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 ISBN 978-85-60944-12-5

An 7 Col. LEPSI IP/FE-USP 2009

 

8/11 - COLÓQUIO-COMUNICAÇÕES LIVRES

 

Uma experiência de trabalho em grupo, orientada pela psicanálise. Formação para o trabalho com a criança sujeito?

 

 

Cynthia Pereira de MedeirosI; Suely Alencar Rocha de HolandaII

Icynthiamedeiros@yahoo.com
IIsuelyholanda@supercabo.com.br

 

 


RESUMO

Este trabalho discute o tema da psicanálise aplicada em Freud e Lacan, e apresenta um relato de experiência de trabalho que consiste numa prática de escuta em grupo aos professores de uma escola pública de educação infantil. A análise das obras de Freud em torno das aplicações não médicas da psicanálise nos remete a uma idéia de que as possibilidades de aplicação da psicanálise a outros campos de saber estão intimamente ligadas à formação do analista. No entanto, sua interrogação acerca dos limites dessa aplicação adverte contra a tendência a fazer da psicanálise uma visão de mundo. Em Lacan, a questão da psicanálise aplicada aparece explicitada no Ato de Fundação da Escola Freudiana de Paris e, nesse contexto, significa terapêutica e clínica médica, dizendo respeito à prática do analista. Na Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola, com o dispositivo do passe, Lacan institui um meio de verificação do ato analítico. Em sentido estrito, uma análise se revela didática por retroação desse tempo posterior, no qual o passe se verifica. Nesse contexto, o que se aplica da psicanálise é o desejo do analista. Assim, a aplicação seria uma conseqüência possível da implicação do praticante com a causa da psicanálise em sua formação. Neste sentido, tal aplicação só se revelaria em sua qualidade analítica num tempo posterior ao seu desenvolvimento. Sustentadas nessa teorização, diante de uma demanda de intervenção que nos foi endereçada, fizemos uma oferta que consiste numa prática de escuta em grupo aos professores de uma escola pública de educação infantil. Para lê-la, propomos uma escansão do percurso realizado em três tempos: o delineamento da demanda, o tratamento dado em resposta e seus possíveis efeitos. Apostamos que tal dispositivo pode ser pensado como uma possibilidade de formação para o trabalho com a criança sujeito.

Palavras-Chave: Psicanálise e Educação; Psicanálise Aplicada; Formação de Educadores


 

 

Inseridas em uma universidade como docentes e implicadas com a psicanálise, algumas questões insistem, exigindo um esforço de trabalho e de formalização.

Quais as possibilidades e limites da aplicação da psicanálise ao campo da educação? Ao sustentar, a partir da psicanálise, uma articulação com outros campos de saber e prática, o que pode nos servir de bússola?

Na perspectiva de discutir tais questões, essa comunicação aborda algumas indicações colhidas no percurso feito até aqui com Freud e Lacan, em torno da questão da psicanálise aplicada. Em seguida traremos um esforço de leitura de um trabalho que se encontra em curso de realização e consiste numa prática de escuta em grupo aos professores de uma escola pública de educação infantil, em Natal-RN.

Ao analisarmos a obra de Freud vemos que em mais de um momento ele alude ao tema da aplicação da psicanálise ao campo da educação. (1913a, 1913b, 1914, 1925, 1933a). Considerando as vantagens de uma utilização da mesma para fins educativos, sugere a formação analítica para as pessoas que trabalham com a educação de crianças e jovens, sustentando a posição de que a psicanálise interessa a este campo, fundamentalmente pela via da análise dos educadores (FREUD, 1925).

Análise para todos os educadores? Poderíamos perguntar! Não. É a resposta que encontramos delineada na XXXIV das novas conferências introdutórias. Nesse texto, ao admitir, de um lado, o lugar da neurose na economia psíquica e as limitações terapêuticas da análise, isto é, casos nos quais a eficácia da análise permaneceria restrita e, de outro, a particularidade do diagnóstico psicanalítico que se realiza sempre no depois, ele aponta para os limites da psicanálise (FREUD, 1933a).

Assim, se o recenseamento produzido por Freud em torno das aplicações não médicas da psicanálise indica que as possibilidades de aplicação da mesma a outros campos de saber estão intimamente ligadas à formação do analista, a permanente interrogação freudiana acerca dos limites dessa aplicação adverte contra a tendência a fazer da teoria psicanalítica uma visão de mundo (FREUD, 1933b).

Em Lacan, encontramos a questão da psicanálise aplicada explicitada no Ato de Fundação da Escola Freudiana de Paris, em 1964, no qual, ao estabelecer a estrutura e o funcionamento da escola, constitui três seções: de psicanálise pura; de psicanálise aplicada e de recenseamento do campo freudiano.

Nesse contexto, a psicanálise aplicada significa terapêutica e clínica médica e diz respeito à prática do analista, cuja verificação se daria na comparação com a prática dos grupos médicos, analisados ou não.

Embora ali já estivesse colocada a ênfase na formação do analista como tarefa primordial da Escola, é somente três anos depois, na Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola, com o dispositivo do passe, que Lacan institui um meio de verificação do ato analítico, concernente à própria lógica da análise. Então, em sentido estrito, uma análise se revela didática por retroação desse tempo posterior, no qual o passe se verifica. Portanto, essa Escola fundada por Lacan acha-se centrada sobre a produção do analista.

Nessa perspectiva, seguindo Viganò (2001) no seu texto: "a formação: psicanálise aplicada ou psicanálise que implica?", o que se aplica da psicanálise é o desejo do analista. Sendo assim, a aplicação seria uma conseqüência possível da implicação do praticante com a causa da psicanálise em sua formação. Neste sentido, tal aplicação só se revelaria em sua qualidade analítica num tempo posterior ao de seu desenvolvimento.

É justamente na via de uma leitura a posteriori que nos propomos, neste trabalho, a apresentar e discutir a experiência de escuta de professores realizada no ano de 2003 em uma escola pública de educação infantil em Natal-RN, bem como seus desdobramentos em 2007 e 2008.

Propomos uma escansão do percurso feito até aqui em três tempos, que se orientam pelo delineamento da demanda, o tratamento dado em resposta e seus possíveis efeitos.

Primeiro tempo: o delineamento da demanda - Uma demanda endereçada ao SEPA.

Embora nessa instituição o trabalho de inserção das "crianças com necessidades educativas especiais" nas salas de aula regulares se dê há quase vinte anos, a chamada "inclusão escolar" foi o motivo de uma demanda formulada ao Serviço de Psicologia Aplicada (SEPA), clinica escola da Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN: a garantia de atendimento e tratamento das crianças encaminhadas pela escola.

Segundo tempo: o tratamento dado à demanda

Na ocasião, a oferta foi a de um trabalho de escuta, realizada por uma estagiária do quinto ano de psicologia, visando um esclarecimento da demanda. As atividades realizadas consistiram basicamente em uma escuta sistemática ao grupo de professoras, as quais, num primeiro momento, falavam sobre o que, no trabalho com essas crianças, causava questão e angústia.

Essa escuta produziu efeitos de alívio que se revelavam no relato das mesmas: "A gente sempre discute os casos das crianças, mas falar para outra pessoa é diferente", afirmava uma delas.

Interrogando o estatuto dessa experiência é legítimo afirmar, acompanhando Ângela Bernardes, na introdução do seu livro, "tratar o impossível, a função da fala na psicanálise", que tal efeito de alívio se explica pela eficácia simbólica. "Falar, nos afirma essa autora, em qualquer dispositivo terapêutico tem um efeito. Efeito de alívio" (BERNARDES, 2003, p. 21).

Este, no entanto, não foi o único efeito produzido pelo trabalho. Podemos dizer, com Lacan, que a oferta de falar criou, após a conclusão do curso da estagiária, uma nova demanda, não mais dirigida ao SEPA, mas à supervisora do estágio em questão1. Além disso, o pedido dessa vez não era o atendimento das crianças, mas a escuta delas próprias, professoras.

Terceiro tempo: efeitos da direção do tratamento dado à nova demanda.

Em função de uma fértil parceria de trabalho e movidas não só pela nossa formação em psicanálise, mas, também, pelas nossas questões acerca das possibilidades e dos limites da aplicação da psicanálise à educação decidimos assumir, nós mesmas, a oferta de um espaço de escuta às professoras.

Uma vez que, para a realização do trabalho em sala de aula, a equipe se divide entre os dois turnos, nossa oferta consiste em encontros quinzenais com cada grupo de professores, sempre no horário contrário ao de suas aulas. Desse modo, os professores que assumem turmas pela manhã participam do grupo da tarde, e vice-versa.

Considerando, com Lacan, que a psicanálise dispõe de apenas um meio, a fala do paciente, como condições para o trabalho, delimitamos desde o início que, a oferta sendo dirigida a todos os professores, a participação se daria mediante a escolha de cada um e que, a cada vez, falariam do que lhes ocorresse.

Embora formulado de modo singular por cada professora, de inicio uma certa modalidade de discurso se recorta: uma queixa frente a um Outro que lhes cobra, exige.

Esse Outro assume nomes variados:

De um lado, o nome da própria instituição:

"Embora seja professora há 17 anos, aqui senti uma demanda maior por parte de mim mesma, pela necessidade de adaptação e adequação, ter que me adequar à nova sistemática de trabalho nessa escola".

"Aqui, inconscientemente, a gente se cobra uma da outra".

De outro, é em nome dos pais que tal exigência se institui:

"Os pais daqui dão pouco e exigem muito".

"Os pais aqui não cumprem os seus deveres".

Cada uma dessas queixas, no entanto, ao desdobrar-se, revelava o encontro desses professores com algo que lhes escapa, que foge ao seu controle, seja a opinião de algum pai sobre o seu trabalho, seja o comportamento de alguma criança que desafia os limites, se negando a realizar as atividades propostas, por exemplo.

É possível afirmar que a interrogação colocada à posição que assumiam frente a cada uma dessas situações foi produzindo efeitos diversos.

De inicio o relato de um desinteresse pelo trabalho:

"Fui procurada por alguns professores alegando que não havia interesse na continuidade do trabalho porque o discurso gira em torno dos problemas dos outros e não dos seus próprios. Não se sentem contemplados", nos afirma uma professora.

Por que não falo quando me angustio? Foi a interrogação deixada a essa questão!

E novas falas se produziram.

Aos poucos se davam conta de que, menos do que encontrar A resposta que resolveria de uma vez e para sempre as suas dificuldades, as suas angústias, esse espaço permitia que, ao falar, se encontrassem com as mesmas questões em uma nova posição:

Podemos dizer que foram se encontrando com o impossível de educar a partir de um novo lugar.

"Eu tava pensando, desde o encontro passado quando vocês colocaram a questão se temos obrigação de dar conta de tudo. Fiquei me perguntando. Cheguei esse ano diferente do ano passado. Não vou querer fazer de João uma criança perfeita, uma criança que inconscientemente seja a que eu espero. Me pergunto se a nossa formação na universidade não contribui para essa onipotência, de ter que fazer as crianças felizes. Mas é muito difícil aceitar isso. Por que a gente é assim?"

Admitir "não poder tudo", "não saber tudo sobre as crianças", parece ser o efeito principal produzido pelo trabalho até aqui. Esse consentimento, no entanto, não é sem ambigüidade, e o destino que será dado à mesma, o sabemos, dependerá em grande medida da nossa própria posição na escuta.

Apostamos que este espaço de escuta pode vir a ser pensado como um dispositivo de trabalho, ou, em outras palavras, de formação, para que os professores possam continuar produzindo questões que façam vacilar os ideais embutidos no campo educativo escolar, abrindo espaço, portanto, para o trabalho com a criança sujeito.

 

Referências Bibliográficas:

BERNARDES, A. Tratar o impossível: a função da fala na psicanálise. Rio de Janeiro: Garamond. 2003. 184 p.

FREUD, S. (1913a). O interesse científico da psicanálise. Trad. sob a direção de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1996. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, v. 13).

FREUD, S. (1913b). Introdução a "'the psycho-analytic method", de Pfister. Trad. sob a direção de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1996. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, v. 12).

FREUD, S. (1914). A história do movimento psicanalítico. Trad. sob a direção de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1996. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, v. 14).

FREUD, S. (1925). Prefácio a Juventude Desorientada, de Aichhorn. Trad. sob a direção de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1996. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, v. 19).

FREUD, S. (1933a). Novas conferências introdutórias sobre psicanálise: explicações, aplicações e orientações. Trad. sob a direção de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1996. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, v. 22).

FREUD, S. (1933b). Novas conferências introdutórias sobre psicanálise: a questão de uma Weltanschauung. Trad. sob a direção de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1996. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, v. 22).

LACAN, J. (1956). Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise. In ______ Escritos (Trad. Vera Ribeiro). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. pp. 238-324.

LACAN, J. (1961). A direção do tratamento e os princípios de seu poder. In ______ Escritos (Trad. Vera Ribeiro). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. pp. 591-652.

LACAN, J. (1964). Ato de fundação. In ______ Outros Escritos (Trad. Vera Ribeiro). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003. pp. 235-247.

LACAN, J. (1967). Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola. In ______ Outros Escritos (Trad. Vera Ribeiro). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003. pp. 248-264.

VIGANÒ, C. A formação: psicanálise aplicada ou psicanálise que implica?, Quarto: Revue de psychanalyse, Bruxelas, n. 74, p. 68-71, 2001.

 

 

1 Cynthia Medeiros.