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 ISBN 978-85-60944-12-5

An 7 Col. LEPSI IP/FE-USP 2009

 

8/11 - COLÓQUIO-COMUNICAÇÕES LIVRES

 

A consulta terapêutica com pais de uma criança autista

 

 

Maria Ângela Favero-Nunes

 

 


RESUMO

Este trabalho é um recorte de tese de doutorado que visou construir e avaliar uma proposta de intervenção aos casais com uma criança autista. Além disso, visou compreender qual o lugar ocupado pela criança na dinâmica familiar e verificar a aderência de casais à proposta da consulta terapêutica, como um espaço de holding. Tanto levantamento sistemático da literatura especializada quanto pesquisa de campo, realizados anteriormente, mostraram que a família sofre um impacto ao saber do autismo da criança. Deparamo-nos com a escassez de publicações referentes a trabalhos de intervenção com o casal parental quando comparados à vasta literatura sobre a gênese do autismo e treinamentos comportamentais. Contatamos inicialmente um hospital público de um município do interior do estado de São Paulo para apresentação da proposta de trabalho. Esse local manifestou resistência à pesquisa por divergência teórica, mas, posteriormente, encaminhou um casal com urgência. A filha do casal tinha sido diagnosticada como autista e a mãe da menina encontrava-se adoecida. Na consulta terapêutica realizada com o casal, o marido manifestava agitação e insegurança com relação à situação da mulher e da filha. Precisou auxiliar fisicamente a esposa para que ela conseguisse se locomover. A mesma afirmava que a cada dia perdia os movimentos do corpo e não havia tratamento previsto, sugerindo-se uma histeria. Constatamos que a preocupação naquele momento focava-se na doença da mãe e na doença da filha, ambas sem explicações esclarecedoras. Segundo relato dos pais, a filha havia se "fechado" aos três anos de idade. Apesar de ficar clara a necessidade de um seguimento das consultas terapêuticas, percebido pelos pais e pela pesquisadora, o casal não conseguiu retornar. Havia um pedido de ajuda e uma negação a recebê-la. Não houve demanda sobre a conjugalidade, a relação parental focou-se na narrativa dos cuidados físicos que a esposa relatava não conseguir prover à filha. Essa consulta terapêutica visou proporcionar um holding ao casal, mas pode ter funcionado também como disparadora de questionamentos acerca de situações já cristalizadas na dinâmica familiar. (CAPES)

Palavras-chave: autismo, casal, consulta terapêutica


 

 

O trabalho aqui apresentado é um recorte de uma tese de doutorado em desenvolvimento junto ao Departamento de Pós-Graduação em Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo - IPUSP. Trata-se da exposição da análise de dados inicial de um dos dez casais participantes dessa pesquisa, pais de uma criança autista, atendidos em uma consulta terapêutica.

O autismo e a questão familiar tem sido alvo de meus estudos há algum tempo. Parti inicialmente para uma avaliação sistemática da literatura científica nacional e internacional visando investigar a ocorrência de alterações na dinâmica de famílias com uma criança autista, decorrente de um estresse parental crônico (FÁVERO; SANTOS, 2005). A preocupação que norteou esta revisão bibliográfica foi a busca de evidências que permitissem caracterizar a influência da sobrecarga decorrente dos cuidados especiais exigidos pela criança autista sobre os cuidadores diretos e o funcionamento familiar, identificando temas convergentes.

Pude constatar que, inserida em uma condição especial de sobrevivência, a dinâmica familiar sofre mobilizações que vão desde aspectos financeiros até aqueles relacionados à qualidade de vida física, psíquica e social dos cuidadores diretos. Os pais precisam se reorganizar após o esclarecimento dos problemas do filho para que possam perceber as reais capacidades e potencialidades do mesmo.

Em uma etapa posterior, foi elaborado um estudo que pretendeu compreender a trajetória e a sobrecarga emocional materna através dos relatos das mães. Entrevistas foram realizadas em duas instituições de atendimento especializado a crianças autistas de dois municípios localizados no interior do estado de São Paulo. Essa investigação contemplou a avaliação do estresse e da depressão, as estratégias de enfrentamento e a qualidade de vida, assim como as preocupações maternas, a história com os filhos e a maneira como cuidavam da própria saúde (FÁVERO, 2005). Os resultados do trabalho mencionado indicaram que havia uma sobrecarga emocional elevada, com a prevalência de sintomas psicológicos de estresse e sintomas depressivos nas mães, colaborando para um risco maior de doenças.

 

Aproximação dos estudos psicanalíticos sobre a infância

Embora Freud não tenha dado enfoque ao estudo de crianças, sugeriu os primeiros passos com o acompanhamento da análise do caso de uma fobia no pequeno Hans, um garoto de cinco anos, analisado pelo próprio pai sob a sua orientação clínica (2005[1909]). Posteriormente, Melanie Klein, Anna Freud, D. W. Winnicott, Margareth Mahler, Frances Tustin e Maud Mannoni, dentre outros, desenvolveram seus estudos tomando por base o trabalho com crianças sob o referencial psicanalítico.

Desde a descrição de Kanner, em 1943, da síndrome do autismo infantil precoce, estudos têm sido conduzidos nas diversas áreas da Psicologia, da Psicanálise e da Medicina, que são permeados por diversidades quanto à questão etiológica. O artigo de Kanner (1943) relatava o estudo de onze crianças com uma combinação de características que envolviam o extremo isolamento desde muito pequenos, uma incapacidade para usar a linguagem de maneira significativa e uma insistência na preservação da mesmice.

Maud Mannoni enveredou pelos estudos psicanalíticos do autismo, construindo uma teorização sobre o tema. Criou o Centre d'Étude et de Recherches Pédagogiques et Psychanalytiques o qual possui a École Expérimental de Bonneuil sur Marne, localizado nas proximidades de Paris. Seguindo o pensamento lacaniano, influenciada pelos estudos de Françoise Dolto, a autora preocupou-se com a escuta do desejo que pode emergir mesmo daquelas crianças mais severamente prejudicadas cuja origem vem de lesões orgânicas, de neuroses graves, psicoses ou autismos. Essa escuta envolve considerar a criança enquanto um sujeito que através da linguagem pode encontrar expressão, quer no contexto institucional quer fora dele. Segundo Mannoni (1999[1963]) "o que importa não é a situação relacional, mas o que se passa no discurso, ou seja, o lugar de onde o sujeito fala, a quem se dirige e por quem." (grifos da autora) (p. 53).

Nessa escola experimental a proposta de atendimento às crianças, adolescentes e adultos envolve atividades escolares, artísticas, esportivas e de trabalho, tanto internas quanto externas à instituição. Existem também residências que funcionam como "internato" onde os alunos permanecem fora do horário escolar, durante a semana, com educadores e estagiários. Além disso, a escola contacta famílias de acolhimento que possam recebê-los durante todo o ano.

Partindo de uma abordagem multidisciplinar "atravessada pela Psicanálise" (LERNER, 2008, p. 10), realiza-se, atualmente, no contexto brasileiro, a Pesquisa Multicêntrica de Indicadores Clínicos de Risco para o Desenvolvimento Infantil (IRDI), subsidiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico e pelo Ministério da Saúde. Esse estudo é produto da articulação do conhecimento oriundo da Psicanálise, Pediatria, Nutrição, Fonoaudiologia e Psiquiatria referente à "tentativa de localizar previamente transtornos futuros" (KUPFER; ROCHA; CAVALCANTI; ESCOBAR; FINGERMAN, 2008), conduzido em diversos centros do país. A pesquisa busca a elaboração de um protocolo que pode ser utilizado por profissionais das áreas da saúde e educação que atendem crianças de zero a 18 meses de vida. Os indicadores para o desenvolvimento baseiam-se em quatro eixos: a suposição de sujeito, o estabelecimento da demanda, a alternância presença-ausência e a função paterna (KUPFER; ROCHA; CAVALCANTI; ESCOBAR; FINGERMAN, 2008).

Para alguns pesquisadores expoentes da área, tanto organicistas quanto psicodinamicistas, a tendência atual é de aceitar uma causação múltipla para o autismo, ainda que os organicistas restrinjam esta multiplicidade ao aspecto puramente médico (ALVAREZ, 1994). Para Alvarez (2007), podemos geralmente encontrar em cada pessoa autista uma parte intacta, não autista, de sua personalidade, emaranhada com seu autismo. Assim, adotando-se uma postura psicodinâmica, o transtorno autístico pode ser compreendido como uma condição da personalidade resultante de multicausalidades e não de uma origem psicogênica apenas.

 

O contato com as institutições

Após o levantamento da literatura científica da área, buscamos contato com duas instituições de atendimento especializado de um município do interior do estado de São Paulo e junto ao setor de Psiquiatria Infantil de um hospital público de um município do interior do estado de São Paulo. A coordenação do hospital manifestou divergência teórica e não se mostrou disponível, inicialmente, para a indicação de casais. A primeira instituição especializada não demonstrou interesse no trabalho alegando oferecer atendimento de grupo mensal aos pais. Na segunda instituição, o projeto apresentado e prontamente aceito, ainda que o tratamento nesse local seguisse uma abordagem teórica diferente.

A fim de uma aproximação com a realidade pesquisada, investigamos informalmente a respeito das maneiras de atendimento utilizadas com essas famílias, que objetivavam fornecer algum tipo de apoio. A partir de encontros com a coordenadora técnica e com a assistente social, tomamos conhecimento de que ocorreram várias tentativas de acolhimento aos pais das crianças e adolescentes inscritos na instituição. Várias modalidades de trabalho foram oferecidas como atendimentos em grupo, oficinas de artesanato, musicoterapia e entrevistas periódicas com profissionais da equipe técnica. Entretanto, houve pouca aderência dos pais.

 

A construção da proposta

Desse modo, refletimos sobre os entraves que poderiam ocorrer frente a uma proposta de pesquisa que necessitasse de encontros freqüentes com os familiares, bem como as limitações financeiras, de tempo e transporte vivenciados pelas famílias. Uma escolha adequada seria por um contato mais flexível e condizente com as necessidades de tal população.

A partir do estudo da teria psicanalítica, tomei conhecimento do procedimento da consulta terapêutica desenvolvido por (WINNICOTT, 1984[1971]) na busca de utilizar o espaço terapêutico de forma mais produtiva, a fim de obter os melhores resultados terapêuticos possíveis (OUTEIRAL, 2005).

Winnicott fundamentou sua prática na experiência de quarenta anos como pediatra do Paddington Green Childrens Hospital, clínica para crianças e adolescentes situada na Inglaterra (Ribas, 2000). Ele terminou sua formação como analista de crianças pela British Psychoanalytical Society, em 1935, fazendo a comunicação de seu artigo "A defesa maníca". Estudou profundamente o relacionamento familiar introduzindo o fator ambiente como componente de importância fundamental para o crescimento e desenvolvimento emocional da criança (WINNICOTT, 2000a[1958]; 2000b[1958]).

Um tema de destaque na teoria winnicotiana é a questão da maturação dos bebês. Segundo Winnicott (2000b[1958]), um bebê sozinho não existe. Para compreendermos o desenvolvimento de um bebê é preciso olhar atentamente para a unidade bebê-ambiente, ou seja, para a dupla composta por aquele que nutre e pelo outro que é nutrido. Enfatizou o papel da mãe no oferecimento de uma provisão ambiental sob a forma de um ambiente de acolhimento. O autor explica que para ocorrer a passagem da dependência do bebê em relação ao seu cuidador à sua independência, a mãe (ou seu substituto) precisa ser empática e sintonizada com as necessidades da criança (uma mãe suficientemente boa). Esta precisa identificar-se com seu bebê para compreender suas necessidades e um ambiente não suficientemente bom pode distorcer o desenvolvimento do filho.

Desse modo, a criança precisa, desde o início de sua vida, de uma adaptação perfeita e ativa do ambiente às suas necessidades para assegurar a continuidade da vida intra-uterina, a fim de que não vivencie uma descontinuidade brusca no seu sentimento de existência (RIBAS, 2000). Segundo Winnicott (1975[1971]), essa provisão ambiental envolve um adoecimento da mãe de forma sadia em virtude dos cuidados com seu bebê. Esses cuidados representam as funções de holding significando sustentação, de handling como o manejo, e também a apresentação de objeto, em que a mãe que deve estar disponível para as demandas de seu bebê, quando ele necessitar. Para o desempenho dessas atividades, a mãe experimenta um estado de sensibilidade exacerbada que ocorre do final da gravidez até algumas semanas após o nascimento do filho. A essa dedicação especial que a mãe oferta ao seu bebê, Winnicott (1975[1971]) conceituou de preocupação materna primária.

Trabalhando a partir da aplicação da psicanálise à psiquiatria e com base em suas experiências pessoais, Winnicott realizava consultas terapêuticas com seus pacientes buscando que a criança se surpreendesse, ela mesma, com o que estava ocorrendo no momento da sessão, com seu desenho, por exemplo, do que com as interpretações do analista (1975(1971). Houve uma preocupação de Winnicott em expor essa nova técnica como uma forma de entrevista que "promove possibilidades de desenvolvimento e crescimento do indivíduo, seja ele criança ou adulto" (GOMES, 2007, p. 36), mesmo que muito breve, geralmente com uma única sessão ou algumas mais.

Winnicott (1984[1971]) menciona que o procedimento da consulta terapêutica pode ser um prelúdio para uma psicoterapia mais demorada ou mais intensa, mas pode facilmente acontecer que um paciente esteja preparado para isso "após experimentar o entendimento concernente a essa espécie de entrevista" (grifo do autor) (p. 13). Salienta ainda, que no trabalho da consulta terapêutica geralmente não se enfatizam as interpretações, esperando até que o essencial da comunicação seja revelado.

A partir do referencial teórico winnicotiano e da literatura disponível acerca do procedimento da consulta terapêutica no atendimento de crianças e adolescentes, observou-se a flexibilidade que esse tipo de atendimento oferece aos pacientes que dele usufruem. Refletimos, em seguida, sobre a utilização dessa técnica enquanto um procedimento de pesquisa qualitativa, orientada psicanaliticamente. Dessa forma, foi construído o projeto dessa tese. Trata-se de uma pesquisa qualitativa, que se ocupa de investigar eventos qualitativos, constituída de um referencial teórico abrangente que proporciona maior oportunidade de manifestação da subjetividade do pesquisador (PEREIRA, 2001).

Eizirik (2003) afirma que a abordagem qualitativa de pesquisa constitui-se de um sólido suporte para a realização de pesquisas que tenham como objetivo a análise em profundidade de fenômenos sociais e psicológicos. Devido à complexidade dos processos intersubjetivos, são fatores importantes para a produção de conhecimento, os sentidos, as relações e a subjetividade. Os instrumentos quantitativos nem sempre possibilitam a apreensão de tais fatores.

A psicanálise utiliza-se da apreensão de dados qualitativos para realizar interpretações. Freud inaugurou uma nova forma de fazer pesquisa que leva em conta "a participação do sujeito no fenômeno que observa" (Safra, 1993, p. 125), ou seja, que o estudo do fenômeno psíquico leva em conta o psiquismo do pesquisador.

Segundo Freud (1923[1985], apud BLANCHARD-LAVILLE; CHAUSSECOURTE; HATCHUEL; PECHBERTY, 2005), a psicanálise possui três dimensões: é um processo de investigação dos processos psíquicos de difícil acesso; é um método de tratamento que se fundamenta nessa investigação; trata-se de uma série de concepções psicológicas adquiridas por esse meio e que fundamentaram uma disciplina científica nova. Estabeleceu-se buscando diálogo contínuo entre a teoria e a clínica para a elaboração e sistematização de pensamentos sobre fenômenos psíquicos.

Para conduzir uma pesquisa clínica, o pesquisador deve ter se beneficiado de uma experiência pessoal mínima como um trabalho de elaboração psíquica de orientação psicanalítica, e assim pode-se começar a pensar e a pesquisar sobre essas questões continuando a se formar clinicamente, e essa formação pessoal pode sempre se aprofundar (BLANCHARD-LAVILLE; CHAUSSECOURTE; HATCHUEL; PECHBERTY, 2005).

Para o desenvovimento dessa pesquisa considerou-se que através da escuta atenta o pesquisador, que se fundamenta nos estudos psicanalíticos, pode entrar em contato com a história dos pais, seus ideais, frustrações e idealizações, abrindo um espaço para lidar com as crenças relacionadas à condição especial do filho. Trata-se de permitir que as capacidades dos pais surjam, oferecendo o apoio necessário (MORO, 2004).

Apresento nesse artigo o material clínico e a análise inicial do material clínico de um casal que participou de uma consulta terapêutica.

 

Resultados e discussão

Tratou-se de um casal encaminhado pelo setor de psiquiatria infantil de um hospital geral de um minicípio do interior do estado de São Paulo. A filha do casal, de seis anos, foi diagnosticada com transtorno global do desenvolvimento e o psiquiatra buscava um atendimento específico aos pais, pois naquele hospital não havia serviço disponível para essa demanda familiar. Não foi realizada consulta ao prontuário da menina.

O casal residia em um município próximo à cidade onde realizamos essa consulta terapêutica. A mãe do marido, avó paterna da menina, morava nesta mesma cidade, município em que era realizado o tratamento da menina.

O marido entrou em contato por telefone com a pesquisadora para um agendamento da consulta. Ele relatou que tinha sido encaminhado pelo médico do serviço de Psiquiatria Infantil do hospital público e pediu que a consulta ocorresse no mesmo dia do tratamento da filha alegando dificuldades para viajar em outro dia. Um dia antes da consulta, o marido avisou por telefone que o casal não poderia comparecer, pois sua esposa faria tratamento médico de urgência em um hospital da capital paulista.

Não houve outra explicação até esse momento. No entanto, vários questionamentos prévios a essa consulta foram levantados. Pensamos sobre a urgência de tratamento da mãe, para qual doença, o que acontecia com essa mulher, se haveria relação com a problemática da filha.

Mediante uma série de questionamentos, foi marcada a consulta. Essa consulta terapêutica propriamente dita ocorreu em uma sala de consultório, no mês seguinte, no segundo contato com a família. Antes que eu chamasse o casal, a menina me surpreendeu abrindo a porta da sala em que ocorreria a consulta. A porta estava fechada, mas a menina abriu brusca e rapidamente para, em seguida, olhar-me e correr. O sentimento nesse momento era de que chegava um furacão, sem avisar, sem pedir licença, causando susto e desconforto.

Retomando o breve encontro, ao abrir a porta, a menina olhou em minha direção e logo voltou para a outra sala, onde estavam seus familiares. Nesse momento, observei as outras pessoas que haviam chegado: um casal, um adolescente (irmão da menina) e uma senhora, a avó paterna. O irmão da menina tinha seus olhos abaixados.

Um sentimento de urgência parecia estar instalado, desde o momento do telefonema, e que agora se somava à invasão da menina na sala. Essa sensação também ocorreu quando observei toda a família que chegava pedindo ajuda. Porém, juntamente com esse sentimento de urgência, havia uma hipótese de resistência face ao desmarque do primeiro encontro que não ocorreu.

A literatura aponta que várias abordagens reconhecem a necessidade de um trabalho não só com a criança autista, mas também com os membros da família. Kupfer (1997, p. 88) relata que o trabalho institucional de atendimento grupal a pais tem se revelado muito significativo e "para muitos pais, o que se verifica é um abandono da posição de culpa" e a adoção de uma posição de responsabilidade.

A menina estava agitada, o pai se ocupava de segurá-la. A primeira impressão que tive da mãe da menina era de uma pessoa frágil fisicamente, encolhida, cabisbaixa. O marido a auxiliava fisicamente a se locomover.

A impressão inicial de fragilidade se concretizava. O corpo manifestava que algo do seu funcionamento não estava circulando bem, estava "travando". Algo do funcionamento geral, psique e corpo, poderiam estar demonstrando que havia um conflito a ser reconhecido. Assim, diversas informações sobre o cenário familiar chegavam ao mesmo tempo.

Ao chamar o casal para a consulta, ficou uma preocupação com a menina e sua agitação. Buscando lidar com esse sentimento, ofereci alguns materiais para os irmãos: lápis, folhas, livros. A avó disse que iria "olhar as crianças" e que não precisávamos nos preocupar.

Enquanto isso, o marido ajudava a esposa a andar até a sala da consulta. Ele a ajudou a sentar-se. Expliquei o contexto desse encontro, que se tratava de uma consulta terapêutica e lemos juntos o Termo de Consentimento.

Quando se começou a conversa, observei que a esposa falava baixo, com dificuldade, parecia que precisava fazer um grande esforço para conseguir expressar-se. Começamos a conversa falando sobre a situação em que ela se encontrava. O casal se mostrava confuso, não sabiam explicar o que se passava, alegavam que os médicos não sabiam responder que doença ela tinha, ainda que ela tivesse sido internada em um hospital especializado, reconhecido da capital paulista. A esposa tirou da sua bolsa alguns exames neurológicos e quis que eu os lesse. O casal alegou que provaelmente se tratava de uma doença degenerativa.

Coloquei-me em uma posição de espera e escuta atenta, observando que uma série de eventos permeava a vida desse casal e que eles precisavam de um espaço em que pudessem falar e ser ouvidos. Pechberty (2007) discutiu as práticas clínicas atuais a partir do debate entre o cuidado e a educação, relatando que, no tratamento psicoterapêutico da criança, o terapeuta pode estabelecer uma forma de escuta dos pais, em que a função principal não é dar conselhos, mas permitir ao familiar falar "de sua função educativa e das condições incoscientes que aí se atam" (2007, p. 18).

O marido agitado, suando, parecia pedir ajuda. A sensação que ecoava era de um desespero diante da tragédia que ocupava sua família. A questão da morte pareceu o tema dessa consulta, a morte do corpo, o não funcionamento, o não desenvolvimento, a condição da filha e o adoecimento da mãe.

Novamente, o marido tomou a palavra e começou a falar da filha. Contou que até os três anos a menina era normal e então ela começou a "se fechar", "ela tem um pouquinho de autismo, mas não é muito". Da escola comum encaminharam-na para uma instituição especializada. Mostrando-se insatisfeita, a esposa reclamava que quando a filha começou a frequentar a instituição especializada haviam informado inicialmente que a menina estava bem e que "teria alta" em alguns anos.

O casal dizia-se frustrado com a cidade pequena onde residiam, que a mesma não oferecia recursos, que não havia um lugar de tratamento adequado para a menina, que não havia bons profissionais "como em uma cidade grande" referindo-se àquele município onde era realizado o tratamento psiquiátrico da menina e também essa consulta.

Com isso, pareciam falar de algo que tinham e que não era adequado nem suficiente para ajudar a filha, pois era pequeno e inferior mediante a necessidade da menina. Ambos permaneciam olhando para o chão. A situação parecia penosa e sem esperanças para a filha e para a mãe.

Em seguida, seguiu-se um relato do pai de que a filha tomava determinada medicação antipsicótica e que ele havia solicitado ao psiquiatra de sua cidade que aumentasse a dose do remédio, pois não estava sendo suficiente para que a menina melhorasse. Com isso, esse pai experessava depositar nos remédios toda a esperança de cura da menina, como uma fuga mágica da situação que se mostrava insuportável.

Posteriormente, o pai começou a contar que utilizou o endereço da avó da menina para conseguir uma consulta para a filha naquele hospital mais especializado "da cidade grande" onde ela era atendida naquele momento. A esposa reagiu à fala do marido, repreendendo-o por me contar isso, mostrando-se superegóica na relação dos dois. Ela disse ao marido, num tom de menosprezo, que ele não precisava relatar esse acontecimento. Ele pareceu desconcertado, envergonhado, tal como se houvesse feito algo inadequadamente, como um filho reagindo a uma bronca da mãe.

Embora não falassem explicitamente da relação conjugal até esse momento, pode-se utilizar esse breve fragmento para observar que as posições ocupadas por cada um enquanto casal. A posição de autoridade foi ocupada pela esposa, que se apresentava fragilizada e o marido sentiu-se subjugado, parecendo indefeso e impotente. A minha postura nesse momento foi avaliar a situação que se passava e reconhecer que ele se mobilizou para encontrar uma solução ao problema da filha. Afinal, ele buscou o que achava melhor e mais adequado para a menina.

Retomando, o pai continuou o relato das consultas médicas aos psiquiatras. Depois de ter conseguido o aumento da medicação com outro psiquiatra, ele voltou ao anterior para contar a novidade. O médico, sentindo-se destituído de poder, disse ao pai que não havia confiança em seu trabalho e que, portanto, não precisariam mais voltar em seu consultório.

A mãe tomou a palavra dizendo que a filha melhorou um pouco com o remédio, mas que ela mesma não poderia mais ajudar a menina pelo estado em que se encontrava. Estava impedida de cuidar da filha, pois precisava cuidar de si mesma. Relatou as atividades como cuidadora que não conseguia mais realizar:

(...) desse jeito que eu to eu não consigo cuidar dela... quer dizer às vezes alguma coisa eu dou conta de fazer né... dar um banho... hoje eu consegui mas tem dia que não dá... arrumar uma cozinha... antes eu conseguia fazer tudo isso... agora não consigo fazer nada.

A narrativa permeada pelo "não" sobressai nas palavras da mulher. Observam-se indícios de um estado depressivo e, ao mesmo tempo, sinais de histeria. Não se encontrava uma causa biológica e nem tratamento para a doença da mãe.

Retomaram o assunto da doença da esposa. O casal contou sobre os dias de internamento dela, acompanhada pelo marido, para a investigação do seu problema. Havia um movimento de idealização quando resolveram buscar ajuda junto à equipe desse hospital "lá estavam os maiores o doutor X... eles que falavam que eram tão bons... é tudo igual... eles não acharam nada... é tudo a mesma coisa".

Da mesma maneira como depositaram as esperanças de uma cura da filha nos remédios, também foi assim pensada a cura da mãe. Os médicos do hospital especializado iriam salvá-la. E, quando o objetivo não foi conseguido, frente à frustração surgiu o desprezo àquilo que fora idealizado. O médico que antes era "o melhor" tornou-se "igual aos outros, ele era rígido, um homeme frio que não ligava para os pacientes".

A mulher falou novamente dos resultados dos exames que indicavam comprometimentos relacionados ao sistema nervoso, mas que não eram esclarecedores. Contudo, não havia um tratamento determinado, as investigações não tiveram sucesso, o que fez pensar sobre a origem psicológica do que acometia essa mulher.

Sugeri que o casal retornasse na semana seguinte devido à necessidade de ajuda que eu julgava necessária reconhecida por eles mesmos. Foi colocado ao casal a questão do sofrimento que estavam vivenciando pelas situações da filha e pela doença que acometia a esposa e que cada um vivenciava esse sofrimento de maneira singular. A esposa relatou que tentou fazer terapia, mas não houve empatia com o profissional e relatou não existirem bons profissionais em sua cidade. Ofereci a minha disponibilidade para um acompanhamento mais próximo com o casal. O marido sugeriu um novo reencontro quando viessem tratar da filha, o qual foi aceito. Porém, o casal não retornou para a segunda consulta, sendo esse, portanto, o único encontro. No contexto clínico, Martão (2002) apontou que pais de crianças autistas apresentam dificuldades para estabelecer parcerias com o terapeuta.

Observou-se uma mensagem ambivalente manifestada pelo casal: por um lado, percebiam a própria necessidade de serem ajudados e pediam essa ajuda, mas, por outro, negavam-se a recebê-la, resistindo ao convite para um reencontro, negando-se a movimentar tais conflitos, impedindo uma possível troca que talvez promovesse estados mais saudáveis para os pais e para os filhos. E, com isso, a possibilidade de abandonar a posição de culpabilização e assumir o papel de responsáveis pelas crianças de acordo com o que nos mostra Kupfer (1997).

Mediante a situação da esposa, percebeu-se uma dificuldade de refletir sobre a problemática da filha como uma criança que poderia superar alguns prejuízos desenvolvimentais e emocionais. A preocupação familiar estava dividida entre o adoecimento da mãe e a condição da filha. A sensação era de que o corpo da mãe estava se degradando, perdendo forças, sem esperanças. Diante disso, o espaço de atenção à filha não parecia suficiente pra que ela pudesse ser olhada com atenção e crescesse emocionalmente. Apesar de não se falar da vida conjugal explicitamente, percebeu-se que o marido tentava ajudar a esposa, procurando soluções, o que era tomado pela mulher como algo sem valor.

Apesar do oferecimento de um apoio que se julgou necessário, não houve tempo e espaço suficientes para que os pais reconhecessem suas reais capacidades como cuiadores. Na consulta terapêutica, ficou claro o movimento ambivalente que esse casal apresentava de busca e recusa da ajuda de hospitais, instituições e profissionais. Havia um pedido de ajuda e uma negação a recebê-la. Não houve demanda sobre a conjugalidade e a relação parental focou-se na narrativa dos cuidados físicos que a esposa relatava não conseguir prover à filha. Essa consulta terapêutica visou proporcionar um holding ao casal, mas pode ter funcionado também como disparadora de questionamentos acerca de situações já cristalizadas na dinâmica familiar.

 

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