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 ISBN 978-85-60944-12-5

An 7 Col. LEPSI IP/FE-USP 2009

 

8/11 - COLÓQUIO-COMUNICAÇÕES LIVRES

 

A debilidade e a psicose – uma menina e sua mãe

 

 

Monica de Barros Cunha Nezan

Psicanalista, Lugar de Vida – Centro de Educação Terapêutica. e-mail: nezan@terra.com.br

 

 


RESUMO

Na 'Nota sobre a criança', Lacan (1983) afirma que, sem a mediação assegurada pela função do pai, a criança fica exposta a todas as capturas fantasmáticas, tornando-se o objeto da mãe. Na visão lacaniana, ela não tem outra função senão a de revelar a verdade desse objeto. Lacan afirma que a criança realiza a presença do objeto a na fantasia, substituindo-se a esse objeto, saturando a modalidade de falta em que se especifica o desejo ( da mãe), seja qual for sua estrutura especial: neurótica, perversa ou psicótica. Para Lacan: "Ela aliena em si qualquer acesso possível da mãe a sua própria verdade, dando-lhe corpo, existência e até a exigência de ser protegida" (1983, p. 370).
Discutir a psicose e a debilidade é a possibilidade aberta pelo caso de Sofia. Pretende-se pensar tais categorias em função da relação particular entre o sujeito e o Outro materno, marcado pela dificuldade de separação e pelo rechaço em relação ao saber.

Palavras-chave: Psicose – Debilidade - Criança


 

 

A debilidade e a psicose - uma menina e sua mãe.

Monica de Barros Cunha Nezan

Luego, para aquellos entre nosotros que tenemos la
suerte y la desgracia de ocuparnos de niños psicóticos,
tenemos un acesso al corazón mismo de la ética del
psicoanálisis, y la possibilidad de captar hasta qué
punto esos ninõs fueron llevados a hacer función de
objeto a para la madre, de condensador de goce.

Eric Laurent (1999, p.143)

 

Na 'Nota sobre a criança', Lacan (1983) afirma que, sem a mediação assegurada pela função do pai, a criança fica exposta a todas as capturas fantasmáticas, tornando-se o objeto da mãe. Na visão lacaniana, ela não tem outra função senão a de revelar a verdade desse objeto. Lacan afirma que a criança realiza a presença do objeto a na fantasia, substituindo-se a esse objeto, saturando a modalidade de falta em que se especifica o desejo (da mãe), seja qual for sua estrutura especial: neurótica, perversa ou psicótica. Para Lacan:"Ela aliena em si qualquer acesso possível da mãe a sua própria verdade, dando-lhe corpo, existência e até a exigência de ser protegida" (1983, p.370).

A este respeito, Laurent (1999) esclarece que entender que a criança pode ocupar o lugar de objeto a, não diz respeito a uma identificação parcial, mas indica que o ser da criança, o seu ser absoluto é o que está em jogo na identificação. Ele alude a Winnicott que fala da identificação da criança com o objeto transicional, em que a criança se serve de um objeto para proteger-se da angústia e separar-se da cadeia significante e da presença que aparece para ela entre as idéias do desejo do Outro.

Trata-se de uma identificação total, absoluta, uma verdadeira aposta do ser do sujeito, que não está ligada a um momento específico do desenvolvimento infantil, mas tem um valor estrutural. Para Maud Mannoni (1985), em seu livro 'A criança retardada e sua mãe', na debilidade, há uma fusão entre o corpo do sujeito e o corpo da mãe. Lacan (1964), responde esclarecendo: não é no corpo, mas no nível da cadeia significante que se produz a fusão. A fusão, a simbiose exigem o desaparecimento do intervalo S1-S2.

Laurent (1995) assinala ser necessário separar lugares distintos no corpo, enquanto lugar de inscrição de significantes ou quando é não lugar de inscrição de significantes, lugar do gozo ou lugar da borda. Nos casos de debilidade, ele propõe a escrita da cadeia significante da seguinte maneira:

O objeto a é separado da cadeia, apresentando-se como um termo obscuro do desejo da mãe, que assume o valor de objeto da fantasia materna e não o desejo materno apoiado em um x, uma incógnita, como na fórmula da metáfora paterna.

Discutir a psicose e a debilidade é a possibilidade aberta pelo caso de Sofia, relatado posteriormente. Pretende-se pensar tais categorias, em função da relação particular entre o sujeito e o Outro materno, marcado pela dificuldade de separação e pelo rechaço em relação ao saber.

Tempo 1: de 'um não-lugar'...

Sofia chega na instituição Lugar de Vida com a mãe e a tia, em meados de 2004. Na sala de entrevista, é a tia quem fala por elas – se é Sofia quem está sendo falada ou sua mãe, o lugar que ambas ocupam é o mesmo: lugar de débil. É neste lugar de 'debilidade' que esta mãe se apresenta. Ela vem 'carregada'e 'orientada' pela tia a buscar um tratamento para sua filha. Ela própria se apresenta bastante objetificada, "despida, com o esplendor do corpo nu, sem mediação nem articulação com os objetos" (Laurent,1995, p.173). Lugar e origem se interrogam nesta relação mãe-filha. A mãe relata que, ao contrário do filho mais velho, Sofia é fruto de uma relação com um homem que não amava.

Sofia parece não ter lugar no desejo materno, é filha de um homem que a mãe não amava, não desejava. Em lugar da possibilidade de desejo por um homem, a mãe oferece uma relação dual, que deixa a filha aprisionada na fantasia materna. Subornada pela fantasia inconsciente da mãe, ela aliena, em si, a falta materna. Ao introduzir na mãe a frustração, pela impossibilidade de realizar o seu desejo, a criança fica fixada em uma imagem fantasmática que a fixa na dupla com o Outro materno, sem a intervenção da metáfora paterna (Santiago, 2005).

Sofia chega ao Lugar de Vida, já em tratamento fonoaudiológico no Derdic e em atendimento individual no consultório. Após algum tempo de tratamento, ela é encaminhada para a pré-escola - EMEI. Para acompanhá-la nesse processo escolar, inicia-se o acompanhamento da escolarização de Sofia, através do Grupo Ponte (Lugar de Vida).

A fim de viabilizar a escolarização, ela e sua mãe fizeram encontros com um profissional do grupo Ponte, para se pensar na escolha de uma escola. Foi escolhida uma escola não muito longe da sua moradia, onde havia uma professora que já conhecia o trabalho do Lugar de Vida. Foi assim que iniciou o percurso escolar de Sofia.

Na escola, filha e mãe se apresentam como dois corpos que caem, "desconjuntadas", corpos 'largados', um na sala de aula e o outro à espera no 'pátio' escolar. A mãe esperava a saída da filha, sem nada para fazer e, na hora da refeição, sentava ao lado da filha, onde comiam juntas.

Sofia chega sem falar, usando fraldas, com gestos estereotipados e repetitivos. Grita e se movimenta de um lado para outro, quando sua mãe desaparece de seu campo visual. Não come só, é necessário que lhe seja dada a alimentação na boca. Quando isso não acontece, ela própria pega a mão do outro para lhe dar, como se o corpo do outro fosse uma extensão do seu próprio corpo. Repete na escola os mesmos movimentos estereotipados que realiza em casa, com 'tampinhas', jogando-as e as deixando cair, em movimentos repetitivos.

Como puro objeto da mãe, a filha toma o lugar da denegação da castração materna, parecendo encarnar com o seu ser a sua anulação como sujeito. A mãe apresenta-se apática, melancolizada, carregando a filha, objeto-dejeto, como um apêndice de seu próprio corpo. A filha parece encarnar um puro vazio, talvez indicativo do lugar vazio no seu desejo, em relação ao pai da sua filha.

Tempo 2: Algum lugar...

Neste processo da escolarização, paralelo ao tratamento, Sofia vai encontrar alguma borda possível, alguma possibilidade de diferenciação com a mãe. Aos poucos, a escola vai permitindo algum lugar possível para Sofia e sua mãe.

Sofia já permanece em sala de aula, não necessitando sair correndo pelo corredor. Não precisa mais que a mãe lhe dê comida na boca, pode sentar para comer, não se assusta mais com o espaço da escola nem com a rua. Parece sentir 'prazer' na sua tentativa de jogo presença/ausência, brincando com a bola que vai e outra que vem.

A mãe alia-se à coordenadora da escola, começa a se interessar pelos seus direitos, consegue perua escolar para sua filha e até indica a uma vizinha que procure matricular a filha na mesma escola que Sofia estuda. No tratamento, filha e mãe podem dividir algo, uma espécie de brincadeira, juntas mãe e filha 'aprendem' a se relacionar, brincar juntas. A mãe não se apresenta mais ' desconjuntada', o corpo vai se 'formando', criando uma forma ereta. A filha vai acompanhando o movimento da mãe, porém no seu próprio espaço, quer seja no tratamento ou na sala de aula.

Ao possibilitar algum lugar para a mãe de Sofia, lugar de encontro com um outro semelhante, foi sendo possível construir algum lugar para a filha, lugar que pode não se confundir com o Outro, mas que pode encontrar alguma separação, diferenciação.

A mãe, que, inicialmente, ocupava a posição de debilidade, pode se separar dessa posição de recusa do saber, abrindo um espaço para uma outra significação, o que foi possibilitado pela escola, que soube acolher a mãe no seu espaço, a partir de um outro lugar. Ela pode falar sem um outro que fale por ela, pode reclamar pelos seus direitos e permite à filha ocupar o lugar de criança, como aluna da escola.

Tempo 3: Momento de esvaziamento – de volta ao não-lugar.

Sofia permanece por 2 anos e meio nesta EMEI, continuando o tratamento institucional. Estamos em 2007, a escolarização tornou-se fundamental no processo terapêutico de Sofia, mãe e filha puderam encontrar algum lugar. Migrar de "deficiente" para o lugar de "aluna" foi efeito de um trabalho entre as varias instâncias de tratamento, um conquista que deixou marcas na constituição subjetiva de Sofia.

Entretanto, um acontecimento surpreende e interrompe a escolarização de Sofia: a equipe escolar solicita um relatório para que Sofia possa permanecer por mais um ano nesta EMEI, pois ela já havia passado da idade cronológica para ser aceita por aquela escola. Apesar dos esforços de ambas as partes, Sofia não poderá mais permanecer nesta escola, pois prevalece o estatuto legal, que não permite crianças maiores de 6-7 anos de idade na pré-escola. A diretora escolar, então, encaminhou-a para uma escola regular do ensino fundamental – EMEF.

Já no primeiro dia de aula à nova escola, o "caos"se instaura. A mãe leva Sofia à escola, deixando-a "largada" no pátio escolar, sem falar com ninguém e vai embora. Abandonada pelo Outro, Sofia grita e corre pelos corredores, sem destino. A escola se desespera, começando a "correria" geral. Todos os portões e portas vão se fechando na tentativa de conter esta nova aluna que "despencou" e foi despejada naquele espaço desconhecido.

Sofia novamente cai no vazio, o vazio de um pátio escolar não reconhecido por ela, deixada como um objeto-dejeto pela sua mãe. Esta nova escola, não a reconhece como uma aluna, ela será vista, como "a filha largada pela mãe".

Se, antes, mãe e filha haviam encontrado alguma borda possível, alguma possibilidade de separação e diferenciação, voltamos ao "não-lugar"de origem. A mãe não tem lugar de mãe, "carrega seu objeto" até a sala de aula e lá permanece por 1hora e meia com Sofia. Esta, por sua vez, é "largada" na sala, vagando de lá para cá. Nesta nova escola, só há lugar para Sofia quando permanece colada à mãe; mãe e filha novamente estão anuladas como sujeitos. A mãe apática, melancolizada e débil, a filha no puro vazio, "objeto-dejeto" da mãe.

Quando Lacan (1968-9), no Seminário 'Um Outro ao outro', afirma que a criança é o objeto a liberado, produzido, ele quer dizer que a criança ocupa um lugar de ser capturada não no ideal, mas no gozo do Outro. Nesse sentido, ela vem tamponar a falta do Outro, não como ideal, mas como gozo, ela vem como rolha do gozo do Outro. Quando ela vem no lugar do a, do objeto condensador de gozo, é assim que a família se estrutura, em torno desse objeto. Esse momento em que Sofia se vê às voltas com o vazio, a barra aberta pela ausência da mãe, ela se defronta com o furo existente do lado do sujeito. Segundo Laurent (2007), como resposta ao deixar cair há, do lado do sujeito, um fechamento que pode se apresentar como "armadura", que se apresenta como uma forma de fazer-se "homem de pedra". Uma outra possibilidade é um grande rechaço depressivo.

Diante desse momento de esvaziamento, Sofia responde ao "deixar cair", com o grito endereçado ao Outro materno, cujo dizer parece ter caído no real. Para Laurent (2007), pode-se pensar em uma produção subjetiva, quando uma pura ausência real equivale-se ao surgimento de função subjetiva, que podem ser pensadas tanto nas crises epilépticas, nos uivos ou nos chamamentos contidos nos significantes-mestres do dizer dos pais que caem no real.

A mãe de Sofia, por outro lado, responde ao não-sentido da perda de um lugar conseguido na escola anterior. Sem outros recursos psíquicos para responder ao insuportável, parece se produzir uma alienação tal, que a deixa sem domínio e, na falta do apoio do Outro, provoca-se o "deixar cair". A sua resposta parece vir do rechaço depressivo, do não querer saber nada disso.

Tempo 4: Todos "deixam cair".

De "algum lugar", vemos o retorno ao "lugar algum". Em queda, a mãe e a filha não conseguem se implicar em nenhum lugar a elas ofertado. No tratamento, ela passa a chegar atrasada, as faltas acontecem de forma regular. Sem a regularidade de sua vinda aos atendimentos, nas poucas vezes em que vem à instituição, Sofia se faz presente apenas pelos gritos e movimentos estereotipados. Nenhuma parceria parece ser possível, então.

O "não lugar" se estende para todos, não consegue se engajar no atendimento individual, "ela só grita e não quer ficar na sala" – relata a terapeuta. "Reservo a sala do atendimento e ela não aparece" – diz a fono. "Na escola, ela tem faltado bastante, o acompanhamento escolar fica sem lugar"- diz o profissional LV. Por último, a escola, parecendo aliviada, decreta: talvez não seja este o lugar dela.

Diante da dificuldade de engajar-se nos atendimentos, ela perde a vaga para o atendimento fonoaudiológico. Freqüenta a escola, com a condição de que a mãe esteja sempre presente. Sem atendimento individual, ela começa a fazer parte do Grupo "Portas Abertas", no Lugar de Vida. Inicia-se um trabalho, em que insiste uma inquietação: Que lugar possível para Sofia, a partir de agora?

No Grupo "Portas Abertas", a criança tem a possibilidade de circular por vários espaços, salas em que elas podem transitar. Em algumas salas, tem oficinas de jogo, música, lanche, como também a possibilidade de que a criança se distancie do grupo, com o acompanhamento de um adulto. Sofia, muitas vezes, fica no portão do quintal, que separa o grupo do local em que a mãe a espera; Algumas vezes, ela entra na sala das brincadeiras e já começa a olhar para a oficina de música e tem conseguido se distanciar do portão, mais perto das oficinas ofertadas. Pela primeira vez, entrou correndo e rapidamente se desligou da mãe, deixando-a na sala de espera e foi para o quintal sozinha.

Laurent (2007) oferece algumas direções. Em relação à interpretação, é preciso em princípio, um "não" à homeostase, o que poderia introduzir a dimensão de um objeto, como o que pode permitir o desprendimento da criança, sem que ela seja levada a atravessar uma crise insuportável. Instaura-se um vaivém , diferentes básculas do sujeito em torno do objeto do Outro. Trata-se de um "não" ao gozo, que precisa ser sustentado quando a criança se torna condensadora de gozo.

Se várias portas foram fechadas, nem todas as portas abertas puderam ser transpostas. Entretanto, Sofia tem ficado junto ao muro, ao corredor, ao pé do portão de entrada, parada na porta. Ao mesmo tempo em que delimitam fronteiras, tais lugares se configuram como bordas, limites, mas asseguram travessias. Manter as portas entreabertas talvez possibilite um ir e vir, em uma alternância ausência-presença que lhe seja suportável e que lhe permita alguma parceria possível. Assim, pode-se concluir com a interrogação: um "não" estará sendo possível no sentido de oferecer-lhe algum outro lugar? Mas, estamos no instante de ver. Faz-se necessário, ainda, um longo tempo para compreender.

 

Referência Bibliográficas

Lacan, J. (1964). O seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.

_______. ( 1968-9). Le Séminaire, Livre XVI: D'un Autre à l'autre. Paris: Seuil, 2006.

_______. (1983). Nota sobre a criança. In:Outros escritos. Trad.Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, p. 369-370, 2003.

Laurent, E. (1995). Versões da clínica psicanalítica. Trad.Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 245 p.

_________. (1999). Hay un fin de análisis para los ninõs. Buenos Aires: Coleccion Diva.

_________. (2007). A Sociedade do Sintoma. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro : Jorge Zahar, 230 p.

Mannoni, M. (1985). A criança retardada e a mãe. São Paulo: Martins Fontes.

Santiago, A. L. (2005). A inibição intelectual na psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 229 p.