7Transmissão e subjetividade: relato de uma experiência em formação de professoresOs equívocos da infância medicalizada author indexsubject indexsearch form
Home Pagealphabetic event listing  




 ISBN 978-85-60944-12-5

An 7 Col. LEPSI IP/FE-USP 2009

 

8/11 - COLÓQUIO-COMUNICAÇÕES LIVRES

 

O discurso da competência como fator de desautorização docente

 

 

Márcio Boaventura Jr.; Bárbara Oliveira Paulino; Marcelo Ricardo Pereira

Universidade Federal de Minas Gerais – CNPq e FAPEMIG

 

 


RESUMO

Lidamos hoje com a queixa de professores que se dizem "desvalorizados", "desrespeitados" e "desautorizados", além de denunciarem que os alunos, os não-mestres, "não querem saber de nada". Ao que parece, professores demandam ocupar uma função nostalgicamente idealizada e abnegada de outrora, mas encontram-se ocupantes tão-somente de um ofício sucumbido à atual massificação educacional, à aparente anomia das instituições sociais, ao aumento da violência urbana, à perplexidade e depauperação da escola de nossos tempos. Entretanto, a mística moderna não parece ter-nos dado outro destino senão o de uma crise política da autoridade, um declínio de um deus-pai perdido na origem e um desmentido de todo aquele que se diz mestre per si. "Deus está morto", diria Nietzsche, ou o "Pai está morto", diria Freud. Seria, então, o mestre uma contínua tentativa do homem de se espelhar e unir Pai e Deus? Ora, justamente por não ser nem Pai nem Deus, o mestre desde sempre, mas sobretudo agora, em nossos tempos, nunca foi tão interrogado. Sua função declinada tem levado professores a se perceberem cada vez mais como "Deuses de prótese" – se pudermos utilizar uma terminologia freudiana. Mas, afinal, como na prática os professores entendem e teorizam acerca desse declínio? Como constroem subjetividades levando-se em conta esse caráter de "prótese"? Quais são as estratégias subjetivas que esses professores inventam para lidar com a precarização imposta ao seu exercício profissional? E, por fim, será que existe diferença entre "mestres" que praticam seu ofício dentro ou fora da escola? A presente comunicação, extraída da pesquisa "A Subjetividade Docente Produzida em Tempos de Declínio do Discurso do Mestre, financiada parcialmente pela FAPEMIG e CNPq, pretende abordar os efeitos desse declínio na modernidade e como a subjetividade do professor é construída nesses tempos tidos como de destituição dos valores modernos, vigentes desde as chamadas revoluções liberais.

Palavras-Chave: Declínio do Mestre, Psicanálise do vínculo social, Competência.


 

 

Por que os professores de hoje se dizem tão desautorizados? É comum nas falas dos professores encontrarmos queixas que revelam um sentimento de desvalorização, desmoralização, desrespeito e, sobretudo, desautorização. A percepção desse discursso também ecoa junto aos teóricos da profissão docente que entendem que a função de professor em nossa contemporaneidade sofreu considerável desgaste intelectual, social, cultural e econômico.

No imaginário social, parece que o "mestre" idealizado de antigamente cedeu lugar a um profissional sucumbido à atual massificação industrial, comunicacional e tecnológica, bem como à inabilidade em lidar com a diversidade cultural nas instituições educativas.

A desautorização docente é tema recorrente. Professores se vêem às voltas com o ostensivo desgaste de seu oficio, além de terem de lidar com o indisfarçável desinteresse pelos estudos por boa parte do alunado. Normalmente os estudantes são apontados como agentes de desautorização e desrespeito à figura do professor através do escárnio, da afronta ou da apatia discente.

Um professor precisa fazer um esforço cotidiano para que seu lugar permaneça inteiro, antes de vazio. Há diariamente um exercício severo de restituir um lugar discursivo apagado pelo escárnio ou pelas políticas institucionais. Para isso, professores desdobram-se para estudar novas prescrições formativas e modalidades de planejamento; desenhar metodologias e estratégias de ensino menos tradicionais; buscar aquecer as aulas com novas tecnologias educacionais e novas "criações" dos tentáculos pedagógicos; bem como estabelecer práticas avaliativas menos ortodoxas, de acordo com alguma teoria efêmera, que contagia de tempos em tempos o meio educacional. Mas a realidade é precária: muitos docentes dominam pouco o que ensinam. No decorrer do tempo letivo, não conseguem cumprir todo o programa previsto, ministrando aulas sem muitos recursos ou inovações. Avaliam mal o que foi ensinado. Improvisam provas. Repetem exercícios ao longo dos vários anos e corrigem superficialmente os inúmeros trabalhos e avaliações acumuladas no decorrer dos períodos. Alguns revelam dificuldades de manter a disciplina e uma rotina de trabalho que envolva seus alunos. Boa parte deles tende a transformar suas tarefas em meras rotinas e considera sua profissão um complemento financeiro a outros empregos.

 

Deus-Pai

De modo análogo à desautorização do professor, o prenúncio nietzschiano "Deus está morto" vem sendo também estudado em grande parte da literatura acadêmica dos campos da filosofia, da sociologia, da antropologia, da história, como também da psicanálise. Teorias sobre a falência de instituições sociais, o aumento da violência urbana e da criminalidade, a perplexidade de projetos educacionais ante a diversidade cultural, em regra, vêm associadas a uma crise de autoridade, a um declínio de um deus-pai ou a uma deposição da sociedade eminentemente patriarcal.

Somos marcados hoje por evidentes indícios de uma Vatersehnsucht (nostalgia do pai) – termo de Freud (1913; 1923) – que entendem a civilização humana instaurada sob princípios de uma ética fraterna. Tal ética é revivificada na modernidade pelos ideais burgueses e liberais, estabelecidos em suas revoluções: a "Gloriosa", de 1688, em solo inglês, que garantiu que o poder da Coroa seria definitivamente repartido com o Parlamento, e que doravante nunca mais seria absoluto; a da "Independência", proclamada em 1776 pelos norte-americanos, que resultou na mais liberal (e talvez plagiada) constituição suprema de um Estado moderno; e, sobretudo, a "Revolução Francesa", de 1789, maior inspiradora política, cultural e intelectual da mística da modernidade, em cujo brasão cintila a tríade imortalizada na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, a saber, "liberdade, igualdade e fraternidade".

O Pater Pantôcrato (pai onipresente), de Platão, ou o Zeus, pai de todas as coisas, ordenador grego do cosmos, que se tornou o Deus do destino na revelação judáico-cristã, parece ter perdido seu fôlego em tempos modernos. Será mesmo? Será que esse Deus – mestre e pai – foi morto pelos revolucionários?

Talvez não seja tão simples. Mas é fato que a imagem do pai vem se tornando cada vez mais esgarçada, vaga, desnaturalizada e desacreditada. Quanto mais os denominados pelos historiadores de "pais sociais" forjam-se tirânicos, mais eles se vêem intimidados e desautorizados. O problema é que tanto prática como teoricamente não estamos mais sequer em posição de saber o que a autoridade realmente é, diz Arendt, em Entre o passado e o futuro (2002). A autora assevera, categoricamente, que a autoridade desapareceu do mundo moderno. E ela não está só. Suas idéias convergem também para um ponto nodal, a saber, a tese do declínio da imago paterna, apontada por muitos autores.

É Freud, contudo, quem tenta de todo modo salvar o pai, ao manter, ao longo de seus estudos, um enigma tão impenetrável quanto impreciso: o que é um pai? O autor, em Moisés e o Monoteísmo (1939), reconhece que os historiadores de então falam do envelhecimento da antiga civilização paterna e deífica, mas em vez de fazer coro com pensadores da época em anunciar um pai decaído como a grande razão para desilusão moderna, Freud parece ter revivificado o pai ao instituí-lo como morto, e por isso simbólico. Temos aí a antropologia psicanalítica da origem do humano e o fundamento da imagem providencial de Deus. Seguindo numerosas pistas de análise antropológica de sua época, Freud recoloca notadamente a problemática dual, de caráter hobbesiano, do "estado de natureza" e do "estado de cultura".

Sob a forma de mito, o autor apóia-se na concepção darwiniana de um tirano sexual, violento e enciumado, que guarda as fêmeas e expulsa os machos, suas crias, à medida que crescem. Daí, para além de Darwin, narra-se toda uma cena dramática em que os filhos revoltados matam o tirano, canibalizam-no irmamente e passam a gozar todas as suas fêmeas de modo incestuoso. O rito de antropofagia gera poder e culpa. Agora, não se trata apenas de se desfazer de um estorvo, mas de incorporá-lo. A prole revolta renega seu ato ao edificar um totem proibitivo e simbólico como substituto de um morto, que não é um qualquer, mas um pai inventado. Ninguém pode substituí-lo, sob o risco se ser igualmente morto. Para isso, o bando fraterno precisa de um esforço cotidiano para que seu lugar permaneça vazio. Tal bando passa, pois, a se impedir em virtude de uma "obediência adiada", resultando na invenção das instituições sociais e dos valores morais como hoje os concebemos.

Lacan desenvolve um modo peculiar da leitura dessa antropologia freudiana. Ele a interpreta como o Nome-do-Pai, que é a expressão que recupera e atualiza a noção freudiana de Pai, considerando-o não como o patronímico ou o pai da realidade biológica, mas como o da representação ou, mais precisamente, como o que exerce a função de metáfora. Nesse sentido, ele rege a constituição subjetiva por possibilitar a inscrição do desejo ao exercer interdição. Tal expressão ganhou vários conceitos em Lacan, porém aqui basta que o tomemos como uma metáfora que é operada por todos que se ocupam da função paterna, a exemplo dos que os historiadores chamam de "pais sociais": pais, professores, chefes, líderes, reis, deuses, tiranos, etc. Em outras palavras, como assinalara o próprio Freud: "O pai morto torna-se mais poderoso do que jamais fora em vida".

 

Mestre

Não obstante, na esfera educacional, o dilema do declínio docente parece se alinhar ao dilema do declínio do pai ou, mais precisamente, da sua imago. Porém é necessário que façamos a disjunção entre pai e mestre e também entre ambos e Deus. Isso revira as concepções mais tradicionais, que inevitavelmente tendem a fundi-los. Ao que parece, a idéia de mestria vem sendo tomada pela tradição do pensamento contemporâneo, talvez desde Santo Agostinho, como aquele elo comum que conjugaria o Deus-pai à sublime abnegação do homem ordinário. De um lado, temos Deus, pai e mestre, guardado e glorificado como tal. É um mestre per si, livre de suspeita ou dúvida. Do outro lado, temos o homem-mestre, como aquele que, mesmo terreno, abnega-se de sua banalidade e eleva-se à condição de semelhante Àquele que é. À diferença do primeiro, esse mestre só o é à custa de esforço e demonstração.

O humanismo dos tempos modernos mostra o quanto esse esforço e demonstração levam o mestre muitas vezes ao próprio declínio de sua função e desautorização política. A imanência liberal e racionalista da mística moderna emparelhou todos nós, essa confraria de republicanos, como propriamente iguais. Mas longe de sermos idealizados como tal, a descoberta freudiana já nos revelara que somos iguais tão-somente na precariedade e na insuficiência. O mestre deixa de ser o exemplo de magnificência, próprio da conjunção de pai e Deus, e passa a ser também um precário tanto quanto são seus comandados. Algo de sua autoridade é erodida e cinicamente debochada por parte dos não-mestres. O imperativo republicano legifera em favor do apagamento de nossas diferenças. Já não mais se pode notar tanto o degrau entre mestres e comandados. Além disso, a modernidade, que separa Estado e Igreja, solapa igualmente a fusão mestre e Deus. Mas, se o passo histórico foi inevitável e fundamental, ele não parece ter munido o mestre de estratagemas ou de um novo conceito que o fizesse não ser mais um nostálgico de uma ancestralidade perdida.

A atual ordem pedagógica cuida para que a questão da mestria seja equacionada ao nível do inexcedível, da transcendência dos valores morais, intelectuais e estéticos. Trata-se de uma ordem que respeita a mística moderna e o retorno aos ideais romanos de ter a magnificência sublime como fim. O professor estabelecido pelo discurso pedagógico, é aquele fixado a união Deus-pai. A abnegação exigida aos professores os tornam dóceis e devotados a uma causa sacrificial. Pode-se até mesmo fazer vista grossa a algum tolerável ímpeto colérico, próprio do exercício, desde que seja assegurada "a sagrada missão pedagógica" (LOPES, 2003).

Obviamente, as didáticas tradicionais, por sua própria natureza, desabonam qualquer prática de incivilidade vinda dos mestres que formam. Mas é possível tacitamente tolerar algum infortúnio desarrazoado desde que os valores régios da ordem pedagógica sejam mantidos e até reforçados pela cólera de uns poucos. É extraordinário perceber como o discurso pedagógico leva a todo custo seus mestres a tentarem abnegar-se de sua banalidade e elevar-se à semelhança do que é sagrado. À maneira romana, tornam-se exemplos a se seguir ao discursarem a partir do lugar da certeza. Porém, trata-se mais de uma tentativa do que de uma conquista. Por mais que o discurso pedagógico incuta valores românticos à formação e ao exercício docente, conferindo aos seus profissionais as mais altas exigências de sublimação e de apoteose, todo esse esforço não conhece êxito razoável, quem dera absoluto.

Para assegurar esse lugar do mestre no qual, entre outras qualidades, se exige uma prática didática razoável, sublimação, abnegação, certezas, e ainda, se é vigiado moralmente em suas atitudes, acreditamos que o discurso pedagógico acabou por criar o conceito de competência. Visa-se que o professor do dia-a-dia se reaproxime do discurso inalcançável da mestria, professado pelo pensamento pedagógico, confirmando assim o paradigma educacional moderno.

 

Discurso da Competência

O discurso pedagógico trata a noção de competência como não sendo estática, mas sim fortemente dependente do momento histórico de sua realização. Assim, ela se constrói e reforma-se em sua própria prática, no movimento dialético. Rios (2007) corrobora que a competência se revela na ação. Que é no labor que o docente revela suas capacidades, possibilidades e potencialidades. É na prática diária que se demonstra o domínio dos saberes e o compromisso com o que é necessário para educar.

Na contemporaneidade evidencia-se, cada vez mais, a exigência de um docente dotado de competência polivalente. O próprio Parâmetro Curricular Nacional, em seu texto, já roga que ao professor cabe trabalhar com conteúdos de naturezas diversas que abrangem desde cuidados básicos essenciais até conhecimentos específicos provenientes das diversas áreas de conhecimento. Este caráter polivalente demanda, por sua vez, uma formação bastante ampla do profissional que deve tornar-se, ele também, um aprendiz, refletindo constantemente sobre sua prática, debatendo com seus pares, dialogando com as famílias e a comunidade e buscando informações necessárias para o trabalho que desenvolve. Sendo instrumentos essenciais para a reflexão sobre a prática direta com as crianças a observação, o registro, o planejamento e a avaliação. Tudo isso traduz e reforça a idéia de magnificência do mestre. Se antes, o mestre ocupava o lugar da certeza, sua prática era inquestionável, agora vemos valorização de um profissional que interroga sua prática, porém, ele não o pode fazer sem deixar de se atualizar, adquirir habilidades e conhecimentos; ser um professor competente implica em um esforço contínuo e ao atendimento de complexas exigências.

Este novo paradigma limita a qualificação de alguém como competente pois agora há que verificar a qualidade do saber e a direção do poder e do querer que lhe dão consistência (RIOS, 2007).

Perrenoud, um dos grandes defensores do assunto na atualidade, propõe um "inventário das competências" que contribuem para redefinir o ofício do professor, baseando-se em um "referencial de competências, adotado em Genebra em 1996 para a formação contínua" (2000:12). A lista de competências do autor é composta por um grupo de 10 concepções, sendo elas (2000:14):

1. Organizar e dirigir situações de aprendizagem.

2. Administrar a progressão das aprendizagens.

3. Conceber e fazer evoluir os dispositivos de diferenciação.

4. Envolver os alunos em suas aprendizagens e em seu trabalho.

5. Trabalhar em equipe.

6. Participar da administração da escola.

7. Informar e envolver os pais.

8. Utilizar novas tecnologias.

9. Enfrentar os deveres e dilemas éticos da profissão.

10. Administrar sua própria formação contínua.

Tardif (2005) ainda afirma que no discurso docente as relações com os alunos constituem o espaço onde são validados sua competência e seus saberes.

Sedrez (1996) reafirma que o movimento histórico trouxe-nos até este tempo no qual há um "ritual de desqualificação" do professor que se origina de diversas questões como os professores trabalharem em várias escolas e ainda em outros empregos; não possuírem condições para ampliar suas competências, pois quase não há incentivos para isso; as escolas públicas carecem de recursos e as particulares primam pelos lucros e não têm a educação como meta; os docentes são pressionados a cumprirem um currículo extenso e muitas disciplinas tem excesso de carga horária; o programa de ensino, o livro, os critérios de avaliação são definidos pelo coordenador da área e/ou pela direção da escola; etc.

Para a autora, esse diagrama de trabalho "robotiza o professor, inverte seus valores morais, desfaz seu compromisso com a prática educativa humanizadora" (LIMA, 1987. p.2 apud SEDREZ, 1996). Para esses professores, a melhor Didática "é aquela que lhe permite sobreviver a cada dia letivo, mesmo que, para isso, ele tenha que mentir sobre o real conhecimento que é passado, mesmo que ele tenha que se iludir dizendo para si mesmo que faz o melhor que pode" (idem).

Segundo levantamento realizado em pesquisa realiazada por Aparecida Neri de Souza (SOUZA, 1996), para a classe docente, um professor qualificado, competente para a educação, é retratado como aquele que domina uma parcela do conhecimento, é criativo, politizado, tem empatia com os alunos, lê, estuda e pesquisa, não falta ao trabalho e cumpre os compromissos burocraticos.

Interessante ressaltar que na pesquisa realizada por Souza, os docentes entrevistados consideram-se qualificados como professor, no entanto, afirmam não conseguir atender a todas as qualidades que a própria classe se designa. Apesar da incompetência ou não qualificação não ser diretamente assumida pelos docentes entrevistados, é denunciada pelo colega que afirma que o problema da educação é o outro que não sabe ensinar, porque nao sabe o conteúdo; trata os alunos como inimigos; falta muito ao trabalho; não tem compromisso com a escola pública, é individualista, etc.

No que concerne aos professores, a nossa hipótese é de que a imagem de sucesso social hoje esta pautada cada vez mais próxima dos requisitos da competência. Como nos apontam os teóricos da formação docente é necessário ao professor apresentar diversas habilidades, capacidades, conhecimentos, etc. que irão lhe fornecer o status de profissional competente. Se possuir competências se tornou então o símbolo da aparência docente bem sucedida, em uma civilização da vergonha, aparentar não ter competência é motivo de desautorização?

Nesse ponto, cabe uma última digressão. Devemos saber diferenciar uma sociedade da culpa de uma sociedade da vergonha.

O século XX foi o palco do nascimento do paradigma da imagem e de seus excessos. Vivemos em uma sociedade que tem suas relações mediadas por imagens, predominando a afirmação da aparência, um monopólio cujo espetáculo é a principal produção da sociedade atual. Para Debord (1967) toda a vida das sociedades nas quais reinam as condições modernas de produção se anuncia como uma imensa acumulação de espetáculos. Tudo o que era diretamente vivido se esvai na fumaça da representação.

Segundo Pereira (2008), somos sujeitos de um tempo de bombardeio imagético e de empobrecimento da palavra. A contemporaneidade ao mesmo tempo em que revela a diferença, a captura "pelos tentáculos imaginários da indústria cultural, modismos e meios massificados de comportamento".

A concorrência de mercado e de capital produziu uma massa de pessoas voltadas para a economia. Por isso, passamos, em uma primeira etapa, pela busca do "ter". Depois utilizamos esse "ter" para "fazer aparecer" e assim enlaçar o outro como objeto que é a visada de seu desejo. As imagens produzidas tornaram-se reais e criaram uma série de indivíduos com esse mesmo comportamento, quase hipnótico. O espetáculo não está apenas nessas formas visuais, está em todas as funções que suas representações podem alcançar, das discussões mais triviais sobre futebol e novela a debates teóricos e acadêmicos.

A individualização do homem e o poder moderno que ele possui, criou todo esse espetáculo, um elogio a si próprio, um egocentrismo de uma sociedade que vive de imagens e de segregação. A sua origem é a perda da unidade do mundo, e a expansão do espetáculo moderno exprime a dimensão desta perda. Essa alienação produziu um homem que, quanto mais contempla, menos vive; quanto mais cria necessidades, mais distante encontra-se de seus desejos. Segundo Debord (1967), o espetáculo na sociedade corresponde a um fabrico concreto de alienação.

Para Enriquez, assistimos a passagem de uma civilização da culpa para uma civilização da vergonha. Uma sociedade da culpa seria aquela relacionada diretamente à interioridade, uma vez que o sentimento de culpa supõe uma luta interna no sujeito. O reconhecimento dessa luta interior nos coloca diante do desejado e do proibido, e assim, erro e sentimento de culpa, que só são possíveis de se desenvolver no que o autor denomina como um "universo do erro", se articulam e nos remetem para todos os elos que estabelecemos no mundo.

De outro lado, uma civilização da vergonha seria marcada pelo ato e pela aparência, uma sociedade que não experimenta a culpa. Se a importância está no ato e em sua visibilidade, qualquer ato pode ser executado, caso seja uma ação corajosa ou valorizada, deve ser exposta a todos, para que o indivíduo seja reconhecido por seu êxito, mas caso seja repreensível, só não deve ser descoberta. Não há culpa por violar a moral, somente a vergonha se essa violação se torna pública, entretanto "a vergonha não toca o indivíduo em sua intimidade, a toca em ser social, em sua aparência." (ENRIQUEZ, 2006, p.184). Dessa forma o que vemos sobressair em nossa cultura é cada vez mais a busca pelo sucesso social, pelo jogo de aparências, onde não importa mais o ser, ou mesmo o ter, mas sim o que se aparenta.

Voltando à questão vale interrogar novamente, se a competência é hoje a insígnia de sucesso de um professor, em uma civilização marcada pela vergonha, não estariam os professores desautorizados quando não aparentam possuir tal atributo?

Diante de tantos problemas no campo da educação no qual se atira para todos os lados possíveis em busca de alguém ou alguma coisa que possa ser responsabilizada por tantos desencantos, talvez podemos supor que a exigência das competências do docente seja um dos critérios de desautorização dos professores.

Podemos ir mais longe, levantando a hipótese de que esses pressupostos de competência da docência desautorizam de partida o professor real, que sabe a dificuldade, ou mesmo a impossibilidade em algumas situações, de alcançar essas qualidades idealizadas pela própria classe e corroboradas pela produção teórica, que cada dia mais enaltece e exige um professorado "mais capacitado".

A noção de competência é inerente a qualquer atividade profissional, inclusiva a docente, mas talvez agora haja uma externalização de seus pressupostos e conseqüentemente uma cobrança social acirrada dessas competências sobre o professor. Diferente do que acontecia com os mestres xamãs e sacerdotes de outrora, que conseguiam se travestir por muito mais tempo de Nome-do-pai, e com isso adquiriam uma aura mística de respeito e inquestionabilidade, o docente da atualidade se percebe cercado de olhos atentos que - conscientes de sua fraude como pai-morto - vigiam seu comportamento em sala de aula, policiam sua conduta, prejulgam suas atitudes, e o convida a constantes atualizações do seu saber afirmando, indiretamente, sua não completa qualificação para o exercício da docência.

Lima (1995) revela que o professor em todos os tempos e lugares, esforça-se para comporta-se como um profissional acima de qualquer suspeita. Nem mesmo o fracasso de seu trabalho o leva a reformular sua atuação como ocorre em outras áreas.

Os docentes assim vivem em busca do que Freud chamou de ideal-do-eu, uma instância pela qual "o ego se avalia, que o estimula e cuja exigência por uma perfeição sempre maior ele se esforça por cumprir." (1933). Esse ideal, que se apresenta em todos nós, como o representante das censuras morais e da tentativa de alcançar o aspecto mais elevado da vida do homem tem também seu aspecto social, constituindo o ideal comum de uma família, classe ou nação (FREUD, 1914). Entretanto, por seu próprio conceito inatingível, o ideal-do-eu ligado aqui ao ideal do profissional competente acaba por deixar os professores desamparados diante da ilusão de alcançá-lo.

Resende (1995) afirma que os poucos profissionais que se preocupam em repensar suas práticas, analisando criticamente seu cotidiano, reelaborando condutas compatíveis com o entrelaçamento da sua formação inicial e as experiências profissionais teóricas e práticas que caracterizam sua formação continuada são rotulados pelos próprios colegas como "caxias" e portanto, diferentes do grupo. Muitas vezes chegam a incomodar os menos interessados em fazer do processo ensino-aprendizagem um processo que não se limite ao achismo e à repetitividade impensada. Causam claro desconforto a alguns grupos de docentes que vivem o "pacto da mediocridade" no cotidiano das suas atividades profissionais; que não querem se esforçar nem um pouco mais para aparentar ter competência.

Se o professor não consegue mais se travestir do Mestre capacitado, seja devido a uma formação deficiente, à dificuldade de atualização constante aos infinitos modismos pedagógicos, ou por ser esse posto um lugar sempre vazio, inalcançável, podemos pensar que, talvez, essa impossibilidade de se alcançar o posto cobrado pela sociedade - mas por ela própria interditado de se ocupado - deixe o docente com essa sensação de desautorização, de desmerecimento. A vergonha de ser descoberto como fraude posiciona o professor em uma frente de defesa, sempre pronto a culpabilizar outras esferas, mas por dentro irremediavelmente consciente de sua impostura enquanto mestre.

Como foi visto, o discurso da competência professa, então, uma visão ainda nostálgica da educação. Apesar de renovado, o discurso da magnificência docente permanece. Hoje o mestre idealizado, regente desta educação quase perfeita, se apresenta não mais como um representante paterno ou mesmo divino, mas como um profissional polivalente, multifacetado, atualizado, questionador, esforçado ou qualquer adjetivo mais que lhe possibilite ser chamado competente. Ou seja, ser competente é o ideal desejado, é o posto ao qual todo professor deve almejar e ocupar.

Entretanto, tal discurso, visando assegurar uma imagem respeitável e valorizada aos professores, acaba por deixá-los na corda bamba – sem darem conta de tantas exigências, eles vivem diante do medo de serem desmascarados. Apesar de não conseguirem assumir o despreparo frente ao impossível (Freud já o dizia de toda a educação, 1925; 1937), os docentes o fazem em relação ao outro, o colega é quem não é devidamente capacitado, descompromissado ou não sabe como ensinar; é a escola, o governo ou a família dos alunos, que tornam o ideal inatingível.

Se a imagem da competência é o preço da autoridade, essa não tem se mostrado uma saída eficiente, a vergonha da incompetência se faz o tempo todo presente pronta a revelar o mínimo requisito não cumprido.

Neste trabalho não estamos defendendo a não qualificação do profissional, nem que o estudo e debate sobre quais capacidades um professor deve possuir para ser calcado como um bom profissional, muito menos que é unicamente do professor a responsabilidade dos problemas relativos ao complexo cenário da decadência da figura docente na nossa sociedade. O que objetivamos foi problematizar e tentar compreender como o discurso da competência, influência o professor neste esforço cotidiano para que seu lugar permaneça inteiro.

Nossa intenção é assinalar como o discurso da competência, ligado ainda a uma imagem da magnificência, foi internalizado pelo docente, mesmo sabendo da impossibilidade de alcançar as infinitas exigências e de se ocupar esse lugar por ordem vazio e impossível.

O professor do cotidiano, muito distante do Mestre idealizado de outrora, ao invés de interrogar esse discurso, vive com esta máscara e com o medo de que ela caia.

 

Referencias Bibliográficas

AGOSTINHO (St). De Magistro. Os pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1973.

ARENDT, Hanna. Entre o passado e o futuro. 5ª ed. São Paulo: Perspectiva, 2002.

BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais: introdução aos parâmetros curriculares nacionais / Secretaria de Educação Fundamental. Brasília : MEC/SEF, 1997.

ENRIQUEZ, Eugène. Interioridade e organizações. In: DAVEL, E.; VERGARA, S. (Org.) Gestão com pessoas e Sujetividade. 1ª ed. – 3. reimpr. São Paulo: Atlas, 2006.

DEBORD, Guy. A Sociedade do Espetáculo. Rio de Janeiro, Contraponto, 1997. (original de 1967).

FREUD, Sigmund. Totem e tabu. Edição eletrônica das obras completas de Sigmund Freud. Imago, Rio de Janeiro, 2000. (original de 1913).

______. Sobre o narcisismo: uma introdução. Edição eletrônica das obras completas de Sigmund Freud. Imago, Rio de Janeiro, 2000. (original de 1914).

______. Novas conferências introdutórias sobre psicanálise - Conferência XXXI: A dissecção da personalidade psíquica. In: Edição eletrônica brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Imago, Rio de Janeiro, 2000. (original de 1933).

______. O ego e o id. In Edição eletrônica das obras completas de Sigmund Freud. Imago, Rio de Janeiro, 2000. (original de 1923).

______. Prefácio à juventude desorientada, de Aichhorn. In Edição eletrônica das obras completas de Sigmund Freud. Imago, Rio de Janeiro, 2000. (original de 1925).

______. Análise terminável e interminável. In Edição eletrônica das obras completas de Sigmund Freud. Imago, Rio de Janeiro, 2000. (original de 1937).

______. Moisés e o monoteísmo. In Edição eletrônica das obras completas de Sigmund Freud. Imago, Rio de Janeiro, 2000. (original de 1939)

LIMA, Lauro de Oliveira. Para que servem as escolas? Petrópolis, RJ: Vozes, 1995.

LOPES, Eliane Marta Teixeira. Da sagrada missão pedagógica. Bragança Paulista: Univ. São Francisco, 2003.

NIETZSCHE, Frederich W. Assim falou Zaratustra. Rio de Janeiro: Bertrand, 1989. (original de 1883-1885).

PEREIRA, Marcelo Ricardo. A morte da infância. In: LEITE, M.C. Crianças invisíveis Campinas: Papirus, 2008.

PERRENOUD, Philippe. 10 novas competências para ensinar: convite à viagem. Porto Alegre: ARTMED, 2000.

RIOS, Terezinha Azerêdo. Ética e competência. São Paulo: Cortez, 2007. – (Coleção Questões da Nossa Época; v.16).

RESENDE, Lúcia Maria Gonçalves de. Relações de poder no cotidiano escolar. Campinas, SP: Papirus, 1995. (Coleção Magistério: Formação e Trabalho e Pedagógico).

SEDREZ, Suzana. A Competência do Professor Através dos Tempos: da idade moderna à conteporânea. Blumenau: Letra Viva, 1996.

SOUZA, Aparecida Neri de. Sou professor sim senhor! - representações do trabalho docente. Campinas: Papirus, 1996.

TARDIF, Maurice. Saberes Docentes & formação profissional. 5ª edição. Petrópolis: Editora Vozes, 2005.