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ISBN 978-85-60944-12-5 versão

An 7 Col. LEPSI IP/FE-USP 2009

 

8/11 - COLÓQUIO-COMUNICAÇÕES LIVRES

 

Crianças autistas e o espaço lúdico: um relato de estágio

 

 

Letícia Wilke FrancoI; Patrícia Fantinel MatosII; Márcia E. Wilke FrancoIII

IAcadêmica dos cursos de Psicologia da UNISINOS e licenciatura em Educação Física da UFRGS
IIPsicóloga e supervisora da Clínica Espaço Vital
IIIDoutora em Educação, Professora da UNISINOS, psicóloga e supervisora da Clínica Espaço Vital

 

 


RESUMO

Este trabalho é um relato de experiência de Estágio Básico em Psicologia da UNISINOS realizado em projeto da Clínica Espaço Vital – Gravataí, RS. A intervenção foi realizada na classe terapêutica de crianças autistas de uma escola estadual. O trabalho foi fundamentado teoricamente nas idéias de Winnicott. A intervenção teve como objetivo disponibilizar um espaço lúdico diferente do já oferecido pela escola, onde as crianças pudessem criar e interagir através de atividades semidirigidas, como criação de histórias, jogos com música e esportes adaptados. Esse trabalho resultou principalmente num maior envolvimento das mães e das crianças com a prática da psicologia.

Palavras-chave: autismo, espaço lúdico, relato de experiência.


 

 

INTRODUÇÃO

Este artigo tem como objetivo relatar uma prática de Estágio Básico do curso de Psicologia1 da Unisinos realizada em uma classe terapêutica de crianças2 autistas em uma escola estadual no município de Gravataí – RS. Esta turma era constituída por quatro crianças entre 12 e 14 anos e tinha duas professoras responsáveis. A experiência aqui relatada é uma parte da intervenção realizada por duas Psicólogas da Clínica Espaço Vital e a estagiária de Psicologia da Unisinos.

Além dessas crianças estarem em uma turma terapêutica, afastadas das séries regulares, eram crianças diagnosticadas como autistas. O autismo é um tema polêmico do ponto de vista de sua explicação teórica e não há um consenso sobre sua etiologia. Isso torna o autismo um assunto um tanto quanto inquietante, dando mais espaço para questionamentos a respeito dessa psicopatologia. Assim o autismo se coloca como um tema misterioso que muitos poucos se autorizam a tratar.

Hoje o autismo é conhecido pelas pessoas através da mídia, pelos vários filmes que trazem como seus personagens principais crianças autistas, algumas com suas genialidades e outras com seus comportamentos estereotipados e repetitivos.

Winnicott traz em seus estudos idéias e concepções distintas dos demais autores em relação ao que vem a ser o autismo e de como foi concebido primeiramente na literatura. Por essa razão, recebe lugar de destaque entre os autores da abordagem psicanalítica nas diversas revisões teóricas publicadas.

Em seu artigo "Autismo", escrito em 1966, publicado no Brasil no livro "Pensando sobre crianças", Winnicott diz que a invenção do termo autismo por Leo Kanner em 1943 não foi uma contribuição tão significativa assim. Ele diz que "depois de este termo ter sido inventado e aplicado, estava montado o cenário para uma coisa um tanto falsa, a descoberta de uma doença" (WINNICOTT, 1997, p.180).

Para este autor o autismo não é uma doença, e sim um problema de desenvolvimento emocional, dizendo ainda que essa doença, o autismo, não existe. Para ele a dificuldade de descrever esse fenômeno é que muitos desses estudos clínicos foram feitos por pessoas que só lidam com crianças normais ou só com crianças doentes. Essas pessoas, não se preocupam quanto aos problemas do relacionamento mãe-bebê. Outra dificuldade é a de que não só existem casos numerosos de autistas, como também multiformes, o que torna difícil formular uma explicação objetiva sobre o que é o autismo. (WINNICOTT, 1997).

Ele ainda diz que nos encontramos diante de questões relativas à história do desenvolvimento dessa criança a ser diagnosticada como autista, e não puramente de um agrupamento de sintomas de uma doença ou síndrome (CAVALCANTI e ROCHA, 2001). Assim, Winnicott (1997) diz que, de modo geral, o que conta quando se fala em transtornos do desenvolvimento das crianças, incluindo o autismo, é a qualidade dos cuidados iniciais. Porém ele coloca que isso não quer dizer que a culpa da formação de um quadro autista seja inteiramente da mãe ou do pai dessa criança.

 

RELATANDO A PRÁTICA

O foco da intervenção foi o grupo de crianças da classe terapêutica constituída por quatro crianças autistas. A partir das observações feitas durante o primeiro semestre do Estágio Básico, foi traçado o seguinte objetivo para a proposta de intervenção: disponibilizar um espaço lúdico diferente do já oferecido pela escola, onde as crianças pudessem criar e interagir através de atividades lúdicas semidirigidas, como criação de histórias, jogos com música e esportes adaptados.

Este objetivo foi escolhido porque dentre todas as atividades da criança, a lúdica sobressai, pois ela possui um prazer natural e espontâneo em jogar e brincar. Nas brincadeiras de faz de conta, a criança alcança o domínio da situação e cria e vive uma fantasia e uma realidade própria. Esta capacidade de espontaneidade traz à atividade lúdica o sentido de liberdade, o que reforça a motivação para o jogo (MONTEIRO, 1994).

Para Winnicott (1975) o brincar pode ser entendido como mudança de significado, como movimento, tem uma linguagem, é um projeto de ação. Brincando trabalha-se a subjetividade do ser humano, cunha-se a realidade estabelece-se um tempo e espaço. Brincar é criar, criar uma forma não convencional de utilizar objetos, materiais, idéias, imaginar. É inventar o próprio tempo e espaço.

Quanto à dramatização, instrumento também utilizado na prática, é importante destacar que, mesmo não sendo usada para fins terapêuticos, faz aparecer sentimentos e angústias importantes (SLADE, 1978).

A intervenção foi planejada com o intuito de ser realizada durante dez semanas, com um encontro a cada semana em um período de uma hora e meia, onde seria apresentada para as crianças a atividade proposta para aquele dia. Porém só foi possível realizar quatro encontros por motivos que serão analisados posteriormente. As atividades eram semidirigidas para que as crianças pudessem também fazer parte da construção dos encontros.

 

Jogos utilizados na intervenção:

a) JOGOS DE PESQUISA DE RITMO

Monteiro (1994), entre outros autores, lembra que o ritmo está presente em todos os lugares que freqüentamos, assim como no nosso corpo, nas batidas do coração e no ritmo respiratório. Assim esse é o ponto de partida para o desenvolvimento dessas atividades. Além disso, "os jogos de ritmo propiciam ao indivíduo descobrir o seu ritmo interior, natural, e desenvolvem a sua capacidade criadora sobre eles" (MONTEIRO, 1994, p.35).

Foram realizados jogos de observação do ritmo interno, jogos com o uso de instrumentos musicais, assim como a brincadeira de estátua e expressão livre do ritmo. As crianças gostaram de realizar estas atividades e participaram ativamente.

b) JOGOS DE PESQUISA DE ESPAÇO

Todo jogo se realiza em um determinado espaço, portanto é importante conhecê-lo. Esse espaço se divide em dois, o espaço total para a realização do jogo e o espaço parcial que o corpo de cada um ocupa nesse espaço total.

Usamos os diversos espaços da sala da classe terapêutica, bem como, neste momento, percebemos o quanto o uso da imagem nos auxiliou para que as crianças percebessem o seu corpo, sua voz e suas ações dentro deste espaço.

c) JOGOS DE SENSIBILIZAÇÃO

"Têm por objetivo levar o indivíduo a perceber melhor, através dos seus órgãos dos sentidos, tanto as impressões de seu próprio corpo, como as de um objeto externo a ele, por exemplo, o corpo de outra pessoa. Favorecem a coesão grupal" (MONTEIRO, 1994, p.56).

Utilizamos jogos de pesquisa do próprio rosto, pesquisa de um objeto, guia de cego. As crianças inicialmente pareciam desconfiadas, mas à medida que participavam da brincadeira iam se soltando.

d) JOGOS DE DRAMATIZAÇÃO E DE CRIAÇÃO DE HISTÓRIAS

Dramatização de histórias semi-estruturadas, e criação de histórias pelas crianças foram as atividades que demonstraram as capacidades individuais de cada criança, pois para algumas, criar histórias parecia ainda não ser tão fácil. Os fantoches foram ótimos para que elas expressassem suas imaginações.

 

ANÁLISE DO PROCESSO

A proposta de intervenção foi apresentada às professoras e à coordenação da escola em novembro de 2007 e aceita para a sua realização no início de 2008. Porém ao retornar das férias escolares as professoras reduziram a intervenção para quatro encontros ao invés de dez. Estipularam os dias e os horários em que os encontros ocorreriam. Fizemos uso de uma filmadora para o registro das atividades, com devida autorização das mães das crianças e combinamos que mostraríamos as filmagens.

A observação do funcionamento do local e dos atravessamentos que nele existem é muito importante, pois nos atenta para o processo como um todo. Quando vamos focados para observar algo específico podemos não enxergar o restante. A observação é um processo necessário para a construção de um projeto de intervenção, pois possibilita ver e entender as necessidades do local. Sem a observação corremos o risco de criarmos uma demanda que não condiz com a realidade.

Esta experiência evidencia a importância da supervisão, tanto acadêmica quanto local. Zimerman (1999) postula que a atividade de supervisão tem três objetivos: a educação, sendo o papel do supervisor facilitar o aparecimento das capacidades e potencialidades que ainda estão latentes no supervisando; a instrumentalização, isto é, equipar o supervisando no exercício da prática da Psicologia; e, por último, contribuir para a construção da identidade do futuro psicoterapeuta. Além disso, na supervisão acadêmica discutimos com os colegas de curso e com o professor supervisor as relações com a equipe de trabalho, bem como os sentimentos frente a estas experiências que foram sempre acolhidos. Daí se dá a importância dessa atividade.

Na supervisão local tentamos analisar o que pode ter ocorrido para que o antigo contrato fosse desfeito e para que um novo fosse imposto pelas professoras. Uma das hipóteses é de que o trabalho que vinha sendo desenvolvido voluntariamente pela Clínica havia dois anos (por meio do grupo com as mães, grupo com as professoras, avaliação psicológica com as crianças e acompanhamento de uma tarde de aula juntamente com as professoras) começou a evidenciar questões que estavam latentes como: 1) o verdadeiro objetivo da classe terapêutica (ensino-aprendizagem ou recreação?); 2) a relação das professoras com os alunos; 3) a comodidade que a docência em educação especial proporcionava para as professoras.

Nós víamos e sentíamos, e as mães e as professoras relatavam, o desejo e a felicidade das crianças nos dias da ida dos psicólogos e estagiários na escola, porém isso começou a ser usado como forma de chantagem para a realização de outras atividades ("se vocês não acabarem a atividade proposta, as psicólogas não vão vir fazer a atividade com vocês"). A partir desses acontecimentos sentimos instalar-se um clima de competitividade por parte das professoras para com as psicólogas. Assim, nas conversas com as professoras, percebemos o relato do medo de analisarmos o trabalho delas e de que elas pudessem estar fazendo algo errado.

As professoras foram as pessoas que demonstraram maior resistência para com a intervenção do projeto da Clínica. Viam o trabalho das psicólogas como uma oportunidade de "hora livre" para elas. Sempre enfatizamos a importância de estarem presentes durante o trabalho das psicólogas e estagiários por terem formação adequada para trabalharem com essas crianças e para que depois pudéssemos discutir alguns eventuais episódios.

Fazendo posteriormente uma avaliação deste estágio, vemos que mesmo não podendo colocar em prática a intervenção tal e qual foi planejada quanto ao número de encontros, foi alcançado o objetivo proposto, abrindo um espaço lúdico, diferenciado do da escola, para trabalhar com as crianças.

As crianças participaram das atividades demonstrando a cada encontro maior vínculo afetivo, relacionando-se não só com a equipe, mas também entre elas, envolvendo-se com as atividades realizadas, mostrando interesse a cada nova proposta. Isso nos faz pensar o quanto o autismo ainda é um tema pouco explorado em termo de intervenções. Víamo-los participando, interessando-se, vinculando-se. Sujeitos com esse diagnóstico podem sim ser ativos, criar vínculos importantes, o que é essencial para o desenvolvimento deles. Temos como exemplo a inclusão de sujeitos com este diagnóstico em escolas regulares e até em universidades.

O uso da filmagem nos encontros contribuiu para que elas pudessem se perceber como integrantes do grupo. As imagens, à medida que iam sendo vistas pelas mães junto com as crianças, possibilitou comentários entre eles como por exemplo: "Olha como aquele meu casaco é bonito! Mas olha como a minha calça tá curta!"; "Aquele era o meu tênis novo!"; "Eu acertei a bola na cesta!". Tanto as mães quanto as crianças demonstraram interesse e pareciam se surpreender com as imagens. Mesmo não sendo um dos objetivos da intervenção, observamos a repercussão gerada pela projeção das filmagens. Era interessante ver que quando chegávamos para realizar uma atividade, as crianças se arrumavam, penteavam os cabelos e algumas se olhavam no espelho.

Esse trabalho resultou principalmente num maior envolvimento das mães e das crianças com a prática da Psicologia. Hoje a Clínica oferece para as crianças da classe terapêutica e para seus pais o atendimento psicoterápico, levando em conta a realidade sócio-econômica dessas famílias.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O estágio curricular é um momento importante na formação do psicólogo, que traz um primeiro contato com a prática profissional, mostrando que muitas vezes o que se planeja e se propõe realizar, não necessariamente é o que de fato acontece. Essas experiências trazem um aprendizado significativo principalmente quando aparecem barreiras que precisam ser compreendidas naquele contexto. Ao nos depararmos com situações inesperadas, muitas vezes decorrentes de resistência a mudanças, somos provocados a buscar novas formas de ação e assim podendo trabalhar os sentimentos que ali perpassam, conseguindo alcançar, por outras vias, o objetivo proposto.

Qualquer estágio demanda tempo, organização e responsabilidades. Depara-se com dificuldades, medos e incertezas, mas aprende-se muito e vivencia-se a realidade do fazer Psicologia em locais como a clínica e a escola. Mais uma vez cabe destacar que uma experiência significativa desperta sentimentos, dúvidas e também a certeza de que a Psicologia é um campo aberto a novas intervenções além de ter muito ainda a ser pesquisado e desenvolvido.

Quando pensamos em desenvolver um trabalho com crianças autistas não temos como saber de fato o quando podemos ajudar ou não, o quanto podemos promover mudanças, mas à medida que nos permitimos experimentar um trabalho diferente é possível perceber o quanto ele pode ser importante e relevante.

 

NOTAS

1 O Estágio Básico em Psicologia da Unisinos propõe ser a primeira inserção do aluno no campo profissional da Psicologia. Com duração de um ano letivo, está organizado em três etapas: 1) Inserção e observação de um campo profissional, à escolha do aluno, assim como problematização e sistematização dessa observação; 2) Elaboração de um projeto de intervenção; 3) Intervenção propriamente dita e sua avaliação. É constituído de uma orientação acadêmica em sala de aula e de práticas no local, o estágio possui um total de 360 horas.

2 Segundo o ECA, a partir de 12 anos, o sujeito é considerado adolescente, porém mantivemos aqui o termo criança porque a escola as chamava assim. Vemos o quanto o uso desta palavra, para denominar aqueles sujeitos em especial, carregava a idéia de fragilidade, ignorância, imaturidade, não estando compatível com a idéia do que vem a ser um adolescente.

 

REFERÊNCIAS

CAVALCANTI, A. E.; ROCHA, P. S. Autismo: construções e desconstruções. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2001, 149p.

MONTEIRO, R. F. Jogos dramáticos. 3ª ed. São Paulo: Agora, 1994, 110p.

SLADE, Peter. O jogo dramático infantil. São Paulo: Summus, 1978, 102p.

WINNICOTT, D.W. "Autismo", in WINNICOTT, D.W. Pensando sobre crianças. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997, p.181;185.

WINNICOTT, W. D. O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1975.

ZIMERMAN, D. Fundamentos Psicanalíticos: Teoria, Técnica e Clínica. Porto Alegre: Artes Médicas, 1999.