7Crianças autistas e o espaço lúdico: um relato de estágioO sujeito do inconsciente e a escrita author indexsubject indexsearch form
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 ISBN 978-85-60944-12-5

An 7 Col. LEPSI IP/FE-USP 2009

 

8/11 - COLÓQUIO-COMUNICAÇÕES LIVRES

 

Jogando com a palavra

 

 

Lia Lima Telles Rudge; Marianna da Gama e Silva

 

 


RESUMO

Este trabalho consiste numa leitura de uma narrativa realizada por um grupo de crianças na oficina de linguagem, um dispositivo que faz parte da montagem do Grupo de Apoio à Escolarização Trapézio, uma ONG que atua na interface entre a Psicanálise e a Educação. O objetivo desta oficina é re-significar a relação das crianças com a leitura e a escrita, através de diversas modalidades de linguagem de nosso contexto cultural - músicas, poesias, adivinhas, jogos, expressões verbais, etc - visando despertar ou recuperar a curiosidade e o interesse por um saber compartilhado socialmente, o que pode produzir transformações importantes na relação ensino - aprendizagem.
Toda leitura surge de uma interpretação que depende da perspectiva teórica adotada. No caso deste artigo, utilizamos como referência a teoria psicanalítica da constituição do sujeito, especialmente a obra de Lacan. Priorizamos nesta leitura o trabalho do significante, que "não é qualquer palavra, não é qualquer dito, mas uma palavra ou dito trabalhados pelo inconsciente (....) São próprios do significante a ambigüidade semântica, o deslocamento, a possibilidade de girar, de armar diferentes circuitos e de montar roteiros que, quando criados pela criança, podem produzir efeitos de significação diferentes" (Gueller, 2008, p.88). É no "só depois" (après-coup1), na retroação de um significante sobre o outro que um sentido vai se produzindo.
A pergunta que buscamos investigar neste trabalho é em que medida a elaboração da narrativa Os Guerreiros, inserida numa montagem atravessada pela psicanálise, mas desenvolvida numa interface com a educação, permitiu aos sujeitos que dela tomaram parte, transportar certas questões com que se deparam em seu processo de constituição para um mundo ficcional e, assim, elaborá-las, de modo a "fazer um giro em suas produções discursivas, produzindo algo diferente" (Besset e Rubim, 2007, p. 48).

Palavras-chave: linguagem; sujeito; inconsciente.


 

 

O Trapézio é uma organização não governamental que desenvolve projetos e ações sociais dirigidos à comunidade escolar - alunos, pais e educadores – compreendendo os impasses escolares a partir de duas vertentes que não se excluem: a de um sintoma social, que faz eco nos vários personagens que integram o cenário escolar e a de um sintoma subjetivo, que corresponde à melhor resposta que um sujeito pode dar para "tratar" sua angústia, engendrar uma separação para não sucumbir totalmente ao gozo do Outro e sustentar uma posição enigmática.

Na visão lacaniana a criança é essencialmente efeito da estrutura desejante da família, "desejo do Outro". Para estruturar-se como sujeito, depende deste Outro, sustentado por um agente de linguagem que lhe dirigirá demandas e lhe nutrirá um desejo (Petri, 2008). Este Outro inscreve o corpo da criança no simbólico, oferece significantes do mundo e os ordena. Como aponta Bernardino (2006) Freud descobriu que o "que faz a criança tornar-se alguém é que ela deseja. E mais: deseja porque alguém a desejou e a antecipou desejante" (p. 20). Contudo, em algum momento a criança terá que se deslocar dessa identificação com o desejo da mãe e é aí que a função paterna é fundamental.

Dentre os dispositivos propostos pelo Trapézio, destaca-se a oficina de linguagem, onde atuamos como dupla de coordenação, em grupos com até 6 crianças e/ou adolescentes. Além deste espaço grupal, cada criança possui um profissional de referência que a acompanha em sua trajetória na instituição, realizando atendimentos individuais e sendo responsável pelo elo entre criança, família e escola.

Antes de entrarmos na narrativa propriamente dita, um breve relato do grupo: trata-se de três garotos na faixa dos dez anos que freqüentemente encenam uma disputa fálica. Mas o que é o falo?

Para a psicanálise, não há outra essência para os seres humanos que a de se constituir em torno da falta. Mãe e filho não se completam, entre o Outro primordial (a mãe) e o filho há um resto que continua ao infinito que Lacan denomina falo imaginário. O falo é um objeto imaginário com o qual o sujeito busca se identificar - na medida em que seu desejo é o desejo do Outro – mas não podemos perder de vista que este objeto ilusório não exerce sua função no sujeito humano como imagem, ele a exerce como elemento significante, preso a uma cadeia significante. Existe, portanto, de um lado a cadeia significante e, de outro, uma significação que sempre desliza e sempre se furta.

Na encenação fálica à qual nos referimos, estabelece-se uma relação entre os integrantes muito próxima ao primeiro tempo do Édipo, pois cada um deles busca ser o falo do Outro – aqui ocupado pela coordenação – e posiciona os demais colegas como um rival a ser eliminado. Como sair deste impasse e estabelecer um novo laço com o outro que favoreça a criação de uma produção coletiva?

Foi neste contexto de jogo que este grupo escreveu Os guerreiros que tem o formato de uma história em quadrinhos. Na passagem das disputas fálicas, extremamente marcadas pela presença do corpo, para a criação de uma estrutura de ficção, observamos um salto na sustentação do laço social e no trabalho de simbolização, possibilitado pela aceitação de uma perda de gozo. Que elementos da estrutura narrativa nos mostram estes saltos? É o que veremos a seguir.

Faremos algumas relações entre a estruturação desta trama e os tempos de constituição do sujeito. Alguns pontos de giro e virada na trama de Os Guerreiros foram exemplificados de modo a fazer alusão aos impasses específicos que o sujeito deve enfrentar para constituir-se enquanto tal, reestruturando suas experiências através de um processo de elaboração (simbolização) que provoca deslocamentos. A construção desta narrativa é mais um meio pelo qual as crianças podem elaborar a questão da castração.

Lacan confere um destaque especial à castração como operação simbólica fundante que separa a criança do corpo da mãe, interditando este gozo e abrindo caminho para que ela se constitua como um sujeito desejante. Esta via, como afirma Petri (2008), é aberta pelo sujeito na infância e percorrida vida afora. A função paterna é responsável por esta interdição fundamental que ordena o real, barra o insaciável desejo materno e abre efetivamente a possibilidade do sujeito emergir e sair do lugar no qual a criança é falada pela mãe.

 

Os guerreiros

A elaboração da história iniciou-se com a criação e caracterização dos personagens seguida pela etapa da escrita – na qual fomos escribas das crianças que assim puderam se dedicar ao processo de criação e estruturação de uma narrativa. Finalizado isto, o próximo passo foi transpor e adaptar a narrativa, subdividida em três histórias articuladas entre si e com títulos diferentes, para uma revista em quadrinhos. Passemos à narrativa:

"Desde o inicio do mundo existia o exército fantasma que dominava o mundo e ninguém conseguia derrotá-lo. Há mil anos surgiram os andróides e durante um longo período aprisionaram o exército fantasma. Após certo tempo eles percebem que precisam de um líder para comandar o exército. Constroem então o XP e passam a dominar o mundo. Enquanto isso... Mestre X quer destruir os andróides e libertar os fantasmas do domínio do mal. Ele sabe que sozinho não pode vencer o exército. Ele intui que o Lutador Feijão poderia se tornar um ótimo guerreiro. Pede permissão ao pai do lutador feijão para treinar seu filho. Como o pai do Lutador Feijão aceita esta proposta, Mestre X começa a treiná-lo e o ensina usar a arte dos sabres e da levitação, para juntos derrotar o XP e os andróides. Será que eles vão conseguir..."

A narrativa se inicia com uma situação de equilíbrio, pois quase não existe conflito, a força do exército fantasma é tal que a idéia de um outro para enfrentá-lo ainda é muito precária. Este "desde o início do mundo" acentua a onipotência que o leitor atribui ao exército fantasma, que parece absoluto, eterno. Um dos sentidos atribuídos à palavra exército é grande multidão, que tem um caráter de força difusa e não organizada.

Rapidamente o exército é colocado no lugar de um objeto de poder e de disputa entre os andróides e Mestre X. O interessante é que cada um desses dois agentes acaba se duplicando de forma distinta, dependendo do teor da relação estabelecida com o exército fantasma. No caso dos andróides, buscam dominar o exército fantasma e isto não consiste apenas no seu aprisionamento, trata-se também de encontrar um líder para comandá-lo - XP. No caso de Mestre X, o que busca é libertar o exército fantasma do domínio do mal – os andróides. É nesse ponto que Mestre X encontra um guerreiro aliado, mas um aliado que ainda não está constituído enquanto tal, é preciso apostar nele, treiná-lo para que ele de fato se converta no lutador que já está inscrito no nome que Mestre X lhe dará. Neste ponto da narrativa o lugar do Outro é ocupado por Mestre X que tem a mesma função que a mãe tem para o sujeito, cabendo a ela apostar que o bebê que está esperando é um sujeito. É a partir desta aposta que se constitui um sujeito falante.

Outro elemento muito importante é introduzido neste momento: o pai do Lutador Feijão, cuja autorização é imprescindível para que Mestre X tome seu escolhido em treinamento. Ou seja, o Outro aqui percebe-se castrado, reconhece seus limites e as leis que regulam seu desejo.

Lutador Feijão, por sua vez, está numa posição de alienação ao discurso e ao desejo do Outro – momento necessário para que a criança se estruture como sujeito. "Tá bom" é a única frase que o Lutador Feijão consegue enunciar.

"Mestre X e Lutador Feijão lutam contra os andróides e derrotam o XP. Porém, antes de morrer, XP joga uma maldição: o exército fantasma é sugado para dentro do Lutador Feijão e ele tem 24 horas para encontrar a chave do portal ou o mundo irá acabar. O Lutador Feijão se torna uma bomba relógio e surge uma cicatriz em sua barriga, que parece uma fechadura. Eles percebem o enigma da chave e decidem procurar o sábio em busca de alguma resposta. O sábio mora num campo de flores. Para chegar lá devem enfrentar muitas dificuldades"

A maldição do XP tem uma direção que vai na linha da intervenção do pai terrível do segundo tempo do Édipo, que priva a mãe de falo e frustra o sujeito que não pode usufruir desse falo. Mestre X e Lutador Feijão vencem os andróides e XP, porém, permanecem sem acesso aos fantasmas que pertencem e não pertencem ao corpo do Lutador Feijão. Como conseqüência desta maldição, emerge o sujeito dividido/barrado frente ao mal-estar. A partir daí é criado um enigma para o qual a díade Mestre X – Lutador Feijão não tem resposta, o que promove a busca de um terceiro – Sábio – que está no lugar do Outro, a quem o sujeito supõe um saber.

Dois significantes aparecem neste momento da narrativa – cicatriz e bomba relógio - que parecem falar das marcas de um trauma sofrido e da pressão que elas implicam, pois forçam o sujeito a lhes conferir um sentido próprio e singular. O interessante é que este sentido vai ser rapidamente criado em torno de dois outros significantes: fechadura e chave, opostos que se complementam numa relação de encaixe e desencaixe; ou seja, numa relação que não fixa as partes, mas que tem como função a abertura e o fechamento. Abertura já que existe um movimento de busca de respostas para os enigmas com os quais o sujeito se depara. Fechamento porque nessa busca o sujeito se confronta com obstáculos e com algo que sempre permanece inacessível.

"No caminho encontram três fantasmas que também estão procurando a chave do portal. Eles já sabem que a Dona Flor é a salvação. "Os três fantasmas dizem para o Mestre X e o Lutador Feijão que eles nunca encontrarão a chave"

Esses três fantasmas transmitem uma mensagem bastante enigmática para Mestre X e Lutador Feijão : "Dona Flor é a salvação". O significante flor aparece pela segunda vez – campo de flores e Dona Flor – conferindo um sentido para a busca do sujeito, já que o sábio procurado mora num campo de flores e Dona Flor é a salvação. Além disto, o tema da diferença sexual começa a ser explorado, através do personagem de Dona Flor - única personagem feminina da trama – que representa a salvação.

Outro elemento ambíguo na mensagem transmitida pelos fantasmas é que a chave procurada nunca será encontrada. Isso nos faz pensar que a elaboração nunca é toda feita. Há sempre algo, um real que não é simbolizável, embora não deixe de ter efeitos. A fala não dá conta de esgotar o sentido. A fala é insuficiente para dizer completamente o desejo, ao mesmo tempo em que só ela é capaz de imprimir-lhe algum movimento na busca eterna de apreendê-lo.

"A dupla resolve, então, usar a capa da invisibilidade para seguir os fantasmas. Eles vão em direção ao castelo dos fantasmas. Na entrada do castelo há um dragão com três cabeças que, com seu faro, sente o cheiro do Mestre X e do Lutador Feijão. Eles lutam com o dragão, descobrem seu ponto fraco na barriga e o destroem. Entram no castelo com o sábio, que tinha sido aprisionado. Perguntam sobre a chave e o sábio conta sobre Dona Flor, que está na mão dos três fantasmas. Os fantasmas surgem nesse momento...A bomba marca 10 segundos: 10, 9, 8, 7, 6, 5, 4....O sábio corre, arranca dona Flor das mãos dos fantasmas, ela solta seu odor e ele a encaixa na barriga do Lutador Feijão. Os fantasmas são liberados e o Mestre X se torna o líder deles, agora sob o domínio do bem... pelo menos por enquanto"

Aqui os heróis enfrentam um problema: precisam seguir os fantasmas para que eles os levem até a chave, porém, não podem ser reconhecidos. Usam a capa da invisibilidade, mas outro signo os revela – seu cheiro – um elemento importante também no caso de Dona Flor, pois ela só é encaixada na barriga do Lutador Feijão depois que solta o seu odor. O significante "barriga" aparece pela terceira vez - na primeira estava associado à cicatriz, depois a ponto fraco e agora a um lugar onde se dá o encaixe – revelando os saltos que vão se dando na simbolização da castração, de ferida e fraqueza para aquela diferença que possibilita o encontro erótico.

A narrativa termina com uma abertura, de prospecção para o futuro "Pelo menos por enquanto...", evidenciando a continuidade de um conflito que não cessa. Sempre haverá angústia, especialmente porque agora o sujeito se defronta com uma questão ética, onde começa a se perguntar no que consiste o bem e o mal.

Como esta narrativa corresponde a uma história em quadrinhos, muitos de seus elementos se expressam justamente na relação entre a imagem e a escrita, isto seria um tema para um próximo trabalho. De qualquer modo, vale a pena mencionar que na última cena o Lutador Feijão dorme como uma criança, enquanto o Mestre X se vangloria com uma coroa dizendo: "Eu sou o líder". Tratar-se-ia aí de um retorno à posição inicial de alienação ao desejo e ao discurso do Outro? Lidamos com repetições durante todo o tratamento e no processo de constituição do sujeito. Nessas repetições novos elementos são introduzidos a cada vez, novas associações se fazem e, através disto, o sintoma se põe a trabalhar, seguindo a via da significância. É por aí que se dá a escuta e a leitura do analista.

 

Notas

1. Só depois. Conceito lacaniano fundamental que diz respeito a significação posterior de um evento anterior.

 

Referências Bibliográficas

Bernardino, L.M.F. (2006). A abordagem psicanalítica do desenvolvimento infantil e suas vicissitudes. In, (org.) Bernardino, L.M.F., O que a Psicanálise pode ensinar sobre a criança, sujeito em constituição (pp. 19-41). São Paulo: Escuta.

Besset, V.L; Rubim, L.M (2007). Psicanálise e Educação: Desafios e Perspectivas. In Estilos da Clínica: Revista sobre a Infância com Problemas, ano XII, 23, 36-53

Gueller, A. S. (2008). Caso Hans: o passo de Freud a Lacan. In (org.) Gueller, A. S. e Souza, A. S. L., Psicanálise com crianças – perspectivas teórico-clínicas (pp. 87-95). São Paulo: Casa do Psicólogo.

Petri, Renata (2008). Psicanálise e Infância: clínica com crianças. Rio de Janeiro: Companhia de Freud.