7Contribuições da psicanálise na escola: o professor se confrontando com sua própria palavraUma experiência de trabalho em grupo, orientada pela psicanálise: Formação para o trabalho com a criança sujeito? author indexsubject indexsearch form
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 ISBN 978-85-60944-12-5

An 7 Col. LEPSI IP/FE-USP 2009

 

8/11 - COLÓQUIO-COMUNICAÇÕES LIVRES

 

Tecendo a constituição psíquica pelas linhas da escrita

 

 

Marise Bartolozzi Bastos

Psicanalista, doutoranda no IPUSP e membro da Associação Lugar de Vida marisebastos@uol.com.br

 

 


RESUMO

O tratamento psicanalítico de crianças com transtornos graves, através do dispositivo da escrita, parte do princípio de que é a partir do escrito inconsciente que se organizam as demais escritas: o sonho, o desenho e a escrita alfabética. No trabalho com a escrita pretende-se que as crianças possam colocar em marcha a operação significante que ao mesmo tempo constrói uma escrita e as constrói, nesse jogo de reorganização do campo simbólico.
A escrita alfabética não é um modo de representação da fala e pode ser pensada, assim como a própria fala, como um desdobramento da relação do sujeito com a ordem da linguagem.
Considerar o início da escrita como processo de subjetivação marca o recalcamento da língua materna, uma vez que a apropriação da escrita também contribui para a construção do corpo e suas bordas.

Descritores: Inconsciente; escrita; fala.


 

 

Introdução

A clínica psicanalítica com crianças que apresentam graves comprometimentos no seu desenvolvimento implica que os psicanalistas estejam atentos sobre a direção de tratamento a ser seguida e sobre a necessidade de pensar seu trabalho clínico inserido em uma abordagem interdisciplinar.

Quando uma criança apresenta atrasos significativos na aquisição da linguagem, o procedimento usual é a procura de um diagnóstico médico (pediátrico ou neurológico) e a consulta ao fonoaudiólogo.

A ausência de fala é vista por educadores e até mesmo por profissionais da área "psi" como um campo a ser trabalhado pela fonoaudiologia. Sendo assim, quando uma criança apresenta dificuldades de linguagem esse profissional consultado como o especialista que ensinará falar após terem sido descartados, pelo campo médico, os comprometimentos orgânicos.

Como tratar uma criança que além de atrasos na linguagem apresenta dificuldades de escolarização? Seriam as dificuldades de aprendizado da leitura e da escrita decorrentes da ausência de fala? Seria, então, necessário ensinar a criança a falar para depois poder alfabetizá-la? Como alfabetizar uma criança que ainda não fala?

Vorcaro (2005) afirma que

É comum que diante de uma criança cuja fala se encontre ausente, estereotipada ou evidentemente restrita..., o discurso social – encarnado em seus pais e/ou profissionais da saúde ou da educação – a remeta ao fonoaudiólogo, a partir da representação de que este faria vigorar a promessa de tornar a criança um falante ideal. (p.81)

A autora lembra que tal apelo não é fruto do acaso e muito menos uma apropriação indevida da fonoaudiologia, mas caberia interrogar a legitimidade de tal apelo e as modalidades pelas quais ele pode ser acolhido.

 

Ponto de partida

Quando Aline chega ao Lugar de Vida1, em janeiro de 2006, está com 9 anos e meio. Sua mãe conta que a filha fez tratamento fonoaudiológico desde os 2 anos por apresentar atraso na aquisição da linguagem o que a levou a procurar vários profissionais em busca de um diagnóstico. Aline passou por avaliação médica (com neuropediatra e estudo genético) e psicológica em busca de uma explicação para esse atraso no desenvolvimento e para suas dificuldades de atenção e concentração que são notadas na escola.

Como nada foi detectado no campo médico e a avaliação fonoaudiológica constatou um distúrbio de linguagem da ordem de uma dispraxia oral, a mãe de Aline se preocupa com essa ausência de fala que persiste e para a qual não encontra explicação. Preocupa-se também com as dificuldades de escolarização da filha que não sabe ler e não escreve.

Apesar de não falar ela se comunica emitindo sons e fazendo gestos que a mãe sabe interpretar e por isso a utiliza como 'tradutora' do que quer dizer. Aline tem boa compreensão daquilo que lhe é solicitado, mas faz birra quando não obtém o que quer, e a mãe conta que ela não gosta de ser contrariada. Seu grafismo é bastante rudimentar e seus desenhos não passam de rabiscos e garatujas. Para falar utiliza predominantemente as vogais e faz seus sons se estenderem dizendo: "o/ o/ o" , " i/ i " ou se combinarem: " ia" , "ua" , "oa".

Aline é a única filha do casal e seus pais se separaram quando ela tinha 18 meses. Mora na casa de seus avós maternos com sua mãe que se dedica, exclusivamente, aos cuidados com ela. Seu pai reside em outro estado, onde Aline nasceu, e tem uma outra filha já adulta. Os contatos com o pai ficaram escassos depois da separação do casal e a mãe diz que Aline "pede a presença dele".

Cursou a escola regular na Educação Infantil e quando entrou na 1ª série freqüentou a sala de apoio à inclusão (SAAI). A professora da sala fez as seguintes observações no relatório trazido pela mãe: "A aluna não gosta de ser contrariada em suas vontades, nestes momentos chora e faz birra. Conversamos com ela e procuramos explicar que as coisas não são como ela gostaria e após essas conversas ela costuma aceitar e voltar ao grupo."

Em outro relatório aparecem as seguintes observações: "Na escola é percebida uma grande dificuldade de atenção e a dúvida da professora é se não compreendeu a ordem ou não quer executá-la, pois em alguns momentos faz a tarefa sem problemas, apesar de seu desempenho ficar bastante aquém do esperado pra crianças de sua idade. O mesmo acontece com a questão dos limites. Prefere brincadeiras ágeis e provocativas, geralmente com meninos".

Atualmente, Aline estuda em uma escola pública regular que foi escolhida por ter uma proposta inclusiva. A mãe leva a filha e fica ajudando na biblioteca enquanto a criança está em aula. Segundo a mãe, ela procede dessa forma porque 'não compensaria' voltar pra casa.

Os dados trazidos pela mãe e as observações feitas durante as primeiras entrevistas fizeram a equipe indagar sobre o sentido dessa dispraxia oral, uma vez que nenhuma das avaliações e exames realizados puderam afirmar algo significativo sobre o atraso no início e desenvolvimento da linguagem de Aline. Algo na constituição subjetiva dessa criança parecia "mancar" de modo a impossibilitar que Aline pudesse fazer a travessia de uma "língua materna" a uma língua de todos.

A partir desse ponto foi pensado um projeto terapêutico para a criança composto pelo atendimento individual, pelo grupo da escrita, pelo ateliê de cozinha e pelo acompanhamento escolar. A mãe de Aline também participaria do grupo de pais.

Considerar o papel do Outro na constituição da fala da criança e ponderar sobre o aprendizado da leitura e da escrita, sob o ponto de vista da psicanálise, foram os pontos que nortearam a direção do tratamento de Aline, após tantos anos de terapia fonoaudiológica com poucos resultados no campo do desenvolvimento da linguagem dessa criança.

Não por acaso, nossa aposta de trabalho não contemplou o atendimento fonoaudiológico, nesse primeiro tempo do tratamento institucional.

O trabalho institucional será abordado pelo recorte do grupo da escrita e as considerações teórico-clínicas serão feitas a partir das discussões realizadas pelos profissionais envolvidos nos atendimentos da criança: as Reuniões de Fio.

 

Os primeiros alinhavos

Aline chega no grupo da escrita na metade do ano de 2006 e o grupo está constituído por quatro meninos e uma menina, cerca de dois anos mais velhos que ela.

Sua escrita é muito escassa e restringe-se a garatujas e ao traçado da letra A. Gosta de histórias, de música e de jogos, mas recusa-se a escrever a não ser de seu modo (fazendo garatujas e As). As atividades no papel só interessam quando são para pintar, recortar e colar.

Quando faz uso dos materiais (lápis, canetinhas, borracha, cola) não quer compartilhar com os colegas do grupo. Pega o material para si e não aceita dividir. Também fica de olho no material que os colegas estão usando para rapidamente tomar para si, assim que o colega deixar de usar.

Em alguns momentos sua atenção está totalmente dividida entre fazer a atividade e espiar o momento em que a colega deixará de usar o lápis cor de rosa para que ela possa pegar e, depois de alguns instantes, já dispensará esse lápis porque ficou interessada na tesoura e no recorte que outro colega está fazendo.

Aline solicita o tempo todo a atenção dos adultos (duas coordenadoras e três estagiários) querendo que sentem perto dela e muita vezes disputando sua atenção (o olhar) quando estão às voltas com ajudar as outras crianças. Nessas situações, Aline repete insistentemente o nome da coordenadora: "i/ i/ i". Oportunidade para que ela se volte e diga: "Assim eu não estou entendendo, quem é "i/ i/ i"? É Bia ou Marise?

Intervenções como essa foram implicando Aline a expandir suas vocalizações: "ia" ou 'ise'. Afinal, esses adultos não conseguem adivinhar tudo.

No início, ficava muito brava quando era contrariada e saía da sala chorando e fazendo birra, mas tais atitudes eram tão caricatas que passaram a chamar a atenção das coordenadoras que diziam: "que pena, se você for embora você vai perder o que vamos fazer depois!"

Essas intervenções foram sendo pensadas nas Reuniões do Fio como uma aposta em uma estruturação neurótica que parecia muito de acordo com a máxima lacaniana "o desejo é o desejo do Outro" e, a partir desse ponto, a construção da escrita passou a ser pensada.

Como escrever no papel ainda não era possível para Aline, por conta da enorme dificuldade no traçado das letras, passamos a usar as letras móveis para fazer uma série de jogos e atividades que despertavam seu interesse porque eram partilhados por todos. E os jogos eram ótimas oportunidades de introduzir a lei / as regras. A partir do que não pode sabemos, então, o que pode.

Das letras móveis passamos à construção de letras com palitos de sorvete, que usados por todos, podiam construir palavras que depois poderiam ser escritas na lousa e no papel.

O traçado das letras no papel mostrou-se um enorme desafio para Aline que passou a ter muita satisfação e entusiasmo com a conquista desses grafismos. A cada letra escrita buscava o olhar de aprovação e a comemoração. Adorava quando todos batiam palma após mostrar o que tinha escrito. Em outros momentos pedia que o adulto que estava ao seu lado acompanhando a atividade fechasse os olhos para que ela então o surpreendesse com as letras que ia escrevendo para construir palavras.

O traçado das letras ainda é um grande desafio que nem sempre Aline se dispõe a enfrentar, mas aos poucos foi conseguindo brincar com jogos de palavras que estão divididas em sílabas, como dominó e bingo, o que dá a ver suas possibilidades de leitura que estão em cosntrução.

Pretende-se no trabalho do dispositivo institucional do grupo da escrita que as crianças possam colocar em marcha a operação significante que ao mesmo tempo constrói uma escrita e as constrói, nesse jogo de reorganização do campo simbólico.

O tratamento psicanalítico de crianças com transtornos graves, através do dispositivo da escrita, parte do princípio de que é a partir do escrito inconsciente que se organizam as demais escritas: o sonho, o desenho e a escrita alfabética.

 

Para fazer o cerzido

Em seus primeiros estudos, Freud já demonstrava interesse em compreender o processo pelo qual as experiências humanas eram inscritas no aparelho psíquico e de que modo essas percepções eram registradas e depois transformadas para dar origem às imagens e idéias elaboradas pelo psiquismo. Em seu texto Projeto de uma psicologia para neurólogos (1895/1980) sua grande questão era investigar os processos de funcionamento da memória e o modo como as percepções humanas se registram e podem ser recuperadas pela consciência

Para explicar a constituição do aparato psíquico, Freud constrói sua hipótese de que o recalque originário (Urverdrängung) operaria como um primeiro processo de clivagem inscrevendo um conjunto de traços mnésicos que fundaria o inconsciente e tornaria possível todos os recalques posteriores (Nachdrängen). Nesse momento mítico da estruturação psíquica, o inconsciente surge como uma escritura, ou seja, um conjunto das inscrições das representações pulsionais que ficaram banidas do sistema consciente.

Sendo a exclusão da representação e sua inscrição inconsciente um mesmo ato, a inscrição de que se trata aqui é a de um traço, que por si só, não remete a sentido nenhum. Cada um desses traços não significa nada em si mesmo, mas pela associação por semelhança ou simultaneidade, permitirão efeitos de sentido. Poderíamos pensar que trata-se de algo semelhante às letras que por si mesmas, nada significam, mas aos serem combinadas, mediante os ordenamentos da língua, escrevem um texto.

Freud (1950/1980) usa termos como inscrição, transcrição e retranscrição para falar de sua hipótese de que nosso aparelho psíquico tenha se formado por um processo de estratificação sucessiva que de tempos em tempos possibilita que esses traços mnêmicos inscritos possam se reordenar segundo novos nexos como um processo de retranscrição.

Segundo as leis do processo primário que regem o funcionamento do inconsciente (condensação e delocamento) essas marcas que inicialmente são inapreensíveis pelo sentido, transformam-se, associando-se e combinando-se em efeitos de sentido e produzem significação.

Portanto, desde sua chegada ao mundo, o filhote de humano se vê lançado a fazer escolhas, ou seja, o reconhecimento dos significantes (Bejahung freudiana, juízo de atribuição) que caminha ao lado do recalcamento. Lacan marca essa concomitância dizendo "E por que precisa Freud acrescentar à sua indicação que um juízo deve vir no lugar de recalque, senão porque o recalque já está no lugar do juízo?" (1998, p.677, itálico nosso).

É assim que Freud formula a constituição dos dois sistemas psíquicos, consciente e inconsciente, que a partir dos ensinamentos de Lacan chamamos a ordem simbólica do discurso e as associações inconscientes recalcadas (lalangue).

Essa barreira do recalcamento que incide na linguagem, opera ao mesmo tempo com os objetos corporais (extração do objeto a). Na constituição subjetiva, paralelamente ao processo de recalcamento que funda o inconsciente dando lugar às duas ordens do discurso, faz-se também o trabalho de apagamento do corpo, uma vez que o corpo biológico não é puro real da carne, ao se abrir para o mundo através de seus orifícios (boca, ânus, ollhos) que são lugares de mediação com o Outro e de satisfação pulsional.

Seguindo as formulações lacanianas, as duas operações de causação do sujeito seriam a inscrição do sujeito na linguagem no processo de alienação (a operação de recalcamento que funda o inconsciente freudiano) e o barramento através do objeto, nesse processo de separação (o id freudiano, reservatório das pulsões), dito de outro modo, o sujeito é dividido pelo recalcamento, que se refere à linguagem, e pelo objeto, causa do seu desejo, cuja verdadeira natureza ele ignora. Portanto, não pode ser senhor absoluto nem de sua fala, nem de suas pulsões.

Fragelli (2002) discute, a partir das proposições de Lacan em O seminário, livro 9: A identificação,1961-1962 sobre a constituição de todo e qualquer significante ocorrendo necessariamente em três tempos: inicialmente há a inscrição de um traço – primeira marca recebida pelo sujeito (S1), seguida por seu apagamento ou rasura, que corresponderia ao que Freud propõe como a operação de recalcamento, permanecendo inconsciente, e, por fim, um terceiro momento em que o sujeito pode se dizer a partir da interpretação que faz das marcas que lhe foram inscritas (FRAGELLI, 2002).

Os tempos de constituição do sujeito e do significante poderiam ser assim esquematizados:

1 – Esse primeiro tempo pode ser pensado a partir da inscrição mnemônica no bebê da experiência de satisfação,

[...] a letra é o elemento que foi considerado por Freud e isolado por Lacan para tratar dessa singularidade do sujeito. É o que, na trama da constituição, marca a diferença mínima entre cada inscrição. É o resultado do encontro da percepção com o que será o sujeito, uma cifra. O elemento mínimo de um enigma. Marca o tempo primeiro da instalação do significante, ofertando-se como suporte material para que sobre ele a operação se desdobre. (FRAGELLI, 2002, p. 59)

Nessa notação, S1 é o representante do sujeito na sua diferença, o que o torna único e singular: é o nome próprio, por exemplo.

2 – Agora trata-se do apagamento do traço para que o significante possa se constituir. Essa operação é realizada pelo recalcamento originário e impede que o traço tenha acesso à consciência, instituindo S1, traço unário, primeiro significante do sujeito. A partir desse apagamento, também os significantes posteriores que por uma linha associativa estiverem ligados a S1 são recalcados; esses significantes formam uma cadeia, iniciando a operação significante, inscrevendo um texto no sistema inconsciente.

O apagamento do traço faz uma marca, é o S2 que se institui pelo mesmo movimento que condenou S1 ao inconsciente. Assim ordenados, S1 – S2 estão ligados, mas separados. A eles se juntarão outros significantes (S3, S4, Sn…), que montarão uma cadeia, e então a operação significante poderá se desenrolar. (FRAGELLI, 2002, p. 62).

3 – Esse é o tempo em que o sujeito emerge a partir da leitura das marcas anteriormente inscritas e essa é a condição de sua constituição: dar uma significação própria, interpretar suas marcas no campo do Outro. Para tanto, o operador dessa leitura seria o significante Nome-do-Pai, aquele que ratifica a divisão do sujeito pela linguagem e o submete à lei simbólica, interditando o desejo materno e possibilitando à criança um lugar diferente daquilo que falta à mãe, dito de outro modo, A metáfora paterna simboliza a separação primordial em relação à mãe e aos significantes do desejo materno. Essa interdição articula a cadeia significante e põe em jogo toda uma série de outros encadeamentos significantes que possibilitam novas e constantes substituições, permitindo que as marcas do Outro transformem-se em marcas próprias, para que o sujeito possa se dizer.

Fragelli (2005) comenta que a inscrição inicial (S1) deverá ser apagada (recalcada) e permanecerá inconsciente funcionando como elemento a partir do qual se estruturará o texto inconsciente. É só no terceiro tempo da constituição do significante que poderá emergir o sujeito, pois as inscrições estão à espera de serem lidas. Portanto, para que haja sujeito é necessário ler essas marcas que recebeu do Outro e que lhe deram uma determinada posição no campo do sentido. É assim que, na passagem do significante que designa o sujeito no desejo do Outro (S1) para um outro significante que dá prosseguimento à operação simbólica (S2), mas ainda no campo do Outro, se produz a perda necessária que tem como efeito a operação de um vazio na significação, um "esburacamento do Outro" a partir do qual o sujeito poderá surgir marcado por essa perda que o fundou.

E assim, a criança que nasce tecida no campo do Outro materno, poderá desfazer os alinhavos dessa costura que a inscreveu no campo dos humanos para recortar-se na sua singularidade de sujeito desejante, posto que faltante.

 

Possibilidades de arremate

Habitualmente, pensa-se a produção escrita das crianças apenas como uma representação da fala.

Kupfer (2007) afirma que

"Se a escrita fosse apenas uma representação da fala, não faria diferença falar de palavra escrita ou falada. Acontece que, ao se imprimirem, as marcas do Outro o fazem segundo uma legalidade precisa. Essa legalidade é a da lógica da escrita, a de sua estrutura. Uma legalidade muda, sem voz alguma. A fala é apenas seu veículo. O que se marca não são as marcas sonoras ou visuais, mas um sistema, regido por leis que são leis organizadoras de marcas, de traços, de registros." (p.7)

A formulação lacaniana de que o inconsciente está estruturado como uma linguagem baseia-se na concepção freudiana de inconsciente estruturado como um escrito. Kupfer (2007) assinala que essa noção da estrutura do inconsciente como um escrito é de fato revolucionária.

Há nela uma predominância do escrito sobre o falado, e essa idéia já se encontrava em A Interpretação dos Sonhos (Freud, 1900). Desse modo, até mesmo a idéia clássica da alfabetização segundo a qual a escrita é a representação da fala fica subvertida.

É agora a fala que passa a ser uma espécie de representação do escrito inconsciente. Não é isso que Freud (1900) escreve quando se refere à regressão às imagens que o sonho realiza? Para ele, as primeiras inscrições são anteriores à palavra, e são elas que retornam no sonho. (p.5)

A escrita alfabética não é um modo de representação da fala e pode ser pensada, assim como a própria fala, como um desdobramento da relação do sujeito com a ordem da linguagem.

A partir das formulações de Freud e Lacan, os psicanalistas colocam em questão a idéia de que a fala veio primeiro e a escrita surgiu para representá-la. É a fala que passa a ser uma espécie de representação do escrito inconsciente.

Kupfer (2007) comenta os estudos de Gérard Pommier sobre o nascimento da escrita e afirma:

[...] essa anterioridade lógica se traduz na idéia de que as primeiras inscrições são marcas informes, e precisam da palavra, do desenho, do rébus, da letra alfabética, de qualquer coisa na qual "pegar carona" para se fazer dizer, não somente no sentido de encontrar uma palavra, mas no sentido de encontrar uma forma [...] Pommier (1993), baseado em Lacan, resume essa idéia nos seguintes termos: há uma origem comum a todas as formas de transmissão da mensagem (sonho, desenho, pictograma, letra alfabética), e essa origem é a instância da letra no inconsciente. "O grafismo do homem é parente do sonho" [...]. (p.9)

Se o surgimento da escrita requer a operação do recalque como pensar o trabalho de escrita propiciando efeitos organizadores ou estruturantes para crianças psicóticas ou neuróticas graves, se o que lhes escapa é exatamente a operação do recalcamento?

Nesse sentido, valeria a pena lembrar que quando se trata da clínica com crianças "a infância reconhece a possibilidade de estados provisórios, não decididos, que vão se decidir tardiamente quanto à estrutura. E tem o que chamo de psicoses não-decididas, ou indecididas, porque realmente não se produziu uma inscrição definitiva, há uma espécie de suspense, de escansão, de dilatação desse momento de inscrição, de captura da criança no campo da linguagem numa posição subjetiva". (JERUSALINSKY, 1993b, citado por BERNARDINO, 2005, p. 35)

A direção do tratamento de Aline foi caminhando no sentido de tentar regatá-la de uma posição infans para reconduzi-la ao trilhamento de sua linhagem simbólica.

A hipótese diagnóstica que balizou o trabalho da equipe não era de uma psicose não-decidida, mas de uma neurose severa que registrava uma perturbação da transmissão simbólica que parecia levantar sérios obstáculos que impediam a criança de ultrapassar a condição de objeto do Outro primordial.

Aline parecia cristalizada em um posição sígnica – sua majestade o bebê – que decretava a impossibilidade do desdobramento do campo simbólico em toda a sua extensão. Suas dificuldades de aprendizagem pareciam estar referidas à sua resistência à expulsão do sujeito, como se na passagem de S1 para S2 a 'costura' se reforçasse, ao invés de romper os alinhavos possibilitando a queda do corpo e a entrada no significante.

Isso parecia ficar claro quando "sua" escrita de qualquer palavra não podia abrir mão de muitas letras A que eram enfileiradas junto das garatujas. Aline preferia escrever do "seu jeito". Mesmo que o preço a ser pago fosse da impossibilidade de se fazer entender por todos.

Bidaud (2007) afirma que

[...] Ler e escrever é reconhecer o que eu digo, o que pode permanecer sob a forma de marcas: sem mim. De certa forma, não sou proprietário de minhas palavras, quanto ao saber que elas contêm, e posso me angustiar ao pensar que esse saber está indo embora, em direção aos outros. Mas é através dessa operação de desapossamento que o sujeito se torna "um" entre outros, um "um" autônomo. (p.194)

Se a criança se dedica apenas a satisfazer a demanda do Outro, corre o risco de ficar aprisionada no estatuto de objeto. Por trás da demanda, a criança deverá adivinhar aquilo que existe de desejo e de amor. É medindo as incertezas e os limites do Outro (sua castração) que ela poderá se liberar de seu domínio e se construir como ser de seu desejo.

Considerar o início da escrita como processo de subjetivação marca o recalcamento da língua materna, uma vez que a apropriação da escrita também contribui para a construção do corpo e suas bordas.

A escrita tem força de subjetivação porque não exprime categorias fixas. Suas propriedades fazem dela jogo de relações, por conta da polissemia da língua, do deslizamento e da mudança de estatuto das unidades conforme o movimento que se estabelece entre unidades.

"Trata-se de um processo de mão dupla, em que o corpo precisa estar formado, bordejado, para poder escrever, ao mesmo tempo em que ganha bordas por meio do ato de escrever. Ao escrever, um sujeito se escreve também. A apresentação de um Outro regulado pela lei, neste caso o Outro da escrita, pode pacificar o sujeito (Baio, 2003). Pode, em outras palavras, introduzir, em certa medida, o recalque." (KUPFER, 2007, p.4)

Acompanhando os desdobramentos da escrita de Aline vemos que a grafia das letras é um grande desafio, pois falta destreza para os traçados o que a faz desistir da empreitada. Muitas vezes pede ajuda no sentido de que sejam feitos pontilhados (trilhamentos) que ela possa passar o lápis por cima.

Vorcaro (2005) adverte que "a permanência da criança na posição de não-falante não pode aguardar o trabalho de superação das dificuldades psíquicas parentais. O caráter lesivo da demora no manejo simbólico, pela criança, incide sobremaneira em sua não-instrumentação que é capaz de produzir uma debilidade".

Esse trilhamento teórico parece importante para interrogar as relações possíveis entre inconsciente, escrita e fala e pensar a clínica interdisciplinar na articulação dos trabalhos do psicanalista, fonoaudiólogo e psicopedagogo.

"qualquer um que queira escrever deverá
enfileirar as letras passando por
um buraco de agulha,
aquele do recalcado."

(POMMIER, 1996, p.200, tradução nossa)

 

Notas

1 A Associação Lugar de Vida é uma instituição que trata de crianças com distúrbios graves.

 

Referências Bibliográficas

BERNARDINO, L. M. F. As psicoses não-decididas da infância: um estudo psicanalítico. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2005.

BIDAUD. E. Reflexões sobre a passagem do oral ao escrito. In: COSTA, A.; RINALDI, D. (Org.). Escrita e psicanálise. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2007, p.195-205.

FRAGELLI, I. K, Z. A relação entre escrita alfabética e escrita inconsciente: um instrumento de trabalho na alfabetização de crianças psicóticas. 2002. Dissertação (Mestrado em Psicologia) – Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo.2002

_____________ A escrita na fobia e na debilidade. Revista da Associação Psicanalítica de Curitiba, Curitiba, v.1, n. 11, p.21-32, 2005.

FREUD, S. (1895). Projeto de uma psicologia para neurólogos. Trad.sob a direção de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1980. (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v.3).

__________(1950). Carta de 6/12/1896 a Fliess. Publicações pré-psicanalíticas e esboços inéditos. Trad. sob a direção de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1980. (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v.1).

KUPFER, M. C. M. Inconsciente e escrita: um corpo que cai. In: NASCIMENTO, E.; GONZÁLES, R. (Org.). Questões cruciais para a psicanálise II. Salvador: EDUFBA, 2007, v. 1, p. 1-10.

LACAN, J. Observação sobre o relatório de Daniel Lagache. In: _______ Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998, p.653-691.

POMMIER, G. Nacimiento y renacimiento de la escritura. Ediciones Nueva Visión: Buenos Aires, 1996.

VORCARO, A. A clínica psicanalítica e fonoaudiológica com crianças que não falam. In: PAVONE, S.; RAFAELI, Y.M. Audição, voz e linguagem: a clínica e o sujeito. São Paulo: Cortez Editora, 2005, p.80-99.