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ISBN 978-85-60944-12-5 versão

An 7 Col. LEPSI IP/FE-USP 2009

 

8/11 - COLÓQUIO-COMUNICAÇÕES LIVRES

 

Psicanálise, infância e estruturas não decididas: o que cabe ao analista frente ao atendimento de crianças?

 

 

Roberta Ecleide de Oliveira Gomes-Kelly

Psicanalista, Membro fundador do NEPE (núcleo de estudos em psicanálise e educação – Poços de Caldas, MG)

 

 


RESUMO

A Psicanálise de crianças tem uma longa história clínica que permite, atualmente, refletir sobre seus alcances e insucessos, bem como questionar o alcance da interferência precoce para o adoecimento psíquico no adulto. Para articular tal questão, este texto aborda a noção de estrutura não decidida na infância, partindo da premissa que a finalização das possibilidades de estrutura somente se fariam após a efetiva entrada na dimensão simbólica – ao final do Édipo. Não decidida a estrutura, nem por isso menos organizada, já que podem ser percebidas precocemente as marcas de uma trajetória que considera ou não a presença da Lei, referência necessária ao ordenamento simbólico. Como eixo de discussão, apresentam-se considerações acerca do atendimento às crianças da primeira infância, antes mesmo da aquisição da linguagem, discutindo-se o compromisso ético do psicanalista de crianças, das instituições que cuidam da infância (abrigos e creches) e dos pais.

Palavras-chave: Intervenção precoce, Estruturas não decididas, Psicanálise de crianças.


 

 

Minhas reflexões neste breve trabalho não são novas, nem pretendem sê-las. Tais reflexões partem da premissa que observa que a Psicanálise dirigida às crianças, como se pode identificar em muitos textos, é a mesma dirigida aos adultos, pois implica um sujeito – para além das questões etárias.

No entanto, a prática clínica traz algumas questões: e quando a fala ainda não se constituiu? Como dar lugar a este sujeito numa articulação em devir? Quando há questões legais em pauta – abrigamento e dispositivos relativos ao Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA, 1990) – qual a possibilidade de escuta? Qual ou quais os adultos devem ser considerados como referência à criança?

Maria Rita (Tita) chega aos 20 meses, retraída, distante, colada ao peito da mãe acolhedorai, saída do abrigo há quarenta dias – após permanência de quatro meses. Olhos grandes, negros, sugerindo segredos e sustos. Sua mãe biológica, às voltas com os problemas dos parceiros, do álcool, do desemprego. No desespero, esta mãe procurou o Conselho Tutelar, que, errada e descompromissadamente, deu uma das filhas à irmã da vizinha que a acompanhava (prometendo que isto seria temporário) e outra, ao abrigo. Ao todo, cinco filhos, nenhum com a mãe biológica.

Tita conserva-se distante, olhar no horizonte como única saída (saudável, aliás) para dar conta do abrigo e das questões parentais. Sua história, até então, fora marcada pelo desespero da mãe, expulsa da casa do sogro por causa do marido adicto, pelo abrigamento forçado – como todo abrigamento em nossos tempos, que punem a criança, que só deveria ser protegida. No abrigo, os episódios de terror noturno renderam a Tita o apelido de "buzininha" e nenhuma possibilidade de compreensão. Ao chegar à família acolhedora, Tita trouxe noites maldormidas para todos, alergia na forma de dermatite atópica e intolerância alimentar (ao leite, imaginem!). Aos 20 meses, uma longa jornada de rejeições, negligência e desespero.

Uma ressalva. Maria Rita, Tita, provoca nos adultos, principalmente as mulheres, anseio de proteção e sentimentos de aversão. Não oferece a mão, nem sorriso, muito menos pede acolhida. Olha, espera. A mãe acolhedora sente-se abandonada. A mãe biológica, idem. As técnicas do programa, pressionadas entre as necessidades da criança, os apelos das mães e as questões judiciárias. Neste momento de pressão, sou convocada a participar, na preparação do retorno de Tita à sua mãe biológica. Por outro lado, era preciso dar voz ao silêncio do olhar de Titã, que só falava duas palavras: "deidê" e "ai" para as coceiras e as dores.

Nas primeiras sessões, a mãe acolhedora está à disposição, todavia numa postura quase disponível. Não permite que a criança saia de seu colo ou de perto dela; atualmente, isto se acompanha de frases do tipo "estão vendo, eu não posso sair de perto dela...". A acolhedora mãe busca identificação profissional com as técnicas do programa e comigo, tentando fazer de todas nós parceiras em favor de Tita e contra sua mãe – chega a propor que se faça um curso de mães, para ensiná-las como se conduzir em momentos de crise; sendo ela a coordenadora, por ser pedagoga.

A presença da mãe acolhedora é dispensada dos atendimentos comigo e isto é sentido por ela como uma recusa a ela e não como estratégia importante para chegar à criança e iniciar o trabalho com a mãe biológica. A mãe biológica, por sua vez, sentindo-se rejeitada também, demandava da criança uma resposta de amor antes mesmo de sua doação – como prova incontestável de seu valor enquanto mãe.

Tanto a mãe biológica como a mãe acolhedora demoram em entender isto e uma e outra se confrontavam, através das técnicas do programa, para saber qual era a melhor e a qual Tita chamaria de mãe. O encontro entre as famílias, momento esperado pelas técnicas e por mim, foi bastante enriquecedor para todos e, a partir daí, Tita se faz presente com as primeiras palavras, aos 22 meses.

Em atendimentos conjuntos com a mãe biológica e a criança, ao lhe revelar que sua criança esperava antes pela doação do adulto e que só depois fazia a oferta, é que se deram os primeiros indícios de compreensão da criança a partir dela e não de suas questões de vida. Paralelamente ao meu trabalho, tanto a mãe acolhedora (e a família acolhedora) como a mãe biológica são atendidas continuamente pelas técnicas do programa.

Nas sessões individuais, montamos uma caixa, com bichos, bolinhas, coisas e um gibi cujo verso apresentava o anúncio do livro da família dos Incríveis, e que encanta Tita por causa do bebê no colo da mãe. Do gibi ao livro dos Incríveis, a um bebê sem braços e sem pernas (bonequinho de pano enrolado em cueiros) e à nomeação de tudo o que se colocava na caixa. Ela pega os objetos, olha, pergunta ou dá qualquer nome e eu digo o nome do objeto, ela repete o gesto e começamos novamente.

Em companhia da secretária do programa, que conduz Tita de maneira sensível e disponível, Tita entra na sala sozinha e se permite desenhar, pintar, comer biscoitos Maisena, inquirir-me sobre quem sou, sobre os nomes das coisas. Tita brinca de maneira organizada, ambivalente e ritualística: coloca, descoloca, abre, fecha – os potes, os palitinhos, os números/letras de borracha. Quer/não quer montar quebra-cabeças, come/não come os biscoitos.

Numa das sessões, montando quebra-cabeças de cachorros, começo a brincar de "procurar" – uma versão do cadê-achou, mais ou menos criada por mim, mas que me veio sob inspiração no momento – insight? Esta toada se estende por algumas sessões sempre que Tita silencia o acesso, olhando ao longe, quando se detém nos rituais.

Enfim, último apontamento: após organizarmos/desorganizarmos vários potinhos, começo a cantilena "Tita, uuuuuu?" e ela sussurra "Cadê...?", eu repito "Cadê...?" e ela sussurra "Sumiu!". Com estas palavras, se refere a ela mesma, a mim (mas acena que eu estou com ela, batendo a mão no peito) e à mãe. Neste momento, digo a ela que, ao entregá-la ao Conselho Tutelar, sua mãe, de fato, sumiu, mas que está voltando. E Tita concorda, balançando a cabeça afirmativamente.

Uma criança é o enlace entre o real de um corpo em maturação (neurofisiológica) e o lugar que ocupa no discurso dos que a cercam, circunscrevendo as possibilidades de relação e investimento social; este enlace, da ordem do sutil e do não-objetivável, embora fundamental, referindo-se ao inconsciente.

Quando os adultos que cercam a criança estão em situação de risco – alcoolismo, dificuldades relacionais, desemprego – o lugar da criança se desloca e expõe a impossibilidade de articulação de seu desejo em relação aos que carregam as marcas de seu pertencimento. A interferência de conselhos e mecanismos advindos da esfera judiciária, pelo contrário, desprotegem a criança do único e principal meio de defesa que a criança pode ter: sua história.

Neste cenário, a ação da psicanálise teria qual papel? Qual o valor de eficácia? É lugar de profilaxia? De prevenção? Ou ir por esta via seria confirmar a existência de famílias desestruturadas ou despreparadas, para as quais o melhor remédio é proteger (punir) as crianças?

A ética do atendimento às crianças impõe uma disponibilidade outra, inclusive física, de acolher os adultos, os serviços (médico, escola), considerando a teia intergeracional da qual ela faz parte. Assim, como refere Werner (2002, s.p.), "Uma história de vida só poderá cultivar laços se a verdade puder encontrar seu justo lugar. Se não puder encontrar vias simbólicas de realização, o desejo enlouquece e conduz corpo, afeto e linguagem a ligações perigosas."

De outro lado, o analista não passa impune aos apelos do atendimento às crianças:

A criança captura imediatamente o que há de mais singular no analista, porque ela convoca o seu fantasma. Não é por acaso que a produção de sentidos em que o imaginário do clínico rola como um barril - para encobrir o lugar em que a criança comparece no furo do analista, ou na codificação da patologia psiquiátrica-neurológica em que ela é contida - seja um dos meios com o qual se contorna o atendimento da criança. Não é sem motivo que a criança mobilize com tanto vigor a resistência à psicanálise e mesmo a resistência da psicanálise. No tratamento de crianças, portanto, o desejo do analista também não é anônimo. (Vorcaro, 2006, s.p.).

Tal mobilização, todavia, tanto pode resvalar para a pré-ocupação com ditames socialmente corretos, como para a construção da caminhada particular de cada criança. Não fossem as demandas e questões colocadas pelos adultos, ir a favor da criança seria mais fácil. Sustentar um percurso analítico que não se ocupa da travessia do fantasma e sim de sua mediação, implica em dar conta dos atravessamentos imaginários de cada adulto. Escutar crianças, e psicanálise, é fazer a militância pelo sujeito e bancar uma subjetivação em constituição:

Assim, a perspectiva que o lugar da criança assume, na formação dos analistas, vai além da clínica. Trata-se de analisar como o campo discursivo concebe e trata a subjetivação, e de, também, interrogar a teoria psicanalítica com o caso clínico, para sustentar o gesto freudiano da descoberta do inconsciente. Trata-se, ainda, de oferecer, aos que se interessam pelo discurso psicanalítico, o testemunho da clínica com crianças, expondo-o à refutação. Esta é uma proposta - e uma aposta - de uma clínica psicanalítica com crianças possível. (Vorcaro, 2006, s.p.).

A subjetivação, porém, faz emergir a discussão acerca da aposta viável e a estrutura possível. Se as estruturas da infância não estão decididas, ainda, nem por isso pode-se apostar sempre. Há movimentos precisos em torno das questões edípicas e da castração que impõem o respeito e a consideração radical aos limites como delimites. Se "isso não pode", frase designativa da castração, é porque outras coisas podem, superando-se os limites – mas sem jamais eliminá-los.

Escutar crianças como Tita faz-me pensar no ruído constante destes dispositivos sociais (especificamente o Conselho Tutelar) que operam como Outro absoluto que, embora legalizado, parecem não operar em favor da Lei. E isto se confirma através do encaminhamento do processo de Tita pelas técnicas (psicóloga e assistente social do Fórum) para a autorização de destituição, a despeito do investimento da mãe biológica a partir de nosso investimento – meu e das técnicas do programa – para favorecer o re-encontro entre mãe biológica e filha.

Se as leis se comportam como ilimitadas, através de seus representantes, não se garante a chance de superação, nem o trabalho d'Isso em formações substitutivas. Para que se respeite a Lei, saldo sofrido da dissolução do Édipo, o custo deve ser pago por todos os adultos com a moeda do mal estar cotidiano.

Neste sentido, a ética da análise com crianças se exerce através de um analista que se faz avalista, fiador do cumprimento da Lei que, por qualquer motivo, outros adultos não conseguiram sustentar. Lembro, finalmente, que a escuta às crianças deve considerar o risco constante de adaptá-las a um ideal social, para evitar o desconforto e o incômodo do ruído parental (ou dos adultos que a cercam). Porém, tolerar o mal-estar da vida considerando o desejo inconsciente e, apesar dele, viver, é o trabalho de um psicanalista.

Obrigada!

 

Referências Bibliográficas

COSTA, T. A criança e a ética psicanalítica. Revista Marraio – Editora Rio Ambiciosos. Formações clínicas do campo lacaniano, nº 11, Rio de Janeiro, 2006.

VORCARO, A. A clínica com crianças e a formação dos psicanalistas. Disponível na internet: http://www.estadosgerais.org/historia/108-a_clinica_com_criancas.shtml.

WERNER, Ana Beatriz. O que a Psicanálise pode dizer sobre a adoção de crianças pequenas? In: COLOQUIO DO LEPSI IP/FE-USP, 4, 2002, São Paulo. Proceedings online... Available from: <http://www.proceedings.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=MSC0000000032002000400002&lng=en&nrm=abn>. Acess on: 05 Nov. 2008.

 

 

i O Projeto Família Acolhedora visa acolher, provisoriamente, em residências de famílias acolhedoras, crianças e adolescentes afastados de sua família de origem, mediante medida protetiva. Os integrantes passam por cadastramento, seleção, capacitação, acompanhamento psicossocial das famílias de origem com vistas à reintegração familiar. O projeto não se enquadra no conceito de abrigo em entidade. "O projeto oferece cuidado individualizado em ambiente familiar, fortalecimento do vínculo e o contato da criança e adolescente com a família de origem. Preserva a história deles, com registros e fotografias, incluindo a família acolhedora. Fortalece os vínculos comunitários e, os prepara para o desligamento e retorno à família de origem".