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 ISBN 978-85-60944-12-5

An 7 Col. LEPSI IP/FE-USP 2009

 

8/11 - COLÓQUIO-COMUNICAÇÕES LIVRES

 

Os impasses psíquicos na contemporaneidade e suas implicações no processo de ensino/aprendizagem

 

 

Renata Petri

 

 


RESUMO

Este trabalho tem como objetivo contribuir para a elucidação dos efeitos subjetivos das mudanças operadas no laço social contemporâneo, sobretudo sua incidência no universo escolar. Pretende-se pensar na relação que as atuais e frequentes articulações sintomáticas que aparecem no espaço escolar, tais como o chamado TDHA, transtorno de déficit de atenção e hiperatividade, fobias, inibições, etc, sintomas que normalmente comprometem a relação da criança com o conhecimento, mantêm com o discurso social vigente e o impacto que têm na capacidade de aprender, ou no desejo de saber da criança.
O discurso hegemônico da atualidade é o discurso da ciência, na sua versão mercantilizada. A ciência inventa objetos para a satisfação humana, a serem fabricados e oferecidos no mercado. A principal característica deste discurso, em comparação com os demais discursos nomeados pela psicanálise, é justamente o fato de não fazer laço social, o sujeito é tomado como objeto, acarretando uma decomposição dos laços sociais tradicionais.
Como pensar a aprendizagem neste cenário? Como a ilusão capitalista comparece na escola? Que implicações tal configuração sócio-cultural têm na subjetividade contemporânea? Como esse discurso aparece no universo escolar? Que efeitos o discurso capitalista tem sobre os alunos e sobre o processo de ensino/aprendizagem? São algumas pontos que se pretende discutir neste trabalho.

Palavras-chave: subjetividade, cotidiano escolar, discurso capitalista


 

 

Este trabalho faz parte de um projeto de pesquisa ainda em construção cuja idéia central é contribuir para a elucidação dos efeitos subjetivos decorrentes das mudanças operadas no laço social contemporâneo, sobretudo em sua incidência no universo escolar. Pretende-se investigar se as articulações sintomáticas atualmente mais frequentes no espaço escolar - tais como o transtorno de déficit de atenção e hiperatividade, fobias, inibições, etc – como sintomas que comprometem a relação da criança com o conhecimento têm alguma relação - e qual seria - com o discurso social vigente; e ainda, qual seu impacto na capacidade de aprender, no desejo de saber da criança.

As crianças em idade escolar estão cada vez mais sendo diagnosticadas e tratadas, inclusive através de terapia medicamentosai. Qual a responsabilidade da escola como instituição de reprodução do discurso social vigente em relação ao sofrimento psíquico revelado pelos sintomas das crianças e à legitimação de determinadas formas de abordagem, compreensão e tratramento desses sintomas? O que a escola, como instituição educativa, pode fazer para criar um espaço propício ao processo de ensino/aprendizagem? Estas são algumas das questões que este trabalho pretende discutir. Para tanto, vamos fazer um certo percurso.

Se, por um lado, a psicanálise como disciplina clínica oferece instrumentos de leitura do sintoma e aponta a direção do tratamento, não responde à urgência presente nessas situações que levam o aluno a uma experiência de fracasso escolar se não for revertida rapidamente. Por outro lado, a escola, embora muitas vezes não tenha instrumentos de leitura suficientes para encontrar uma saída, é um espaço privilegiado para uma intervenção que possa propiciar a retomada da aprendizagem quando esta se encontra prejudicada. Nesse sentido, esta pesquisa tem por finalidade principal a interlocução com a escola visando à construção de dispositivos novos que viabilizem as condições necessárias para que o professor possa construir hipóteses de trabalho que possibilitem o processo de ensino-aprendizagem, não ficando paralisado frente ao sintoma, ou capturado por ele, responsabilizando a criança pela dificuldade.

Cada vez mais a psicanálise vem sendo solicitada, não só como uma clínica da subjetividade, mas também como crítica às formações sócio-culturais da contemporaneidade, fazendo interface com vários outros campos de saber.

Atualmente, diante das questões suscitadas pelo campo da educação, sobretudo no que se refere a seus impasses, é comum o saber da psicanálise ser convocado. A contribuição que a psicanálise pode fazer à educação, no entanto, não consiste no fato de ser detentora de um saber superior ou suplementar, mas no fato do discurso analítico ter justamente como característica a possibilidade de apontar a resistência implícita nos demais discursos de modo à desobstacularizá-los.

Sabemos que existe um sintoma social na educação, que pode ser chamado de maneira genérica de fracasso escolar, ou seja, há um número significativo de alunos que não aprende. Este sintoma é paradigmático para se pensar nas intersecções entre o singular e o social. O subjetivo comparece, mas articulado a uma certa incidência do discurso social. A hegemonia ou predominância de um determinado discurso social incide na subjetividade de uma época, podendo resultar em articulações sintomáticas.

Qual é o discurso hegemônico da atualidade? O discurso da ciência, na sua versão mercantilizada. A ciência inventa objetos para a satisfação humana, a serem fabricados e oferecidos no mercado. E o ideal educativo que se desdobra a partir deste discurso é de uma felicidade baseada na satisfação plena, no gozo imediato e sem limites.

A principal característica deste discurso, em comparação com os demais discursos nomeados pela psicanálise, é justamente o fato de não fazer laço social, o sujeito é tomado como objeto, acarretando uma decomposição dos laços sociais tradicionais. A depressão e a ansiedade, sintomas bastante comuns atualmente, apontam justamente para a expressão subjetiva dessa incidência prevalente do discurso social. Os sintomas contemporâneos que aparecem no universo escolar acima mencionados podem também ser pensados a partir desta lógica.

É sabido que Freud destacou a renúncia pulsional como meio de pertencer à cultura, ao universo simbólico, garantindo o laço social, estruturado em torno de uma Lei, sustentada pela função paterna. Com as mudanças nas formações sócio-culturais, com o advento de uma espécie de "sociedade não-repressiva" vinculada à universalização das práticas de consumo, o imperativo social se modificou, tornando-se: goze! A qualquer preço! A despeito do outro. (Melman, 2003; Safatle, 2005)

Os estudiosos dos processos de socialização assinalam o declínio da sociedade do trabalho e a obsolescência do paradigma da produção. "Assim, ao invés da sociedade da produção, devemos compreender a contemporaneidade e seus traços a partir da temática da sociedade do consumo, no sentido de que problemas vinculados ao consumo acabam por direcionar todas as formas de interação social e de desenvolvimento subjetivo, assim como é o incentivo ao consumo que aparece como problema econômico central." (Safatle, 2005, p.126)

Do lado da psicanálise, sua vocação terapêutica, encontramos cada vez menos sujeitos na clínica demandando escapar de destinos traçados, de ideais familiares supostamente impostos, como há algumas décadas. Hoje, sofrem de solidão, estão perdidos, incapazes de gozar e se satisfazer como deveriam, consumindo sem cessar os objetos que fazem essa promessa. A culpa não é mais vinculada à distância em relação aos ideais, mas relativa à incapacidade de se gozar suficientemente dos objetos.

A psicanálise está em franca oposição a este discurso, que Lacan chamou de discurso capitalista. A partir das formulações freudianas, podemos dizer que o objeto de desejo humano é fundamentalmente perdido, todos os possíveis objetos são meros substitutos do suposto objeto primordial. Há um mal-estar inaugural na cultura, pois não há relação plenamente satisfatória com o objeto, o que abre uma perspectiva muito interessante, afinal, não podemos acusar o outro por nossa insatisfação, é preciso assumi-la, suportá-la. É o que a psicanálise nomeia como castração, que instaura o desejo, e que sustenta sua ética.

A psicanálise denuncia então a insensatez da ordem "gozar a qualquer custo", pois é uma ordem estruturalmente impossível de ser satisfeita. Justamente esta impossibilidade é que alimenta a máquina capitalista, ou seja, a cada nova mercadoria existe a promessa de completude e satisfação plena, ao mesmo tempo que a confirmação da inadequação do objeto para a total satisfação humana, gerando o que Safatle (2005) chamou de uma sociedade da insatisfação administrada, ou seja, ao mesmo tempo em que renova a ilusão da satisfação, eterniza a insatisfação.

Pode-se dizer que os objetos têm duas faces, uma material, concreta, que se presta à ilusão de satisfação, e outra que aponta para esta incompletude, para o vazio existencial. Os objetos de consumo atualmente não são deste tipo, são todo realidade, não permitindo que se extraia nada dele além de seu valor concreto, de satisfação imediata. O laço social sempre foi o que permitiu suportar este vazio, este lado sempre insatisfatório do objeto, ainda que não o tamponasse completamente. Ao tentar desprezar, recalcar, este lado do objeto, joga-se fora na mesma tacada a potência própria ao laço social.

Como podemos ver, a psicanálise desvela a falácia da ilusão capitalista. Como esta ilusão comparece na escola? Que implicações tal configuração sócio-cultural tem na subjetividade contemporânea? Como esse discurso aparece no universo escolar? Que efeitos o discurso capitalista tem sobre os alunos e sobre o processo de ensino/aprendizagem? (cena da Criarte) Uma escola sustentada por uma "pedagogia contemporânea", tomada na lógica do mercado, da competição, em que as palavras de ordem são eficiência, rapidez, produtividade, como pode acolher o sofrimento psíquico revelado pelos sintomas, manifestação do sujeito inconsciente, que sustenta e possibilita o sujeito do conhecimento, e viabilizar boas condições para a aprendizagem?

Os sintomas contemporâneos revelam a impostura da promessa de completude do discurso capitalista e desvelam a fragilidade das relações de objeto. Diante do imperativo categórico de gozo, incondicional, o sujeito sucumbe, e aparece justamente no sintoma, garantindo o fracasso desta ordem insensata.

O que poderia fazer algum limite a essa tendência? O que estaria ao alcance da escola fazer para revitalizar os laços sociais, tirando a criança do lugar de objeto de um discurso, resgatando seu estatus de sujeito desejante? Para a psicanálise, um sujeito desejante é um sujeito em falta, dividido, incompleto, é o que o faz dirigir-se aos objetos. É justamente o conflito, a insatisfação, o mal-estar, que leva o sujeito a seguir em frente, pensar, aprender. Neste sentido, a escola segue sendo um espaço privilegiado, afinal é o lugar social por excelência da criança, é onde tece os primeiros laços significativos para além dos familiares e, também, onde pode se encontrar com o objeto 'conhecimento', que, diferentemente dos objetos 'mercadoria', alimentam o sujeito do desejo, permitindo à criança aprender a lidar com a falta fundamental, verdadeira condição humana, ao invés de tentar tamponá-la.

Para querer aprender, então, a criança precisa primeiramente estar 'em falta', viver a inquietude do desejo, sem ter a ilusão da completude renovada a cada instante. A partir daí, precisa encontrar um professor, um adulto que lide com suas faltas a partir de sua relação com o conhecimento e com o outro, também um sujeito desejante, e não um consumidor voraz de objetos intermináveis que renovem tal ilusão, ou um sujeito impotente, deprimido e culpado por não poder pertencer adequadamente a esta lógica. Este encontro entre professor e aluno, o campo transferencial que é tecido, tem a potência de manter o desejo aceso, permitindo que a criança possa pensar, aprender, tomando para si o conhecimento, que passa então a estar a serviço de suas próprias construções subjetivas e intelectuais.

Neste ponto, podemos tirar algumas conclusões:

Quanto mais a criança estiver tomada na lógica do discurso capitalista, movida então mais a gozo do que a desejo, menos interesse terá pelo objeto conhecimento, pouco atraente como objeto de satisfação imediata.

Quanto mais o professor estiver tomado nesta lógica, menos seu conhecimento estará imantado pelo desejo necessário ao fisgamento dos alunos.

Enfim, quanto mais a escola estiver tomada nesta lógica, mais terá dificuldades em realizar sua principal tarefa: a transmissão do conhecimento.

O conhecimento é um objeto brilhante para o aluno se investido de desejo, tanto o do professor, que então, pode bem desempenhar o lugar de suposto saber, quanto da criança, que então pode aprender a lidar com a própria falta por meio do conhecimento. Assim, quando se é movido a desejo, o conhecimento é um objeto bastante potente!

Hoje, não é raro que os professores, ao invés de investirem e revestirem seu objeto de conhecimento, se colocam numa posição de quem sabe sobre a criança, sobre sua natureza infantil, buscando controlar seu objeto, e nisto baseia sua intervenção.

O saber, que é um saber sobre a falta, passa a ser um saber sobre o Outro, que se torna invasivo, do qual o sujeito tem que se defender. Assim, para resguardar um mínimo de subjetividade e não ser engolido como objeto para o outro, a criança constrói um sintoma.

Sem pregar uma nostalgia em relação ao passado, como podemos trabalhar na direção de tecer laços que possam preservar a subjetividade de cada um, o que inclui insatisfação, conflitos, mas também algum sentido, escapando ao que Roudinesco (2000) chamou de sociedade depressiva?

O sentido da vida não é um valor inerente à própria vida, mas uma construção discursiva, transmissão de valores realizada por aquele que já sabia o que fazer com a vida, criando uma dívida simbólica. Na contemporaneidade, a ciência, na sua versão mercantilizada, ocupa este lugar, fazendo apelo ao objeto e não ao outro, achatando a esfera subjetiva e interpondo obstáculos à transmissão da falta, segundo Melman (1994), o bem maior que se pode dar a um filho, dom supremo, alcançado por um traumatismo.

É notável que o saber paterno, saber particular sobre como lidar com a incompletude intrínseca à condição humana, atualmente vem sendo acometido por uma deflação inversamente proporcional à inflação do saber conferido à ciência, trazendo efeitos desastrosos não somente ao exercício da função paterna, condição para a sustentação da autoridade do professor, como também, e sobretudo, à própria subjetividade da criança. Daí o interesse desta pesquisa em se deter nos efeitos deste cenário no universo escolar, lugar social destinado às crianças.

Podemos afirmar que a palavra é ferramenta educativa por excelência. E a psicanálise nos ensina que é a marca da sujeição à castração. Testemunho do que escapa, do saber fazer com a falta. Neste sentido, um trabalho possível deve incluir a palavra plena dos pernonagens principais da cena educativa.

Assim, concluímos esta breve exposição explicitando a proposta desta pesquisa: grupo discursivo para professores, espaço para falarem do trabalho, dos alunos, daquilo que incomoda e não vai bem, dos impasses vividos no cotidiano escolar. A escuta psicanalítica pode fazer desta experiência discursiva, uma oportunidade de cada professor se confrontar com seu dizer, de maneira a possibilitar um esclarecimento de sua posição como educador e uma consequente implicação com o seu fazer. A partir disso, então, cria-se hipóteses de trabalho e constroem-se intervenções educativas necessárias a um bom andamento do processo de ensino/aprendizagem. Ao se responsabilizarem pela própria palavra, decanta-se uma posição ética, que tem no desejo a medida da ação.

 

Bibliografia

Bauman, Z. A vida líquida. Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 2007.

Freud, S. (1895) Projeto para uma psicologia científica. In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. V.1, Imago, Rio de Janeiro, 1969.

Freud, S. (1929) O mal-estar na civilização. In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. V.21, Imago, Rio de Janeiro, 1969.

Lacan, J. O Seminário– livro 4: A relação de objeto. Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 1995.

Lacan, J. O Seminário– livro 7: A ética da psicanálise. Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 1988.

Lacan, J. O Seminário – livro 17: O avesso da psicanálise. Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 1994.

Lajonquière, L. Infância e Ilusão (Psico)Pedagógica: Escritos de psicanálise e educação. Editora Vozes, São Paulo, 1999.

Melman, C. Sobre a educação das crianças. In: Educa-se uma criança? Calligaris C. et alli. Artes e Ofícios, Porto Alegre, 1994.

Melman, C. O Homem sem gravidade: gozar a qualquer preço. Companhia de Freud, Rio de Janeiro, 2003.

Safatle, V. (2005). Depois da culpabilidade: figuras do supereu na sociedade de consumo. In: Zizek crítico: política e psicanálise na era do multiculturalismo. Org. Christian Dunker, José Luiz Aidar Prado. São Paulo, Hacker Editores.

Roudinesco, E. Por que a psicanálise? Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 2000.

 

 

i É importante ressaltar também este outro viés da problemática abordada: a indústria farmacêutica, com seu poderoso investimento na massificação das doenças, tem 'lançado' ao lado de cada nova medicação, uma nova doença, com critérios amplos de diagnóstico e que demanda o uso contínuo do tal remédio. Este fenômeno é bastante evidente junto às crianças que frequentam as escolas: "depois da epidemia de diagnósticos de 'dislexia', a moda em matéria de medicalização do desempenho escolar passou a ser a TDAH, contemporânea da ascensão da Ritalina como 'remédio certo para a doença certa'" (LEITE, M. Hipocondria de resultados, in: jornal Folha de São Paulo, 23 de abril de 2006). Basta destacar o potencial de dependência dessa medicação para começarmos a revelar o grau de perversidade desta prática.