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ISBN 978-85-60944-12-5 versão
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An 7 Col. LEPSI IP/FE-USP 2009
8/11 - COLÓQUIO-COMUNICAÇÕES LIVRES
TGD, TID, TDAH, TDO, TOC ... será que educamos melhor com os diagnósticos ?
Kelly Cristina Brandão da Silva
Psicanalista, mestranda em Educação pela FE-USP, especialista pelo IPUSP-Lugar de Vida, membro do LEPSI - IP/FE-USP (Laboratório de Estudos e Pesquisas Psicanalíticas e Educacionais sobre a Infância), docente da Universidade Metodista de São Paulo, no curso de Psicologia. E-mail: kcbdasilva@usp.br
RESUMO
A enorme variação e amplificação dos critérios de diagnóstico preconizadas pelo DSM-IV e sua crescente invasão no meio escolar impulsionam a escola a querer saber tudo. Esse trabalho visa problematizar essa busca frenética por diagnósticos e os crescentes encaminhamentos e reencaminhamentos de alunos para diversos profissionais. Percebe-se uma tentativa de naturalizar as diferenças dos alunos e enquadrá-los em categorias ordenadoras previamente estabelecidas, que pressupõem uma descrição detalhada e cada vez mais refinada, em um movimento classificatório que tende ao infinito.
Palavras-chave: Psicanálise diagnóstico psiquiátrico tarefa educativa
"O que um dia eu vou saber
não sabendo
eu já sabia"
( Guimarães Rosa )
O querer saber tudo
Diagnósticos psiquiátricos, como TDAH (para crianças desatentas e hiperativas), TDO (para as desafiadoras e opositivas) e TID (para as autistas e aspergers) compõem uma sopa de letrinhas que, devidamente acompanhada de um amplo cardápio psicofarmacológico, tem encontrado no meio escolar um terreno fértil.
O relatório a seguir, encaminhado por uma escola e recebido por mim em consultório particular, é paradigmático nesse sentido:
Desde que "X" iniciou suas atividades no colégio pudemos observar algumas dificuldades escolares, que permanecem desde então. O aluno já foi encaminhado anteriormente para Avaliações Neurológica e Psicológica e obteve diagnóstico de TDAH (Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade) e alterações no PAC (Processamento Auditivo Central). O aluno frequenta atualmente a oitava série do Ensino Fundamental, série em que foi reprovado no ano passado. Notamos que o aluno ainda encontra dificuldade para acompanhar as atividades escolares, mostrando-se desmotivado para o aprendizado e desinteressado durante as aulas. Continua disperso e demonstra dificuldades para assimilar e fixar os conteúdos. Não demonstra disciplina e organização para os estudos, devendo ser orientado constantemente pela coordenação e professores. Não gosta quando lhe são cobradas posturas diferenciadas com relação à escola. Diante do exposto, encaminhamos novamente o aluno para as avaliações solicitadas anteriormente, Avaliação Neurológica e Avaliação Psicológica e nos colocamos à disposição para outros esclarecimentos. Aguardamos contato dos profissionais responsáveis pelas avaliações. |
A pronta adesão de educadores a essa descrição reducionista dos alunos põe em relevo não só a hipervalorização do diagnóstico, mas de forma paradoxal a inutilidade do mesmo para a árdua tarefa de educar. Afinal, se a escola acima já possuía dois diagnósticos, por que o pedido de repetição das avaliações ?!
Do lado das crianças e adolescentes, tem sido cada vez mais comum escutar as seguintes falas: "Não vou bem na escola porque sou hiperativo"; "Hoje não pude ficar na aula porque meu neurologista me receitou um remédio que está me dando muito sono (importante lembrar que a ida ao neurologista objetivava uma melhora na escola); "Tenho transtorno de humor e meus colegas de classe não me entendem" e assim assistimos - muitas vezes anestesiados - a um desfile de argumentos 'cientificamente embasados' que não só não colaboram para uma mudança no quadro escolar bem como desresponsabilizam pais, educadores e também os próprios alunos. Se tudo pode ser explicado em termos de função/disfunção cerebral, como implicar o sujeito ?
A nosografia psiquiátrica presente no DSM-IV ou no CID-10 substitui a ideia de estrutura por transtorno. Ao se escolher o termo transtorno tradução para a língua portuguesa do original em inglês disorder fica implícita a compreensão de que há algo em desacordo com uma "ordem" e, portanto, há um ideal a ser perseguido. É idealmente um sistema ateórico, descritivo, que pretende muito mais possibilitar a troca de informações entre os profissionais do que construir uma hipótese diagnóstica que considere a subjetividade. Vejamos:
As principais características do DSM-IV são: 1. descrição dos transtornos mentais; 2. definição de diretrizes diagnósticas precisas, através da listagem de sintomas que configuram os respectivos critérios diagnósticos; 3. modelo ateórico, sem qualquer preocupação com a etiologia dos transtornos; 4. descrição das patologias, dos aspectos associados, dos padrões de distribuição familiar, da prevalência na população geral, do seu curso, da evolução, do diagnóstico diferencial e das complicações psicossociais decorrentes; 5. busca de uma linguagem comum, para uma comunicação adequada entre os profissionais da área de saúde mental; 6. incentivo à pesquisan. (Matos et al, 2005, p. 313, grifo meu)
Somos cada vez mais atraídos por uma relação medicamentosa e não como interlocutores do nosso sofrimento. A vida, enquanto enigma a ser desvendado e reinventado por cada um de nós, tem sido patologizada. O paradigma contemporâneo obtura a interrogação frente ao sofrimento ao propor intervenção rápida, eficiente e sem dor.
O saber não sabido
Freud, em "Totem e tabu" (1913), faz uma interessante observação em relação às palavras primitivas. Estas comportavam um certo caráter onírico, com possibilidades ambíguas de significação. Com o advento da racionalidade as palavras foram perdendo essa característica - numa tentativa de rompimento da ambivalência - e adquirindo, forçosamente, um caráter unívoco. No percurso da modernidade percebe-se uma luta contra a ambivalência e a pretensão de anulá-la. Ainda em Totem e tabu, Freud já assinalava que a elaboração secundária, fruto de processos conscientes, tem a função de recobrir e mascarar os sentidos inconscientes sempre ambivalentes e, portanto, cumpre um papel de recalque. Nesse sentido, a ambivalência é irredutível.
Zygmunt Bauman, em seu texto "Modernidade e ambivalência" (1999), resgata o insuportável e o insustentável da experiência humana da ambivalência e seu apagamento através da elaboração secundária. Esse autor discute o pensamento moderno, racional, categorial, que institui os amigos e inimigos:
A oposição entre amigos e inimigos separa a verdade da falsidade, o bem do mal, a beleza da feiúra. Também diferencia entre o próprio e o impróprio, o certo e o errado, aquilo que é de bom gosto e o que não fica bem. Ela torna o mundo legível e, com isso, instrutivo. Ela dispersa a dúvida. E capacita o inteligente a prosseguir. Ela garante que se vá onde se deve ir. Ela faz a opção parecer reveladora da necessidade natural de forma que a necessidade criada pelo homem possa ficar imune aos caprichos da escolha. (op. cit., p. 63)
Ao se naturalizar a experiência humana, transformando opção (fruto da subjetividade) em necessidade natural, obturamos a ambivalência afetiva que caracteriza o humano.
Uma outra categoria, descrita por Bauman, é a do estranho nem amigo, nem inimigo e sujeito a todo e qualquer tipo de projeção. "Os indefiníveis expõem brutalmente o artifício, a fragilidade, a impostura da separação mais vital. Eles colocam o exterior dentro e envenenam o conforto da ordem com a suspeita do caos" (op. cit., p. 65). Como o estranho não se enquadra às categorias existentes, causa tensão e ameaça. Mais uma vez a negação da experiência da ambivalência. O autor expõe o horror da indeterminação (p. 67) retratado pela impossibilidade de classificação de alguns estranhos.
(...) Esses são os verdadeiros híbridos, os monstros não apenas não classificados, mas inclassificáveis. Eles não questionam apenas uma oposição, aqui e ali: questionam a oposição como tal, o próprio princípio da oposição, a plausabilidade da dicotomia que ela sugere e a factibilidade da separação que exige. Desmascaram a frágil artificialidade da divisão. Eles destroem o mundo. Estendem a temporária inconveniência de 'não saber como prosseguir' a uma paralisia terminal. Devem ser transformados em tabu, desarmados, suprimidos, física ou mentalmente exilados ou o mundo pode perecer. (op. cit., p. 68)
Freud, em 1919, escreve um texto intitulado "Das Unheimliche", um termo em alemão que comporta sentidos como: aquilo que é não familiar, indomesticado, estranho e inquietante. Cabe ressaltar que o radical Heim significa lar, casa. Já o prefixo un- tem a função de negativa (como in- na língua portuguesa). Devido a essa ambiguidade alguns psicanalistas têm traduzido das Unheimliche por estranho-familiar. Nesse texto Freud mostra que aquilo que se apresenta como estranho, aparentemente desconhecido, na verdade já foi conhecido um dia. A oposição aparente aponta de forma paradoxal uma equivalência entre estranho e familiar. Das Unheimliche seria a assustadora impressão que se liga às coisas conhecidas há muito tempo e familiares desde sempre e, nesse sentido, é o efeito do retorno do recalcado.
Avançando um pouco mais, é possível creditar à estrangeirice da criança uma fonte inesgotável de enigma para o adulto. De acordo com Lajonquière (2001):
O saber não sabido mistério a ser contado creditado na conta da criança faz dela um estrangeiro de quem queremos apre(e)nder suas histórias de um "outro mundo". Porém, o que de fato queremos, é impossível, pois trata-se de que nos revele essa estrangeirice que nos habita. D'isso só nós podemos "nos falar" a "nós" mesmos" na medida em que as crianças, permanecendo sempre um pouco estranhas a nós, nos devolvam para assim podermos nos interrogar o fato de sermos estrangeiros a nós mesmos. No entanto, o mal-entendido não aborta o diálogo, pelo contrário, o alimenta ao tempo que faz acontecer uma educação infantil. (p. 55)
Se a criança sempre representou o estranho-familiar, talvez agora na contemporaneidade o estranho sobressaia enormemente ao familiar. Citando Bauman, "Os estranhos recusavam-se a serem divididos claramente em 'nós' e 'eles', amigos e inimigos. Teimosa e irritantemente, eles permaneciam indeterminados seu número e poder de aborrecer parecem crescer com a intensidade dos esforços para dicotomizar." (op. cit. , p. 75).
Em um movimento para mascarar e recobrir a experiência de ambivalência e mal-estar suscitada pelo estranho que está entre nós, percebe-se uma tentativa de naturalizar as diferenças dos alunos e enquadrá-los em categorias ordenadoras previamente estabelecidas, que pressupõem uma descrição detalhada e cada vez mais refinada, em um movimento classificatório que tende ao infinito. A busca frenética por diagnósticos e os crescentes encaminhamentos e reencaminhamentos de alunos para diversos profissionais são reveladores desse cenário.
O saber não todo
Lacan (1992), no seminário 17, "O avesso da Psicanálise", analisa o discurso do mestre como fruto do recalque dos processos oníricos, inconscientes. No discurso do mestre há a busca pela univocidade e pela dicotomia ('ou isto ou aquilo'). A radicalidade da descoberta da psicanálise o inconsciente a coloca, segundo Lacan, como o avesso do discurso do mestre. É tarefa da psicanálise apontar o discurso do mestre, rompendo com as dicotomias e tornando o debate mais complexo. Segundo Serge André (1998), a psicanálise propõe uma relação diferente com o saber. Normalmente pensado como algo exato, unívoco e tangível, o saber na atualidade se acumula, está disponível, transbordante e acessível a todos e, paradoxalmente, não tem mais efeito algum sobre ninguém. A psicanálise, na contramão, expõe um saber que nos implica.
O saber psicanalítico não funciona, assim, em posição da verdade, a não ser na medida em que opera como saber furado, afetado por uma falha central o que determina o estatuto da verdade enquanto semidizer. A psicanálise não permite saber tudo, pois o inconsciente não diz tudo. Lacan nos convida a compreender que essa falha não é da ordem de uma imperfeição que os progressos da pesquisa permitiriam preencher, mas sim que ela constitui a chave para a própria estrutura do saber. Convém, pois, dar forma afirmativa a nossa proposição: a psicanálise permite saber o 'não-todo', porque o inconsciente diz 'não-todo' (André, 1998, p. 10).
A enorme variação e amplificação dos critérios de diagnóstico preconizadas pelo DSM-IV e sua crescente invasão no meio escolar impulsionam a escola a querer saber tudo. O professor, diante da profusão de informações, vê-se incapacitado (daí a proliferação de cursos de capacitação) e desatualizado (por isso a frenética busca por cursos de atualização). O que se pretende interrogar aqui é a voracidade que está em jogo. Não basta saber algo, temos que saber tudo. Nesse movimento o conhecimento é permanentemente renovável, substituído, descartável - como o lixo (para isso há os cursos de reciclagem). Os professores, frente à impossibilidade estrutural de apre(e)nder tudo, tornam-se eternos alunos (daí a importância da formação continuada).
A psicanálise destaca que o recalcado retorna. Talvez um dos efeitos desse apagamento do lugar do professor apareça atualmente em forma de um voyerismo, diria quase pornográfico, na relação da escola com os alunos e suas famílias. Para se educar bem, é preciso conhecer o aluno (e também sua família), estabelecer um vínculo, saber seu histórico de vida, desnudá-lo em seus aspectos biopsicossociais (daí a crescente demanda por laudos e diagnósticos médicos e psicológicos). Interessante notar um termo relativamente novo utilizado pela escola para referir-se aos contatos que ela tem com as famílias. Se antes os encontros se davam em reuniões de pais e mestres e em festas escolares, agora fala-se em atendimento aos pais. Um termo notadamente exterior ao campo educativo, comum nas áreas médico-psicológicas. Se antes os alunos tinham boletim de notas e, ao desrespeitarem as regras, tinham que assinar o temido livro negro, atualmente as escolas têm prontuários dos alunos. Chama a atenção não somente o viés médico, mas também policial que esse termo aponta.
O ideal em questão sustenta a ilusão de que, se conhecermos os alunos de forma integral sem deixar nada escapar naturalmente a tarefa educativa será eficiente. Aqui vale lembrar o texto de Freud (1908), "Sobre as teorias sexuais das crianças", no qual observamos que a elaboração de tais teorias sexuais revela o interesse infantil por algo do qual elas não participam, como o coito dos pais e a gravidez, sendo que a solução presente nessas teorizações infantis busca como referência o próprio corpo. Os 'erros' presentes nas teorias sexuais infantis são fruto de uma intensa elaboração e se, por um lado, não condizem com a verdade dos fatos, por outro, obedecem aos fins narcísicos da criança. Se sua atividade cognoscente impõe-se como desvendamento de um enigma, parece claro que há a necessidade de um descompasso entre a criança e o adulto. Em outras palavras, não há porque teorizar se não há enigmas a serem desvendados. Isso interroga o pretenso conhecimento integral do aluno por parte do professor, que acaba por enrijecer a relação adulto-criança, pois preconiza prescrições, proibições e restrições sempre muito bem fundamentadas cientificamente. O ato educativo ao contrário tem sempre um caráter um tanto arbitrário, o que impulsiona a criança a desejar para-além de seus pais e mestres.
É cada vez mais comum o adulto deixar de agir em nome próprio - o que apresenta um caráter sempre arbitrário - para servir-se desse saber tecnicista, destituindo-se do papel de transmissor de heranças simbólicas. Observa-se, em diversas instâncias sociais, as crianças sendo assistidas pelos adultos, sem que estes exerçam a autoridade de forma legítima. Calligaris (1991) chama esse adulto que recua frente à tarefa educativa de soft-moderno:
(...) você me obedece porque a ciência razoavelmente demonstra que a minha interdição é bem fundada. Há uma diferença relevante entre proibir a um menino de se dependurar na janela porque está proibido, ou então explicar-lhe que, sendo o peso da cabeça comparativamente maior do que o peso do corpo, Arquimedes demonstrou que não é aconselhável se dependurar na janela. A versão soft compromete o valor simbólico dos laços, pois o próprio do simbólico é que ele é arbitrário: a justificação o enfraquece (op. cit., p. 110).
Lebrun (2004) discute o discurso tecnocientífico presente na atualidade, ressaltando a supervalorização da eficácia e o primado da técnica em relação à teoria. "Só resta aprender a 'gerir' da melhor forma sua eficácia, a valorizar sua gestão. Permite poupar-se da criação e da invenção" (p. 102). O autor coloca alguns efeitos desse discurso, como sua pretensão universalizante, a autoridade dos enunciados e consequente exclusão do enunciador e o apagamento da conflitualidade. "Passar do regime dos pais para os expertos implica uma nova versão do sonho de servidão voluntária" (p. 128).
Acreditar que tudo está dado a priori, através dos subsídios de um saber tecnocientífico, dificulta (e por vezes impede) uma abertura possível para a interrogação e o inusitado. Se os atores da Educação a família e a escola - não puderem suportar o não-saber, como poderão transmitir o desejo de saber ? E ainda: se a família e a escola não se autorizarem a educar em nome próprio e não subjugadas ao discurso (psico)pedagógico hegemônico como vão transmitir as heranças simbólicas ? Segundo Arendt (1997a), "É com palavras e atos que nos inserimos no mundo humano; e esta inserção é como um segundo nascimento, no qual confirmamos e assumimos o fato original e singular do nosso aparecimento físico" (p. 56). E esse segundo nascimento só é possível através de outros humanos, que não recuem diante da tarefa educativa de introduzir a criança nesse velho mundo (Arendt, 1997b).
Cada um deve se autorizar (e responsabilizar-se) num julgamento, não podendo remeter exclusivamente ao saber dos expertos. (...) Uma decisão não é simplesmente consequência do saber, pois ela termina sempre por implicar um ponto de não-saber e essa incerteza, longe de ser um vício, é, ao contrário, o que "deixa a desejar" (Lebrun, 2004, p . 213)
Esse discurso tecnocientífico faz-nos relembrar que a proposta freudiana, diferentemente, é incapaz de construir uma Weltanschauung:
Weltanschauung é uma construção intelectual que soluciona todos os problemas de nossa existência, uniformemente, com base em uma hipótese superior dominante, a qual, por conseguinte, não deixa nenhuma pergunta sem resposta e na qual tudo o que nos interessa encontra seu lugar fixo. (Freud, 1933, p. 193).
Nesse mesmo texto, de 1933, A Questão de uma Weltanschauung, Freud sublinha o fato compreensível de que os seres humanos tenham como ideal a posse de uma Weltanschauung, pois "Acreditando-se nela, pode-se sentir segurança na vida, pode-se saber o que se procura alcançar e como se pode lidar com as emoções" (op. cit., p. 193-194). Isso talvez nos ajude a pensar sobre a facilidade com que a Educação abarca em seu interior concepções que lhe são alheias, mas que cumpram o papel de uma Weltanschauung.
É possível considerar que o contemporâneo racionalismo tecnocientífico seja a Weltanschauung dos dias atuais. Esse tecnicismo tem efetivado uma exacerbação da racionalidade instrumental, determinando um tempo que é marcado pelo efêmero, no qual a flexibilidade e a fluidez aparecem como tentativas de acompanhar essa velocidade. No lugar da unidade, a multiplicidade; no lugar da integração, a fragmentação; no lugar do a longo prazo, o aqui-e-agora. O individualismo, o consumismo e o hedonismo parecem, dessa forma, ser efeitos desse tecnicismo.
E para finalizar, uma citação freudiana que nos recorda a contragosto que o estranho, antes de ser o outro, somos nós mesmos:
Estava eu sentado sozinho no meu compartimento no carro-leito, quando um solavanco do trem, mais violento do que o habitual, fez girar a porta do toalete anexo, e um senhor de idade, de roupão e boné de viagem, entrou. Presumi que ao deixar o toalete, que ficava entre os dois compartimentos, houvesse tomado a direção errada e entrado no meu compartimento por engano. Levantando-me com a intenção de fazer-lhe ver o equívoco, compreendi imediatamente, para espanto meu, que o intruso não era senão o meu próprio reflexo no espelho da porta aberta. Recordo-me ainda que antipatizei totalmente com a sua aparência. (Freud, 1919, p. 309)
Referências bibliográficas
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ARENDT, H. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997a
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BAUMAN, Z. Modernidade e ambivalência. Rio de Janeiro: J. Zahar,1999
CALLIGARIS, C. Hello Brasil! Notas de um psicanalista europeu viajando ao Brasil. São Paulo: Escuta, 1991
FREUD, S. Sobre as teorias sexuais das crianças. In: S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad., Vol. IX). Rio de Janeiro: Imago, 1980 (original de 1908).
__________. Totem e tabu. In: S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad., Vol. XIII). Rio de Janeiro: Imago, 1980 (original de 1913).
__________. O estranho. In: S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad., Vol. XVII). Rio de Janeiro: Imago, 1980 (original de 1919).
__________. Conferência XXXV: A questão de uma Weltanschauung. In: S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad., Vol. XXII). Rio de Janeiro: Imago, 1980 (original de 1933).
GOMES DE MATOS, Evandro, GOMES DE MATOS, Thania Mello e GOMES DE MATOS, Gustavo Mello. A importância e as limitações do uso do DSM-IV na prática clínica. In: Revista Psiquiátrica Rio Grande do Sul, Set./Dez. 2005, vol.27, no.3, p.312-318, 2005
LACAN, J. Seminário 17: o avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.Editor, 1992
LAJONQUIÈRE, L. Infância e ilusão (psico)pedagógica: escritos de psicanálise e educação. Petrópolis, RJ: Vozes, 1999
________________. Duas notas psicanalíticas sobre as crianças "com necessidades educativas especiais". IN: Pro-posições, v.12, n. 2-3 (35-36). jul.-nov. Campinas, 2001, p. 47-59
LEBRUN, J. P. Um mundo sem limite : ensaio para uma clínica psicanalítica do social. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2004.
MANUAL DE DIAGNÓSTICO E ESTATÍSTICA DE DISTÚRBIOS MENTAIS (DSM-IV). (4ª ed.). Porto Alegre: Artes Médicas, 1994