7Entre o "não saber fazer" na psicose e o desejo de continuar tentandoO discurso da competência como fator de desautorização docente author indexsubject indexsearch form
Home Pagealphabetic event listing  




 ISBN 978-85-60944-12-5

An 7 Col. LEPSI IP/FE-USP 2009

 

8/11 - COLÓQUIO-COMUNICAÇÕES LIVRES

 

Transmissão e subjetividade: relato de uma experiência em formação de professores

 

 

Marcia Regina Fogaça1

Doutoranda pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo,pesquisadora do LEPSI IP/FE-USP, mfogaca@usp.br

 

 


RESUMO

O presente relato se refere a uma experiência pessoal desenvolvida como docente no ensino de disciplinas de Psicologia para alunos de primeiro ano de um curso de Pedagogia de uma instituição privada, então recém aberta, na periferia de São Paulo, cujos alunos, em sua maioria, são oriundos de escolas públicas dessa mesma periferia. A concepção de transmissão no ato educativo trabalhada em minha dissertação de mestrado – que o entende como um ato em dois tempos no qual o primeiro ata o sujeito aos significantes que vêm do Outro, alienando-o a um discurso do qual deve, num segundo momento, separar-se – norteou essa que foi minha primeira experiência como docente no ensino superior. Tendo como pressuposto a impossibilidade da educação – tal como a psicanálise a coloca – me lancei a enfrentar o desafio em que consiste um trabalho de formação de profissionais de educação. Alguns pontos da reflexão acerca desse "enfrentamento" dizem respeito à perplexidade diante do quadro com o qual me deparei quanto às dificuldades da grande maioria dos alunos em relação a conteúdos disciplinares mínimos exigidos para um aluno de ensino superior. Essa perplexidade pode ser resumida em uma pergunta que, então, surgiu: "se 'aquele que ensina o faz, obviamente, porque, alguma vez, deve ter aprendido, ao menos, aquilo que tenta transmitir' (Lajonquière, 1997) o que essas pessoas irão ensinar quando forem professores?" Como contraponto a tal pergunta surgiu uma questão "o que eu posso ensinar a essas pessoas?", cuja resposta me apontou o ponto de onde partir, aliás, em qualquer ensino: transmitir o que não pode deixar de ser transmitido em qualquer ato educativo, ou seja, uma posição subjetiva que implica um posicionamento ético: considerar aquele que está diante de mim como um sujeito de desejo. As decorrências desse posicionamento são parte da experiência objeto deste relato.

Palavras-Chave: Psicanálise, educação, transmissão, formação de professores.


 

 

O presente relato traz uma reflexão sobre uma experiência pessoal como docente no ensino de disciplinas de Psicologia para alunos de primeiro ano de um curso de Pedagogia de uma instituição privada, então recém aberta na periferia de São Paulo, cujos alunos, em sua maioria, são oriundos de escolas públicas dessa mesma periferia.

Embora tenha assumido várias salas durante aquele ano de 2007, inclusive duas do Curso de Letras, vou me reportar a que foi minha primeira turma do Curso de Pedagogia por vários motivos, entre os quais vou destacar os seguintes pontos:

O primeiro motivo se explica na medida em que, assim como se diz que o primeiro amor nunca se esquece, aqui também se trata de uma experiência inaugural, que adquire força e significado pelo simples fato de ser inaugural.

O segundo motivo também é muito fácil de ser explicado e compreendido, pois penso que, pisar em uma sala de aula, pela primeira vez como professora universitária, e se deparar com 110 pessoas ajeitando suas cadeiras para se sentarem, fazendo um barulho infernal ao arrastá-las no chão e depois vê-las sentadas te olhando, esperando que você diga a que veio, deve produzir algum tipo de impacto em qualquer mortal. Em mim, o impacto produzido se traduziu em uma dúvida inquietante : " Como vou dar conta de meus objetivos com tantos alunos em sala?!"

Na verdade, o número de alunos foi só o aperitivo de meu susto. Logo em seguida constatei, através de uma conversa inicial , na qual os alunos se apresentaram e falaram sobre os motivos pelos quais estavam ali, que a maioria deles aí estavam para aproveitar uma oportunidade a eles oferecida e/ou porque gostavam de crianças. Apenas uma pequena minoria buscava formação porque já atuava ou pretendia atuar em alguma área da educação. Em relação ao aproveitamento da oportunidade a eles oferecida, colocada por cerca de 90% dos alunos como motivo principal para estarem ali, constatei tratar-se da oportunidade de fazer um curso superior – coisa que a maioria também nunca havia cogitado para suas vidas – com bolsa integral e, além disso, integrar um programa do governo estadual que lhes daria um auxilio financeiro na forma de uma bolsa formação. Tais constatações instalaram uma pulga atrás de minha orelha.

Pessoalmente, sempre fui da opinião de que os profissionais da educação que trabalham com crianças deveriam ser os mais bem "formados", entendendo aqui por formação algo que comporta um saber tanto da ordem da episteme quanto da ordem de um savoir-faire2 , que possibilitaria um ensino fundado na autoridade auferida por esse saber. Autoridade no sentido de, como diz Hannah Arendt, o professor ser "a pessoa que, seja dada a isso a forma que se queira, sabe mais e pode fazer mais que nós mesmos." (ARENDT, 1972, P. 231)

Como psicanalista atravessada por questões relativas à educação, tendo como pressuposto a impossibilidade da educação tal como Freud a preconiza – enquanto impossibilidade lógica e estrutural de toda relação de se estabelecer como completa/toda – e bem informada acerca do que se afirma em relação aos fracassos de toda ordem que medram no campo educativo, me julgava razoavelmente bem preparada para enfrentar uma sala de alunos no início de sua formação oficial de professores.

Deixando em "off" o impacto inicial da primeira aula, contava naquele momento, com uma idéia bastante clara a respeito do que julgava importante transmitir a meus alunos em termos de conteúdo relativo ao campo da Psicologia. Pensava iniciar o curso levando-os a refletir sobre a questão do conhecimento, do desejo de saber do Homem que o leva a criar explicações para a origem das coisas e acontecimentos da vida, que essas explicações, inicialmente e do ponto de vista histórico, criaram mitos que mais tarde, em nossa cultura se configuraram como Ciência. Concomitantemente, a Psicologia, enquanto conhecimento que se afirma sobre algo que diz respeito a algo que chamamos de psique, também tem sua história. Ao longo do tempo, as concepções a respeito de fatos psicológicos foram mudando, acompanhando as idéias de conhecimento da cada época, quer para aderir, quer para criticar, quer para influenciar, até culminar na separação da Filosofia que a Psicologia moderna efetua. A partir daí, introduziria a Psicologia moderna desde sua origem, ainda mesclada a concepções filosóficas e o "desejo" de se tornar científica que a conduziu a aproximar-se da fisiologia, da experimentação e da observação em laboratórios, assim como, a definir seus objetos como unidades bem delimitadas a partir das quais se podia, experimental e controladamente, propor leis, ou seja, tomar acontecimentos psicológicos como sendo da ordem do universal, do previsível, do repetível e do controlável. Pensava tornar claro para meus alunos, que é nesse marco cientificista, de pretensão de poder afirmar enunciados válidos para todos os indivíduos, que surgiram as teorias que iríamos estudar ao longo do curso, quais sejam, as teorias do desenvolvimento. Como não poderia deixar de ser, pretendia empreender a crítica dessas teorias a partir da psicanálise, centrando tal crítica na questão da psicologização da pedagogia, que Leandro de Lajonquière (LAJONQUIÈRE,1992) tão bem chama de (psico)pedagogia, ou seja, o discurso hegemônico da pedagogia. Minha "teoria", baseada na concepção de transmissão no ato educativo que havia trabalhado em minha pesquisa de mestrado (FOGAÇA, 2005)3 , era que, para que os alunos pudessem empreender a crítica ao discurso hegemônico na pedagogia, deveriam, antes de mais nada, conhecê-lo. Foi nesse sentido que concebi meu plano de curso.

Porém – e aqui entramos no quarto motivo que me levou a dedicar uma especial reflexão sobre essa turma de alunos – antes da segunda aula, fui informada pela coordenação do curso que a turma em questão estava inserida num projeto do governo estadual, O Programa Ler e Escrever,

" lançado pelo governo paulista em agosto de 2007...para garantir que até 2010 todas as crianças de até 8 anos matriculadas na rede pública estadual de ensino de São Paulo estejam plenamente alfabetizadas e para que haja recuperação da aprendizagem de leitura e escrita dos alunos de todas as séries do Ensino Fundamental (EF)."

Disponível em: < (http://lereescrever.edunet.sp.govbr/site>. Acesso em: 03/04/2009).

Sendo que,

"A primeira fase do Programa Ler e Escrever teve início em 2007, com a implantação das iniciativas nas escolas da capital paulista, especialmente com a adoção do Bolsa Alfabetização, a partir do segundo semestre do ano, e com a formação de professores para a implantação do Programa em sala de aula em 2008.O programa promove a capacitação de educadores conjugada às diretrizes, conceitos, formato e materiais de apoio que foram especialmente desenvolvidos para as ações da iniciativa, relacionadas à 1ª, 2ª,3ª e 4ª séries do EF. Para a 1ª série do EF, o Ler e Escrever instituiu o Projeto Bolsa Escola Pública e Universidade na Alfabetização, que permite a atuação de um aluno pesquisador nestas classes...Os alunos pesquisadores são universitários dos cursos de graduação ou pós-graduação de Pedagogia e Letras indicados por instituições de ensino superior conveniadas. Eles contribuem com os professores regentes das classes de 1ª série auxiliando no atendimento às crianças em processo de alfabetização, na organização das aulas e na assistência aos alunos.O Bolsa Alfabetização, forma também uma importante ponte entre o âmbito universitário e a prática em sala de aula. Assim, o projeto, além de atuar efetivamente na melhoria das condições de alfabetização oferecidas às crianças do Estado de São Paulo, contribui para a formação dos futuros professores do Ensino Fundamental. Investir na qualidade da formação de base é essencial para que as crianças possam desenvolver, adequadamente, suas potencialidades de construção de um futuro com perspectivas de inserção social muito mais amplas. Desta forma, ao implementar o programa, a Secretaria de Educação age efetivamente na consolidação de soluções que permitirão a melhoria das condições de ensino em toda rede estadual."

Disponível em: < (http://lereescrever.edunet.sp.govbr/site>. Acesso em: 03/04/2009.

Em função da inserção, da turma de alunos em questão, em tal Programa, teria/tive que ir "direto" para as teorias do desenvolvimento e da aprendizagem, ou seja, a teoria de Jean Piaget, que fundamenta a teoria da psicogênese da língua escrita de Emília Ferreiro que, por sua vez, deve fundamentar teoricamente a atuação do professor alfabetizador. Ou seja, fomos, os alunos e eu, atropelados por mais uma tentativa oficial de dar conta da impossibilidade de haver relação, neste caso, entre o adulto e a criança presentes no ato educativo, ou, em outras palavras, fomos atropelados pela ilusão de que diretrizes oficiais que implicam na adoção compulsória de métodos pedagógicos por parte dos professores vai dar conta de eliminar os fracassos, aqui referentes à alfabetização de crianças. Mais uma pulga atrás de minha orelha, uma vez que, para que meus alunos não entrassem "de cara" como fracassados no empreendimento para o qual estavam sendo convidados, eu não poderia simplesmente desqualificar o discurso4 que o sustenta como tábua de salvação das gerações presentes e futuras. Mesmo porque, além de tudo, teria perdido meu emprego e a oportunidade de fazer algo para o que me sentia convocada. Algo a ver com o pagamento de parte de uma dívida simbólica, aquela que, mais uma vez Leandro de Lajonquière define tão bem em relação ao ato de ensinar:

" ...aquele que ensina o faz, obviamente, porque, alguma vez, deve ter aprendido, ao menos, aquilo que tenta transmitir. Aquilo que o mestre ensina, embora seja dele pois o apr(e)endeu, não lhe pertence. O aprendido é sempre emprestado de alguma tradição que já sabia o que fazer com a vida. Assim, aquele que aprende de fato contrai automaticamente uma dívida que, embora acredite às vezes tê-la com seu mestre ocasional, está em ultima instância assentada no registro do ideais ou do simbólico." (LAJONQUIÈRE, 1997)

Lancei-me ao trabalho e me dei conta de que toda problemática que havia constatado até então – quantidade de alunos, ter tido que mudar meu plano de trabalho para seguir a determinação institucional – era "fichinha" frente ao panorama que se descortinou diante de mim naquele momento. Quando, nas primeiras aulas, propunha aos alunos discussões a respeito de noções como educação, aprender ensinar, escola – tanto para me situar quanto ao que pensavam, quanto para introduzir uma certa metodologia dialógica nas aulas – percebi que havia uma grande dificuldade generalizada de falar e de se expressar. Quando convocados a falar, respondiam com um silêncio semelhante a um mutismo e quando falavam, a não ser com raras exceções, tinham muita dificuldade em expressar o que pretendiam dizer. Momento seguinte, quando convocados a escrever o que pensavam, a situação se complicou ainda mais. Resumindo, os alunos não sabem escrever5 – e essa problemática aparece de maneira generalizada nessa instituição e em outras, segundo informações de colegas que trabalham em diversas instituições semelhantes. Somado a tal fato, não se lembram ou desconhecem conteúdos escolares que deveriam servir de pressuposto para um ensino universitário, tais como, conteúdos de história que permitem a contextualização de algo a que se está referindo, ou regras da língua portuguesa que permitiriam fazê-los perceber que escreveram uma frase sem sujeito, por exemplo, o que torna a frase sem sentido. Mais graves, casos de alunos que insistiam em que ali no papel estava escrito algo que eles me diziam ali no momento, como se houvesse correspondência imediata e mágica entre seu pensamento expresso em palavras e o texto escrito. Frases sem sentido, quer pela ausência de elementos indispensáveis para a formação de uma frase, tais como os conectivos, quer pelo uso de palavras equivocadas em sua significação. Erros ortográficos, colagens de pedaços de textos lidos ou ouvidos em lugares que não cabiam no texto, e, quase em sua totalidade, transcrição da linguagem oral.

Minha perplexidade diante do quadro acima descrito foi grande, apesar de todas más notícias chegadas através da mídia, de pesquisas acadêmicas, de colegas. Essa perplexidade, que perdura, pode ser resumida em uma questão – acompanhando Lajonquière (LAJONQUIÈRE, 1997) em sua formulação de que "aquele que ensina o faz, obviamente, porque, alguma vez, deve ter aprendido, ao menos, aquilo que tenta transmitir" – : o que essas pessoas, meus alunos, irão transmitir a seus alunos quando forem, por sua vez, professores?

Meu trabalho prosseguiu, tendo que elaborar, entre uma aula e outra, o luto de meu lindo projeto inicial que tinha ficado parcialmente inviabilizado. Por um lado, pelas vicissitudes da vida, mas principalmente por eu ter caído nas armadilhas iluministas do discurso chamado por Lacan de Universitário/Ciência, ou seja, de contar com um aluno objeto idealizado aberto a receber e incorporar as maravilhas do conhecimento que eu poderia lhe proporcionar. Foi necessária uma mudança no olhar/escutar aquelas pessoas, meus alunos, a partir da suspensão de qualquer juízo para que a direção de meu trabalho mudasse. Apesar de, naquele momento continuar sendo uma professora contratada para dar conta de um determinado conteúdo curricular segundo os objetivos da instituição, que por sua vez se afinavam com os do programa do governo no qual os alunos estavam incluídos, penso que consegui encontrar um lugar – nada confortável, porém muito menos angustiante e paralisante – naquela relação professor-aluno.6 Tal posição permitiu o exercício de uma crítica tanto do currículo quanto do programa de governo – que ignoram o aluno real ao qual se destinam – sem simplesmente desautorizá-los, e sim , promovendo um giro discursivo me dirigindo àquelas pessoas, meus alunos, enquanto sujeitos de desejo. Penso que tal ato causou, em muitos deles, o efeito de um susto semelhante ao que levei com eles de início. Demoraram certo tempo para sair do mutismo cultivado, por um lado, por anos de uma escolaridade que trabalha nesse sentido e, por outro, pelo suposto saber do discurso, neste caso literalmente, universitário, com o qual se depararam na faculdade. Muito me auxiliou, em vários momentos, contrapor minha questão angustiante "o que essas pessoas vão ensinar a seus alunos quando forem professores?" – o que corresponde a "o que posso fazer para tapar os buracos com os quais elas se apresentam?" – com outra pergunta : " o que de fato posso ensinar a essas pessoas?"

Uma vez mais inspirada pelas palavras de Lajonquière (LAJONQUIÈRE, 1992) sobre as aprendizagens entre o conhecimento e o saber e em minhas próprias reflexões sobre a questão da transmissão, montei um programa mínimo/óbvio: transmitir o que não pode deixar de ser transmitido em qualquer ato educativo, ou seja, uma posição subjetiva que implica um posicionamento ético, qual seja, o de considerar o outro como sujeito de desejo.7 Sendo assim, tudo que se ensina/coloca em signos o outro apre(e)nde segundo seu desejo e estilo cognitivo. A diferença que posso fazer aqui é a de dar testemunho de ser sujeito de desejo – portanto submetida à lei da castração –, de um certo estilo cognitivo e de uma determinada relação com o objeto de conhecimento que está em jogo na transmissão – ancorada num conhecimento epistêmico com uma certa consistência para sustentar, ainda que provisoriamente, a suposição de saber dos alunos .

Em relação à questão da sustentação de uma suposição de saber – a ser suplantada tanto pelo aluno, quanto pelo professor – se encontra instalado, a meu ver, algo de sintomático no ensino escolar brasileiro. Não tenho condições de fazer, neste momento, qualquer análise mais profunda a respeito, apenas posso afirmar o que pude constatar com meus alunos oriundos de escolas públicas. Estes, de forma quase generalizada, suscitam a persistente pergunta: se "aquele que ensina o faz, obviamente, porque, alguma vez, deve ter aprendido, ao menos, aquilo que tenta transmitir", o que essas pessoas irão ensinar a seus alunos quando forem professores, se sua formação escolar não lhes garantiu a consistência – imaginária como toda consistência – epistêmica necessária para sustentar uma suposição de saber relativo ao mínimo que se pede a um professor alfabetizador que é que este saiba escrever? Por outro lado, como o que, fundamentalmente, está em jogo na transmissão é algo da ordem de um testemunho de uma posição subjetiva, de assujeitamento à lei do Outro da cultura e da linguagem, pode-se pensar que, para além do saber epistêmico é possível se ensinar o que não se sabe? Segundo Freud os mestres transmitem, sem o saber, para além da episteme, algo que passa por suas pessoas:

" é difícil dizer se o que exerceu mais influência sobre nós e teve importância maior foi a nossa preocupação pelas ciências que eram ensinadas, ou pela personalidade de nossos mestres. É verdade, no mínimo, que esta segunda preocupação constituía uma corrente oculta e constante em todos nós e, para muitos, os caminhos das ciência passavam apenas através de nossos professores." FREUD (1914:286)

Porém, o para além não equivale a sem, isto é, o para além do saber epistêmico não dispensa o saber epistêmico, pelo contrário, se sustenta nessa relação ao Outro no qual ambos se constituem. Muitos dos alunos, nas condições desses dos quais falo, se dão conta da falta do conhecimento necessário para "acompanhar" as disciplinas de curso superior. Muitos desistem do curso em função dessa constatação. Outros desistem sem se dar conta do fato. Alguns outros persistem e desses, dos que persistiram da turma da qual estou tratando, formei um "grupo de elaboração de perguntas" , no qual cada aluno, se utilizando das leituras feitas durante os cursos de psicologia geral e do desenvolvimento, formulou uma questão como tentativa de dar conta de um certo encontro – que alguns concluíram e outros ainda concluirão, ou não, tratar-se de um desencontro – entre a teoria que aprenderam e as crianças das salas de aula que acompanham. E é aí, principalmente, que vejo como se imbricam a formação de profissionais da educação e a criança-sujeito, tema deste colóquio. É buscando o sujeito nessas crianças que, como num espelho, esses futuros professores se reconhecem como sujeitos, como crianças-sujeito, como sujeitos de uma infância recalcada e, de alguma forma, passam a poder sustentar algo da ordem de um saber, ainda que, na ordem do conhecimento epistêmico, continuem correndo atrás do prejuízo.

***

É obvio que o relatado, além de não ser nenhuma novidade, não quer fazer crer que, atuar visando o sujeito, faz desaparecer os chamados problemas da realidade: questões salariais, implantação de programas de governo, esvaziamento de currículos, discursos desvalorizantes de alunos e desautorizantes de professores, etc..Tampouco pode ser resultado de uma vontade deliberada, na medida em que, a transmissão de subjetividade, de assujeitamento à lei da castração, se dá de forma fundamentalmente inconsciente, no para além.

Porém, penso que esta reflexão pode servir como um lembrete, um certo alerta em relação às inúmeras armadilhas imaginárias que a posição de professor/formador nos apresentam no sentido de sentirmo-nos tentados a nos instalar no lugar discursivo da ordem da mestria universitária – que coloca o aluno como objeto – sendo que, o que faz uma educação possível é o aluno poder se colocar como agente do discurso enquanto sujeito ($) desejante. Isto ocorre a partir do deslocamento discursivo – tal como propõe Lacan em sua teoria dos quatro discursos já mencionada – produzido quando o professor pode se colocar como outro da demanda desejante do aluno, ou seja, sustentar uma posição de saber suposto para, em seguida, através de um novo deslocamento tornar-se causa do desejo de saber do aluno para, novamente, através de um outro deslocamento,voltar a ocupar o lugar de mestre/universitário, ou seja, daquele que sabe do que está falando, demanda um saber do aluno e o leva o a desejar saber – e assim, sucessivamente.

 

NOTAS

1 Psicanalista, Mestre e Doutoranda em Educação pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, pesquisadora do LEPSI IP/FE-USP, mfogaca@usp.br.

2 Lacan faz a distinção entre o savoir-faire e a episteme como duas faces do saber. O primeiro se refere ao desejo, à existência, à impossibilidade de saber sobre o desejo, sobre o que o causa, ou seja, seu objeto. A segunda é resultado de uma interrogação, de uma depuração do saber.

3 Partindo de uma concepção de educação como transmissão de cultura, concluí que a transmissão é um ato em dois tempos. O primeiro ata o sujeito aos significantes que vêm do Outro, da cultura, alienando-o a um discurso do qual deve se separar, com o qual deve romper para poder se constituir como sujeito de seu discurso e então poder dar sua contribuição à cultura, retribuir, pagar sua dívida simbólica. Portanto, só há transmissão, efetivamente, se se produz, primeiro uma adesão ao "conteúdo" para em seguida promover um descolamento do discurso aprendido, em relação ao qual houve alienação, para que haja a produção de um discurso singular, de cada sujeito. Em última instância, trata-se de transmissão de subjetividade, de uma posição subjetiva de assujeitamento à Lei.

4 Maria Cristina Machado Kupfer (KUPFER,1999, cap.IV) , em uma "discussão" com Maria Helena Souza Patto sobre a questão do fracasso escolar , conclui que este é – entre outras coisas porém, fortemente – resultado de uma contradição interna do discurso social dominante no campo da educação que afeta diretamente as crianças: por um lado não se fala de outra coisa que não a "ruína do sistema educacional, na desvalorização do professor, na perda de sentido dos conteúdos escolares." e, por outro lado, " as crianças são levadas a pensar que a salvação está na escola." Embora a autora esteja falando de crianças, penso que todos alunos, independentemente da idade podem ser afetados por essa contradição.

5 Não sabem escrever um texto, que – segundo palavras da Prof. Claudia Rosa Riolfi no curso Escrita, Subjetividade e Ensino ( 2007) – deve fazer diferença com a linguagem oral, deve conter uma articulação de fonemas e semantemas (palavras) de tal forma que não seja uma justaposição e sim uma articulação nos sintagmas ( frases com sentido) de tal forma que seja possível uma previsão dos efeitos de sentido, ou seja, o outro ao qual o texto se destina.

6 Embora, a relação professor – aluno não exista do ponto de vista da possibilidade lógico-estrutural da existência de uma relação, ou seja da correspondência entre um e outro elemento de dita relação.

7 Se dirigir ao outro do discurso enquanto $ se dá dentro da estrutura discursiva denominada por Lacan de discurso do analista que, como pode-se verificar na escrita dos quatro discursos abaixo , é o avesso do discurso do mestre , aquele que agencia o saber do outro. O discurso da Universidade/Ciência chamado por Lacan de discurso do mestre moderno, por sua vez, também representa uma inversão no que se refere ao tratamento do outro .

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

FOGAÇA, M. R. Transmissão, o nó que ata e desata: uma leitura psicanalítica do ato educativo. Dissertação de mestrado. Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, 2005.

FREUD, S. (1914). Algumas reflexões sobre a psicologia escolar. In: Edição Standart Brasileira das Obras Completas. Rio de Janeiro: Imago,1974.

KUPFER, M. C. M. Uma educação para o sujeito : desdobramentos da conexão psicanálise-educação. Dat Def 02.06. 183 p.Tese (Livre Docência em Psicologia). Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, 1999.

LAJONQUIÈRE, L. De Piaget a Freud:para repensar as aprendizagens. A (psico) pedagogia entre o conhecimento e o saber. Petrópolis: Vozes, 1992.

________________. Dos "erros" e em especial daquele de renunciar à educação". In: Estilos da Clínica. São Paulo: IPUSP, v.2,n.2,p.27-43,jul./dez.1997.