizia "prefiro ver meu filho morto do que louco". Ameaçada pela fala do marido, Simone avigorava ainda mais o vínculo simbiótico com seu filho e o expressou na seguinte metáfora: "se eu pudesse, eu colocava ele (Aquis) num buraco bem fundo pra proteger ele do pai".

 

O Rorschach de Simone

Na avaliação psicodiagnóstica por meio do Rorschach Simone apresentou indicadores de dissociação do pensamento, com dificuldade de organização lógica e de apoio nos recursos intelectuais (A% = 5%; F% = 16; F+ = 0). A tendência à concretização percebida nas sessões psicoterápicas foi corroborada no Rorschach evidenciando a dificuldade de construir processos abstrativos, apegando-se de maneira hiperconcreta à realidade (D% = 66%; G = 22%, concretização = Pr. III e V).

No que se refere ao contato com a realidade circundante, Simone interage de forma extratensiva (K:C = 4:6), com uma tendência à fundir-se com o mundo exterior, de forma a tornar indiscriminado o limite entre si e o outro. Apresentou-se, durante toda a aplicação do teste, auto-referente e com baixa consciência de interpretação, o que dificultava sua relação com a realidade (Auto-referência = Pr. II, III, IV, V, VI, VII, VIII, IX, X; anulação da consciência de interpretação = Pr. II e VII). Esta confusão de si com o meio externo comparece de forma exemplar na prancha II: "Um buraco negro querendo me puxar. Querendo me pegar lá pra dentro. Um buraco querendo me puxar e eu tô com gastura dele. Ele quer me puxar. Um buraco, ele quer me puxar".

No teste, priorizava o contato humano, mas em um modelo simbiótico e auto-referente, (H% = 55%; Idéia de fusão, ligação = Pr. I). Um bom exemplo disso foi a resposta apresentada na prancha I: "Eu vejo dois querubins, um pertinho do outro, com as asinhas coladinhas, bem juntinho um do outro". Outro elemento identificado foi o controle sobre seus afetos, que era instável e imaturo, marcado pelo modelo de dependência (ΣC: ΣE = 6:1,5; FC: CF + C = 0: 4). Manifestava ainda sinais da presença de afetos depressivos e angústia disfórica (Clob = 1, C' = 2 [C' = 2]).

 

O Rorschach de Aquis

Aquis apresentava baixa capacidade produtiva, o que pode indicar pobreza intelectual e defesa paranóide (R = 10(1)). O pensamento encontrava-se lentificado e com falhas nos processos lógicos, sugerindo estado psicótico pela presença das alterações de pensamento. Pelo modo como Aquis percebia as pranchas, através de globalizações confabulatórias, denotando as falhas no contato com a realidade e na organização do pensar (T/R= 2'07"; F+% = 0; F% = 0, Perseveração: II, VI, VIII, Combinação Confabulatória II, III, V, VII ; DG = 7).

Para esse adolescente o contato com a realidade estava muito prejudicado (D% = 0, I.R = 1 = Hipoplástico, repostas originais=7, Ban[1]). As percepções do meio externo eram realizadas através de abstrações regressivas. Ou seja, a realidade em que vivia era a virtual, apresentando contato mínimo com o concreto (G% = 100).

Aquis apresentava fraco controle dos impulsos e emoções, com tendência à passagem ao ato (F% = 0; Combinação Confabulatória II, III, V, VII; ΣC:ΣE = 4,5:3,5), com indicadores de angústia disfórica e de fragmentação, irritabilidade e agressividade que poderia ser autodirigida ou dirigida aos outros (FC:CF+C = 0:4(sec); índice de angústia = 40%; choque ao vermelho III, conteúdo mórbido II, III, VI, VII, VIII; Clob=3, conteúdo sinistro I, II, IV, V, VI, IX). O relacionamento com o mundo era percebido por Aquis de forma ameaçadora, persecutória e destrutiva, como exemplificado na Pr. I: "E ele é muito mau, só de olhar pro rosto dele, pro queixo e pras duas bocas, mostra que ele é muito é muito malvado. Quer comer qualquer um com os dentes feios dele."

Sua personalidade abrangia traços depressivos (desvitalização VII, VIII; conteúdo mórbido II, III, VI, VII, VIII) que podem estar relacionados com uma perturbação na relação materna expressa por um intenso sentimento de destruição, tendendo à desvitalização: "as pessoas que tavam lá, os animais, todo aquele belo plantio que Jerusalém tinha foi tudo destruído, tudo lá, por esse fogo, tudo" (prancha VII – prancha materna). Nessa mesma resposta encontrava-se uma representação dessa relação entre mãe e filho sem limites, destrutiva e invasiva que remetiam ao modelo fusional, identificando-se como frágil e vulnerável a uma força avassaladora: "Aqui veio uma enchente de água muito forte e começou a derrubar todos os muros que protegiam Jerusalém e nem os muros agüentaram com a força da água. A água veio muito forte e atingiu todas as pessoas e começou a devorar tudo que tinha pela frente".

 

Discussão

Aquis foi o filho escolhido pela mãe e diferenciado dos demais desde a escolha do nome próprio, portanto, este adolescente teve com sua mãe uma relação de complementaridade narcísica fortemente constituída. Tanto assim, que Aquis frequentemente manifestava em suas alucinações conteúdos de volta ao meio intra-uterino. Sob esse sinal incide o desejo e a necessidade da mãe ligar-se ainda mais em simbiose com seu filho. Pankow (1977) enuncia que a dificuldade no estabelecimento de mediações simbólicas – leis de regulação que determinam a distância entre o corpo da mãe e da criança – promoveriam a emergência de mecanismos patogênicos em famílias de psicóticos, determinando, pela insuficiência da lei, a dissociação dos processos simbólicos e por conseqüência, da imagem do corpo.

A separação tem pouca consistência para Aquis e sua mãe, de modo que este adolescente não consegue sair da sedução – protetora e mortífera – do corpo materno. Nas ilustrações de simbiose patológica dadas por Pankow (1977), a autora explica como o meio familiar, sobretudo a mãe de psicóticos, tem necessidade do corpo da criança para completar seu próprio corpo e se assegurar da sua pele numa ligação simbiótica. O aspecto característico da simbiose patológica, e que a distingue da simbiose normal, é que a relação fusional é investida em grande parte de energia destrutiva.

As sessões psicoterápicas de Simone se tornaram os únicos momentos em que ela se separava de Aquis e, mesmo que inicialmente ela tenha se mostrado angustiada quanto a esta separação, Simone conseguiu pouco a pouco deixar seu filho aos cuidados de uma vizinha para comparecer às sessões pontualmente.

A escola era outro espaço de separação para Aquis e sua mãe, contudo, era percebida também por ambos como um espaço ameaçador. Aquis, por sua vez, somente aceitava ir à escola caso a mãe lá permanecesse com ele, o que significava na prática a manutenção da simbiose no espaço escolar. Um ponto importante a ser destacado, é que este impasse foi exaustivamente abordado na psicoterapia e este espaço de fala possibilitou que fossem externalizadas as imensas dificuldades dessa mãe em se separar de seu filho e em autorizá-lo a ter um corpo e um psiquismo próprio.

 

Considerações finais

Na dinâmica psíquica de Aquis e de sua mãe, como visto no método de Rorschach, aparecem como eixos as temáticas da fragmentação e da adesividade. Em Aquis, a dificuldade de diferenciação e a fragmentação predominam, configurando uma representação de si pouco unificada com a imagem do corpo e de um psiquismo dissociado. Nesse sentido, percebe-se um fracasso em efetivar a separação simbólica com o corpo materno, a interdição não é simbolizada o que dificulta a interposição da distância e da diferença necessárias para que os processos de simbolização se constituam.

Em Simone, os elementos do Rorschach denotam um psiquismo recheado por uma adesividade demarcando uma dificuldade de diferenciação, principalmente nas representações de relação e de figura humana. Temos então, um psiquismo dissociado, e outro permeado pela adesividade. Duas dimensões complementares que fazem supor a existência de um psiquismo indiferenciado num corpo para dois.

O acompanhamento psicoterápico de Simone permitiu evidenciar como o setting psicoterapêutico por meio de suas regras, determina uma modalidade de relação onde os papéis têm uma clara delimitação. Entendemos, portanto, que o estabelecimento dessas regras contribuíram para a diferenciação entre o corpo do analista e o corpo de Simone, bem como para a emergência das angústias de separação entre Simone e seu filho que puderam surgir em um espaço de fala protegido.

A escola certamente pode se constituir assim como a psicoterapia, em um espaço de separação para a simbiose entre mãe e filho. Contudo, a inclusão de crianças e adolescentes psicóticos nas escolas convoca a uma discussão mais cuidadosa no que se refere à necessidade de que, além das possibilidades de acesso aos bens da cultura promovidos pela escola, a criança e o adolescente psicótico – bem como sua família – precisam de um espaço que possa, além de ser educativo, comportar também dispositivos clínicos para fornecer uma escuta que minimize os sentimentos destrutivos acionados pela perspectiva de separação.

 

Referências Bibliográficas

ARAGÃO, R. O. Narcisismo materno e criação do espaço psíquico para o bebê. In:____. O bebê, o corpo e a linguagem. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2004. p. 91-101.

AULAGNIER, P. Observações sobre a estrutura psicótica. In: KATZ, C. S. et al. Psicose: uma leitura psicanalítica. 2. ed. São Paulo: Escuta, 1991. p.51-74.

BLEGER, J. Simbiose e ambigüidade. 3. ed. Rio de Janeiro: F. Alves, 1988. 400 p.

CHABERT, C. A psicopatologia no exame do Rorschach. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1987. 179 p.

CHABERT, C. Le Rorschach en clinique adulte: interprétation psychanalytique. Paris: Dunod, 1983. 305 p.

DEUTSCH, H. La psicología de la mujer. Buenos Aires: Losada, 1951. 451 p.

FREUD, S. Os três ensaios sobre a teoria da sexualidade. In: ____. Obras psicológicas completas de Sigmund Freud. v. 7. Rio de Janeiro: Imago, 1972. p. 123-252.

GOLSE, B; BydlowskI, M. Da transparência psíquica à preocupação materna primária: uma via do objetalização. In: CORREA FILHO, L.; CORRÊA, M. E. G.; FRANÇA, P. S. (Orgs.) Novos olhares sobre a gestação e a criança até os três anos. Brasília: L.G.E., 2002. p. 215-220.

JERUSALINSKY, A. A escolarização de crianças psicóticas. In: ____. Psicanálise e desenvolvimento infantil: um enfoque transdisciplinar. 4. ed. Porto Alegre: Artes e Oficios, 2007. p. 126 – 154.

KUPFER, M. C. M. Educação para o futuro: psicanálise e educação. São Paulo: Escuta, 2000. 160 p.

LAPLANCHE, J. Novos fundamentos para a psicanálise. São Paulo: Martins Fontes, 1992. 174 p.

MCDOUGALL, J. Um corpo para dois. In: ____. Conferências Brasileiras: Corpo físico, corpo psíquico, corpo sexuado. Rio de Janeiro: Xenon, 1987. p.17-52.

PNAKOW, G. Structure familiale et psychose. Paris: Aubier Montaigne, 1977. 205 p.

RAUSCH DE TRAUBENBERG, N.; BOIZOU, M. F. Le Rorschach en clinique infantile. Paris: Dunod, 1977. 360 p.

WINNICOTT. W. D. Os bebês e suas mães. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006. 112 p.

 

 

1 Apoio Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e Fundação de Apoio a Pesquisa (FAP-DF)