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ISBN 978-85-60944-12-5 versão

An 7 Col. LEPSI IP/FE-USP 2009

 

8/11 - COLÓQUIO-COMUNICAÇÕES LIVRES

 

"Para onde olha esta criança?"- quando as lentes de um professor interrogam o olhar de um autista

 

 

Maria Eugênia Capraro de Toledo; Márcia Ovalle

 

 


RESUMO

Para onde olha esta criança? O que ela vê? Esta é a interrogação de uma professora diante de uma criança que parece não olhar. Instigada pela interrogação do horizonte disponível no mundo de uma de suas alunas, uma professora busca encontrar respostas através de interrogações sobre seu fazer educacional. Para responder a si mesma, empresta suas lentes à Alice e assim inicia uma jornada pelos caminhos do autismo e de seus modos peculiares de aprender.

Palavras-Chave: Autismo, Inclusão escolar, psicanálise, formação docente.


 

 

O meu olhar é nítido como um girassol.
Tenho o costume de andar pelas estradas
Olhando para a direita e para a esquerda,
E de vez em quando olhando para trás...
E o que vejo a cada momento
É aquilo que nunca antes eu tinha visto,
E eu sei dar por isso muito bem...
Sei ter o pasmo essencial
Que tem uma criança, se ao nascer,
Reparasse que nascera deveras...
Sinto-me nascido a cada momento
Para a eterna novidade do Mundo...
Alberto Caeiro, O Guardador de Rebanhos,1914.

 

Em busca de um saber inédito

Ser professor muitas vezes é encontrar-se com o imprevisto, o não calculado, o não sabido. É deparar-se com um espelho cuja imagem pode retornar distorcida ou opaca, causando estranhamento e resistência ao ato educativo. Eventualmente, este (des)encontro pode ser a chave de leitura para o novo, para a torção da impotência em impossibilidade, para a adoção de um discurso que interroga as certezas e reinventa a prática.

Quando um professor tem em seu grupo uma criança que não transita pela linguagem de modo habitual ou transborda numa dimensão que bascula entre o indecifrável e o incontrolável, precisa supor, antecipar, especular, escolher mais de uma palavra para endereçar-se a ela e assim, subverter a lógica dos métodos e técnicas que supõem a educação como um produto, um objeto utilitário capaz de adaptar esta criança ao mundo.

Este professor precisa considerar a surpresa e o inédito como atributos desta relação educativa, por conceito assimétrica e, colocar-se em condição de emprestar muitas vezes sua curiosidade a uma criança que não pilota seu próprio desejo, funcionando então como a criança do silêncio, a criança invisível, aquela grita na cidade surda e produz em seus interlocutores diferentes sensações e possibilidades.

Muitos professores diante das crianças ditas diferentes renunciam ao ato educativo para deixar-se levar pelo canto das sereias, tentações em forma de sortilégios (psico)pedagógicos, que anunciam um saber total sobre como normatizar e normalizar as crianças tomando-as como objetos da ciência. Descortina-se assim um cenário onde a necessidade funciona como o paradigma da educação. Declina o lugar do adulto, aquele que deve transmitir a dívida simbólica, se encarregar de educar por um dever e, aparece em seu lugar uma personagem que deve ocupar-se de sanar qualquer falta e evitar a frustração. Cabe aqui uma pergunta: a frustração de quem?

Alguns professores guiados pelo desejo traçam uma trama onde esperar, reinventar, recriar e apostar são verbos que evocam uma prática quase subversiva, impensável para um tempo da (hiper)atividade e da desatenção. Uma prática que dá tempo ao tempo!1

 

Alice no pais das imagens

"Apresentar um caso é sair da posição de um saber e eleger uma pergunta sobre o sujeito que se apresenta para nós. Lacan apresentava seus casos não para provar sua teoria, mas para "relançar a demanda, colocar o paciente diante de uma representação real da instância do discurso, investida esta representação no público presente".2

Na clínica do sujeito, o significante, a palavra, a marca, aquilo que diz o sujeito é a matéria prima para a construção de um caso, da intervenção e da direção de tratamento. Na escola, quando uma criança é lida como um sujeito, sendo tomada pelo outro na linha da pergunta, da hipótese, da não certeza abre-se a possibilidade dos desdobramentos dos significantes, por vezes petrificados na marca da deficiência ou da loucura, para o traço da singularidade e da criatividade.

A inclusão escolar de crianças com transtornos na subjetivação pressupõe uma intervenção singular onde o vínculo estabelecido entre ela e sua professora é o alicerce que sustenta as ações e escolhas. Existe algo na construção histórica deste vínculo que pode ser lido através dos efeitos terapêuticos e educativos operados na criança ou na elaboração de um saber sobre o ato educativo engendrado em sua professora. Escolhemos relatar o encontro entre Alice e sua professora a partir da segunda alternativa.

Alice estuda em uma escola regular cursando a 2ª fase do ensino fundamental. Por conta de sua fissura subjetiva, ela circula pelas instâncias institucionais portando um mapa e não uma bússola.

A fragmentação do segmento escolar, com inúmeras disciplinas e professores anuncia logo nas primeiras semanas de aula as dificuldades pelas quais Alice e seus professores passarão. Mesmo vivenciando uma inclusão escolar desde a infância, Alice ainda não olha para seus interlocutores. Seu olhar atravessa os sujeitos e sua intenção toma os significados de forma tangencial. Compreender metáforas e fazer inferências de sentido ainda são habilidades com as quais Alice tem pouca ou nenhuma intimidade. A literalidade acompanha a direção de seu olhar. Eventualmente, parece pensar sobre os conceitos, lança um olhar no vazio enquanto busca a palavra. Faz o outro acreditar que busca um novo sentido. Mas nada muda. Volta ao estereotipado, ao mesmo, ao memorizado e constituído em bloco. O olhar tangenciado não faz laço. As palavras entre os vãos, ao vento, tomadas pelo outro como o acaso, não são capazes aparentemente de formar vínculos significativos entre os objetos de conhecimento, os parceiros de trabalho e os professores.

De posse da leitura e escrita e usuária de uma memória fotográfica, Alice instiga uma de suas professoras, que passa a perguntar sobre a direção do olhar da menina. Esta pergunta aos poucos vai construindo uma cadeia significante onde uma marca ressignifica a anterior. A pergunta toma uma dimensão polissêmica uma vez que vão se alternando os significados. Como uma mãe faz com seu bebe, a professora faz perguntas que ela mesma responde num primeiro tempo para, a seguir, esperar que Alice sinalize uma resposta que ela possa tomar como autoral, mesmo que esta autoria seja um empréstimo. A professora pauta a relação numa experiência muito próxima da experiência filiatória mãe-bebê.

Nesta interrogação inédita, a professora começa a construir as possibilidades. Continua interrogando sobre a direção do olhar e da construção de sentido onde externamente não se encontraria nada. Só um buraco, um vazio ou uma imagem desfocada.

Perguntar sobre a direção do olhar de Alice é o que insiste na construção discursiva da professora. "Se eu soubesse para onde olha Alice, poderia fazer mais por ela." – diz. Não podemos afirmar com certeza qual teria sido o efeito desta pergunta no fazer educativo da professora de Alice se esta tivesse ficado apenas em seu íntimo. O que podemos saber sobre o efeito da pergunta se faz a partir do momento em que ela pode enunciar esta pergunta a um outro, um interlocutor que pode fazê-la confrontar-se com seu próprio dizer.

Bastos (2003) afirma que as intervenções junto aos professores devem seguir a linha do questionamento, do fazer-dizer a respeito do mal-estar. Segue defendendo a idéia de que o dizer esclarecedor implica o professor de forma subjetiva com seu dizer.

Escutar ativamente o discurso da professora de Alice não fazia a coordenadora apresentar-se como detentora das respostas. Devolver a ela sua questão, perguntando sobre o que estava pensando quando queria saber sobre a direção do olhar de Alice torcia o discurso da professora e a fazia reformular a demanda.

O enunciado torna-se então, mesmo mantendo a prosódia da dúvida, uma nova pergunta, agora a si mesma: "Se eu pudesse emprestar-lhe o olhar..." Aqui, a coordenadora lhe devolve a fala com outra interrogação: "Emprestar o olhar?!" – descortinando então uma nova proposta da professora que, como num susto, surpreende-se com a idéia de emprestar uma lente, uma máquina fotográfica para que Alice possa escolher livremente para onde olhar. Na revelação das fotos, a professora poderia descobrir as escolhas de Alice e assim tentar traçar uma proposta para ela.

Alice escolhe vários alvos. A professora roteiriza de certa forma as paisagens que devem ser fotografadas evitando assim que o ato se tornasse uma estereotipia como Alice fazia com tantas outras ações.

A revelação das fotos traz à professora e à coordenadora uma surpresa, o inesperado. Alice escolhera sempre tirar duas fotos de cada objeto ou paisagem. Podemos considerar que eram pares de fotos. Havia uma lógica que a professora descobre quando, como uma arqueóloga, toma todas as imagens e as examina com cuidado.

Alice escolhe um método: fotografa um objeto com certo distanciamento, mostrando ao outro o objeto inteiro, conceitual. A seguir escolhe um detalhe, um ponto que pode ser um reflexo de luz sobre o objeto, uma sombra ou um pequeno orifício. Eis o objeto de Alice!

A professora toma esta sequencia de fotos como um trabalho que Alice apresentará como todos os seus amigos. Considera aqui o encontro de Alice com o currículo escolar. Mas não pára por ai. Faz uma leitura da aprendizagem de Alice a partir das escolhas que ela faz das imagens.

Ofertar textos para a leitura e interpretação de Alice a partir desta experiência torna-se outra história. O fazer pedagógico está a serviço da leitura de Alice e não Alice a serviço das certezas (psico)pedagógicas hegemônicas.

A professora de Alice operou no sentido de desejar o desejo de saber da menina (Almeida, 1999).

 

Conclusão

Há uma única imagem sem par nas fotos de Alice. Trata-se de um salão, vazio, com piso de madeira cercado por oito grandes janelas. No instante da foto, o sol atravessava os vidros e pintava no chão uma luminosidade distorcida, trêmula, que brincava com o brilho do assoalho e reinventava a forma. Afinal, para onde Alice teria focado a lente? Queria tomar as janelas, seu sentido e certeza ou os reflexos, metáforas desviantes e evanescentes?

A professora pode ler a imagem tomando a janela como o significado ou arriscar perguntar-se sobre as sombras, elas mesmas travestidas de luz. Pode arriscar-se na dúvida e supor.

A professora emprestou seu olhar à Alice num ato novo e engenhoso, criando com uma instância externa a possibilidade de capturar pelo menos um traço do universo interno de Alice. Com a revelação das fotos se desvenda o foco, as escolhas e a direção do olhar. É como se a professora pudesse olhar com os olhos dela.

Neste momento a professora se autoriza a construir uma novidade. A leitura no dia a dia escolar torna-se menos ansiosa. Ela suporta o tempo, espera, observa para onde olha o olhar desta menina. De posse deste novo saber, a professora empresta as lentes para outros olhares ampliando a possibilidade de intervenção com outros alunos.

Inaugura-se um caleidoscópio. A professora comanda o giro do objeto, mas as figuras formadas por ele são sempre inéditas e imprevisíveis.

 

Notas

1 Expressão usada por Leandro de Lajonquière em comunicação oral.

2 Alfredo Jerusalinky. Seminários III. Lugar de Vida, USP, 2004.

 

Referências

ALMEIDA, S. F. C. Psicanálise e educação: entre a transmissão e o ensino, algumas questões e impasses. In: Colóquio do Laboratório de Estudos e Pesquisas Psicanalíticas e Educacionais sobre a Infância, 1, São Paulo, 1999. Anais. São Paulo, Lugar de Vida/LEPSI, p.63-69.

BASTOS M. B. Inclusão Escolar: Um trabalho com professores a partir de operadores da psicanálise. Dissertação de Mestrado apresentada ao Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2003.

JERUSALINKY, A. Seminários III. Lugar de Vida, USP, 2004.

LEVIN, S. Clínica e educação com crianças do outro espelho. Petrópolis, RJ, Editora Vozes, 2005.

STAZZONE,R. O que um psicanalista deve fazer na escola? Estilos da Clínica, Revista sobre a Infância com problemas, ano II, no. 2, p. 44, 1997.