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 ISBN 978-85-60944-12-5

An 7 Col. LEPSI IP/FE-USP 2009

 

8/11 - COLÓQUIO-COMUNICAÇÕES LIVRES

 

Juventude e paixão pelo real: um breve ensaio

 

 

Roselene Gurski

Psicóloga e Psicanalista; Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre; Mestre em Psicologia do Desenvolvimento (UFRGS); Doutora em Educação (UFRGS); Coordenadora da Clínica Maud Mannoni – atendimento, ensino e pesquisa; Consultora do PPV – Programa de Prevenção à Violência da Secretaria Estadual de Saúde do RS. Membro do Conselho Deliberativo da Fundação Piratini – RS. Rua Florêncio Ygartua, 131/conj. 702 – Fone: (51) 3395-3916 - Moinhos de Vento- 90430-010- Porto Alegre - RS. roselenegurski@terra.com.br

 

 


RESUMO

Discutimos, nesse ensaio, modos "violentos" de representação, utilizados por jovens de classe média e alta. Partimos do filme Cama de Gato e de episódios de violência noticiados na mídia, para analisar a partir do tema da experiência (Walter Benjamin), dos construtos da Psicanálise e do conceito de paixão pelo real (Slavoj Zizek): quais os vetores da brutalidade protagonizada por jovens que não padecem de privações sociais extremas? Nesse tensionamento, vimos que tais atos funcionam como uma forma do jovem se inscrever em um cenário familiar e social cada vez mais pobre em experiências.

Palavras-chave: juventude; representação de si; violência.


 

 

Os jovens, a juventude e as suas formas atuais de representar-se no cenário social constituem a matéria deste escrito. É preciso sublinhar que este trabalho nasceu da surpresa frente à banalidade com que temos recepcionado algumas manchetes e notícias da mídia que tratam de acontecimentos protagonizados por jovens de classe média e alta. Não raro, tais notícias aparecem borradas de sangue, levando-nos a pensar que constituem uma marca um pouco dramática das tentativas de inscrição desses sujeitos. Qual é o teor desses enunciados? O que revelam? O que escondem? O que significa a presença, cada vez mais freqüente, de narrativas da mídia e do cinema marcadas por atos insólitos e brutais protagonizados por meninos e meninas de classe média e alta, os, por vezes, denominados "bem-nascidos"?

Passamos a interrogar o que de suas experiências poderia estar retornando sob o manto de atos bizarros. Quais poderiam ser os vetores de episódios violentos protagonizados por adolescentes que não padecem de privações sociais extremas? Por que nas últimas décadas e de maneira progressiva temos assistindo a uma proliferação de notícias que veiculam a juventude como protagonista do cenário violento de nossas cidades?

Trago como ilustração dessas inquietações um acontecimento recente: no ano de 2007, na Barra da Tijuca, bairro típico da nova classe média alta do Rio de Janeiro, um grupo de jovens que se divertia pelas ruas, resolveu agredir uma trabalhadora que estava na parada do ônibus, a doméstica Sirley Dias de Carvalho Pinto; a justificativa foi de que pensavam tratar-se de uma prostituta (Agressão, 2007).

Nas produções cinematográficas, depois do clássico Laranja Mecânica (Kubrick, 1971) surgiram outras narrativas que discutiam os rumos de jovens de classe média cujas trajetórias eram pautadas por episódios de delinqüência.

Stokler (2002), diretor e professor de teatro, com Cama de Gato, levou para o cinema uma versão nacional do Laranja Mecânica. O resultado do trabalho foi o que Calligaris (2004), em uma de suas crônicas do Jornal Folha de S. Paulo, chamou de uma extraordinária imagem da adolescência contemporânea.

Esses são alguns dados de nosso tempo, afora eles, os jornais revelaram e revelam em notícias menores, expressões de comportamentos cada vez mais brutais e violentos. Pensamos que quando esses acontecimentos aparecem com freqüência nos noticiários diários, acabam transformando-se em fatos sociais, ou seja, ao serem várias vezes "escritos", revelam algo da sintomatologia contemporânea, aquilo que "não cessa de não se escrever".1

Como uma problematização do tempo atual, tais episódios nos levam a pensar em certa exaltação da destruição nos atos desses jovens, nos quais a crueldade e os maus-tratos com o outro parecem se tornar excessivos. O sociólogo Spagnol (2005, p. 276), ao analisar a delinqüência de jovens paulistas, diz que:

[...] o que mais impressiona é a crueldade com que os jovens tratam suas vítimas. Não é somente matar, atirar e esfaquear uma pessoa, mas torturá-la, cortar, furar, amassar, destruir seu corpo de maneira desumana, sem demonstrar nenhum sinal de arrependimento [...]. Parece haver prazer em matar, em destruir o outro de maneira bárbara e cruel.

No artigo, ele lembra que a raiva expressa nas entrevistas deve ser tomada como a revelação de "algo inquietante presente nas relações sociais", ou seja, pergunta-se sobre o quê da fisiologia dessas relações retorna sob o manto de atos bizarros e violentos praticados por alguns jovens da atualidade. A pesquisa que realizou com adolescentes paulistas mostrou que a pobreza por si não explica a violência, pois ele relata ter encontrado índices de crueldade e desprezo pelo outro semelhantes tanto entre os jovens da periferia, quanto entre os de classe média.

Tomando as produções culturais, vale dizer que o irlandês Stanley Kubrick, quando filmou Laranja Mecânica, lá na década de 70, antecipou um futuro próximo: ao levar para as telas a fúria juvenil de uma gangue de jovens de classe média que saía pelas ruas quebrando tudo e todos. Talvez o vanguardismo de Kubrick nos permita dizer que os artistas, os poetas e os escritores, de algum modo, se antecipam aos intelectuais e especialistas, ao trazerem em suas obras uma dimensão quase visionária.

Isso porque, depois dos anos 70, o fantasma da gangue delinqüente parece ter omado vulto de fato nas histórias cotidianas de nossas cidades. Passadas pouco mais de duas décadas do lançamento de Laranja Mecânica, vivemos no Brasil, no ano de 1997, uma situação que lembra alguns acontecimentos do filme. Refiro-me ao episódio ocorrido em Brasília, que acabou por vitimar em pleno 21 de abril o Índio Galdino. O pataxó Galdino Jesus dos Santos estava na cidade para as comemorações alusivas ao dia; ele dormia em frente a uma parada de ônibus quando cinco rapazes, todos oriundos de famílias de classe média e alta de Brasília2, passando por lá, tiveram a idéia de queimá-lo.

O inusitado do ato foi a justificativa que deram: "só queríamos dar um susto em um mendigo. Não sabíamos que era um índio" (Dignidade, 1997). Ora, o que será que estava em questão para esses jovens? Um mendigo é uma pessoa de valor humano menor? O que afinal outorga valor a uma vida? Por que se torna possível desumanizar a tal ponto o sujeito das margens? Acaso alguns sujeitos seriam mais matáveis3 ou extermináveis do que outros?

O acontecimento parece ter despertado a consciência de que a violência, sempre associada às classes menos privilegiadas, não se configura em uma prerrogativa de pobres e negros. Pela crueldade da situação, acabou catalisando preocupações que estavam dispersas, re-significando acontecimentos passados e outros que viriam depois.

Nesse cenário, se não se pode afirmar que a crueldade e o desprezo pelo outro sejam marcas inequívocas dos jovens atuais – pela ausência de estudos antropológicos e históricos –, ao menos, deve-se refletir sobre a atualidade de tal comportamento (Spagnol, 2005). Será que se trata da velha transgressão juvenil em nova roupagem? O que a brutalidade e marginalidade desses atos de violência retratam acerca das referências simbólicas da juventude atual?

 

Narrativas Culturais do Tempo de Agora

Para ampliar essas reflexões, evoco o filme Cama de Gato. A narrativa, assinada pelo grupo TRAUMA4, é uma produção nacional que tratou especificamente das questões de jovens brasileiros. O diretor Alexandre Stokler fez uma crítica aos valores e comportamentos da juventude de classe média brasileira, denunciando no enredo, o vazio de referências do qual padecem. Ele reuniu alguns episódios juvenis que vivenciou junto a alunos de ensino médio e os narrou construindo um roteiro para o cinema. O interessante do filme é que as cenas de ficção e realidade embaralham-se, trazendo a nítida sensação de que o enredo poderia ser vivido por qualquer jovem de classe média da atualidade.

Narrada como perdida, "metida" em uma espécie de vácuo de valores e referências, a juventude retratada no filme ilustra a dificuldade dos jovens da atualidade em encarregar-se dos efeitos de seus atos. As experiências mostradas seguem um ritmo alucinado, no qual parece não sobrar muito espaço para a reflexão, tampouco para o silêncio. Em nome do prazer e da diversão - fala que se repete ao longo do filme, - o trio de calouros universitários comete atos cujos efeitos são realmente fatais.

Um aspecto pontuado pelo diretor é uma pergunta sobre o lugar dos adultos. Onde estão as famílias desses jovens? De que modo os pais e responsáveis exercem suas funções? Como se posicionam? Que transmissão os adultos – famílias e poder publico - de nosso tempo fazem na direção dos que estão chegando ao mundo? Tal pontuação fica mais clara ao final, quando desesperados pelo que fizeram, temerosos dos efeitos de seus atos, recorrem aos pais para saber o que fazer com as três mortes que acabaram provocando.

Nesse momento, Stokler sinaliza uma faceta importante para essa discussão: como os jovens de hoje podem situar-se em meio a adultos que parecem anestesiados? Adultos que não conseguem transmitir uma dimensão da experiência capaz de servir de referencial? Ora, se os mais velhos abandonam a dimensão da lei como regulador dos atos no plano social, eles, talvez, sem perceber, convidem os jovens a habitar um cenário em que o prazer parece realmente ilimitado.

A narrativa explora, especialmente, o que deveria ter sido o primeiro dia de aula na universidade dos recém chegados à faculdade. Porém, ao invés de passar pelo rito de ingresso, típico deste momento, o que acaba acontecendo é que o rito de passagem sai às avessas. O trio não vai para a aula e, vive este dia com os elementos que, de algum modo, estão licenciados a eles: drogas, festas, bebidas, sexo e violência.

Como será que os jovens acabaram nesse lugar? Que condições de nosso tempo social se apresentam ou se ausentam para produzir sujeitos cujas atitudes fazem pensar nessa espécie de vácuo de experiência e de reflexão? O que os leva a pouparem-se dos atos ou simplesmente pouparem-se de ter de responder por eles? Quais condições produzem essa "pouca" densidade subjetiva? Há realmente um empobrecimento da experiência na vida dos jovens de classe média da atualidade?

Costuma-se dizer que a perda do sentido da existência está na origem de muitos sintomas contemporâneos, já que ele não é da ordem da natureza, afinal, não nascemos portando um código genético para o sentido da vida. Pelo contrário, o sentido é construído a partir do simbólico, desde os códigos que a cultura na qual se está inserido indica como lugar de produção do sujeito e, ainda que o sujeito participe com um "grão de invenção", a função simbólica dessa produção deriva, exatamente, do fato de os sentidos serem coletivos, inscritos na cultura (Kehl, 2002).

Na cena final do filme, os jovens vão para o lixão de São Paulo. Lá, ao buscarem nos pais uma forma de resolver o que fizeram, os três escutam que eles estão liberados e que devem somente dar um jeito de se livrar dos três cadáveres. O mais interessante, considerando o lugar dos pais como representantes da adultez, é que quando sugerem que os filhos se livrem dos corpos, eles aludem ao que a filósofa alemã Arendt (2001) chama de ausência de responsabilidade dos adultos na educação contemporânea. A filósofa pergunta-se sobre os aspectos do mundo moderno e de sua crise que estão implicados na crise educacional. Com toda a contundência de seu ideário e sem meias palavras, ela sugere que a crise da educação e da autoridade deve-se ao fato dos adultos não mais assumirem a responsabilidade pelo mundo ao qual trouxeram os mais novos.

Importa nesse assinalamento perceber que a responsabilidade reclamada por Arendt refere-se a uma postura de cuidado e proteção com aqueles que estão chegando, isso, não no sentido de poupar esforços dos jovens, mas, sim, na direção de transmitir a dimensão da experiência na vivência, compreendendo a necessária implicação com a dimensão coletiva no mundo.

A referida responsabilidade dos adultos com a transmissão na educação, está também conectada ao necessário encontro com a dívida simbólica5, ou seja, à necessidade de os adultos apresentarem aos mais jovens a dimensão da dívida que se arma com o mundo ao se ganhar uma vida. Poupar o jovem do encontro com a dimensão da falta e do limite pode ser um dos modos mais intensos e cruéis de abandono e desamparo.

A psicanalista Kehl (2007) resume bem tudo isso quando analisa a atitude dos rapazes que espancaram a doméstica Sirlei Dias de Carvalho Pinto na Barra da Tijuca:

A palavra de ordem que organiza nossa sociedade dita de consumo é você pode. Você merece. Não há limites para você, cliente especial... no limits diz um anuncio de tênis. Ou de cigarro, tanto faz. E os meninos obedecem. No fundo, são rapazes muito obedientes. Se a ordem é passar dos limites pode contar com eles".

Parece que as condutas juvenis acabam funcionando como uma espécie de espelhos da cultura, seus atos revelam o que, muitas vezes, os adultos ofertam sem perceber. Além disso, sabemos que as condições da Modernidade foram gradativamente diminuindo a importância dos ritos de passagem e com isso prejudicando a capacidade do sujeito enfrentar as diferentes transições da vida – dentre elas, a passagem adolescente.

Ora, se toda via sintomática intensa na adolescência, se estabelece, exatamente, porque o sujeito está começando a demarcar seu lugar, sem ainda contar com uma consistência que lhe garanta tranqüilidade psíquica e legitimidade social, não é de admirar que os jovens, hoje, subtraídos das práticas rituais e de dispositivos sociais que legitimam seus atos, utilizem comportamentos delinqüentes como um modo de inscrever-se no espaço público e social.

Nesse sentido, perguntamos: que tipo de experiência é possível aos jovens em um laço que incita o achatamento da dimensão da experiência humana? Será que a necessidade de produzir atos ou ações cada vez mais intensos do ponto de vista da violência, pode estar associada ao vazio deixado pela ausência de experiências e de suas transmissões?

 

Juventude e Erosão da Experiência

Benjamin (1933), imbuído de uma consistente crítica às condições da Modernidade e da sociedade industrial, identificou uma relação entre a diminuição da narratividade interpessoal e o esvaziamento da dimensão da experiência, explicitando aí uma preocupação que, vigora até hoje, com a crescente incapacidade de contar histórias.

A pobreza de narratividade denunciada por Benjamin (1936) seria responsável pela diminuição da experiência e, portanto, da possibilidade de uma transmissão geracional passível de enlaçar os diferentes tempos, passado, presente e futuro. Ao não contarmos mais histórias, deixamos de transmitir experiências próprias e pessoais e acabamos legando aos jovens um encontro mais árido com a matéria da vida. Para Benjamin, a nova barbárie começava pela perda da capacidade de narrar, de emprestar múltiplos sentidos e significações às vivências e acontecimentos.

Como já referido, no filme Cama de Gato, o diretor escolhe como cenário final dos três rapazes o lixão de São Paulo. São Paulo a capital brasileira do dinheiro, da velocidade e do sucesso. Lugar dos vencedores, paradigma maior da Modernidade. Ainda que emoldurada por luxo e riquezas, sabemos que não há abundância que apague a necessidade de um espaço para guardar os restos. Assim, mesmo sendo o espaço do que não vale mais, o lixão de uma cidade marca um lugar, o lugar do dejeto; pois foi para lá que os três jovens, após discutirem sobre o que fazer com os cadáveres, optaram por levá-los.

Tomamos o espaço do lixão como uma metáfora. Nesse sentido, perguntamos o que significa para os jovens do filme, discutir questões caras às suas vidas em meio aos escombros e detritos? Será que o para além das margens, a beira da cidade, acaba sendo um lugar de inscrição juvenil na atualidade? O que fazem com a pouca densidade e o vazio que se produz a partir das condições do laço social atual?

O filme Laranja Mecânica, ao seu final, mostra que Alex, o protagonista, após passar pelos experimentos comportamentais, transformou-se em um sujeito cínico, mimetizado com os representantes das grandes instituições e discursos sociais presentes na narrativa: a igreja, a prisão, a ciência e a política. Nessa cena, Kubrick nos lega uma inquietação que pode ser atualizada em nossos dias: será que Alex, o líder da gangue que aterrorizou a Londres futurista do filme, é um efeito de suas paixões (pulsões) ou simplesmente o efeito da sociedade em que vive?

 

Cultura Atual e Paixão pelo Real

O sociólogo esloveno Zizek (2003), no livro Bem-vindo ao Deserto do Real, desenvolve o conceito de paixão pelo real, ou seja, a paixão pela coisa em si preconizada pela ciência do real a partir do século XX. No livro, ele lança algumas pistas importantes a fim de pensar as formas contemporâneas de subjetivação. Segundo Zizek (2003, p. 20), em nosso laço social, vivemos uma experiência toda mediada pelo real. Ele ilustra tal experiência através, por exemplo, da configuração dos sites pornográficos que pretendem instalar uma relação de literalidade entre sujeito e objeto desejado. Essa imagem aproxima-se bem do que ele considera a atual tendência em propiciar o encontro com o objeto, atitude típica de nosso tempo.

Ao constatarmos o esvaziamento expresso na objetalização do outro, presente nos atos dos garotos do filme Cama de Gato, e em alguns acontecimentos narrados pelos jornais, questionamos: o que se produz quando o sujeito se depara com uma realidade que lhe é apresentada a partir do real no sentido da coisa em si? Não seriam essas condições, exatamente, propulsoras do hiato de simbolização e de esvaziamento da experiência denunciados por Benjamin?

Podemos dizer que a sociedade de consumo não poupa esforços para disseminar a noção de que o mal-estar humano pode ser resolvido através do consumo de bens. Nesse âmbito, a ciência é pródiga na oferta de itens que apontam para uma noção de felicidade na qual a falta está ausente. Entendemos que é nesse espaço que surge a paixão pelo real; na medida em que nos acostumamos com o puro real, abre-se a via para atos que reproduzem a fórmula em dimensão coletiva e individual.

Trabalhamos então com a hipótese de que a violência presente nos atos juvenis funcionaria como um modo de resgatar uma afirmação do EU que o empobrecimento da experiência na vida contemporânea dificulta. Nesse sentido perguntamos, será que não poderíamos tomar a paixão pelo real presente na violência fácil dos episódios juvenis como um dos desfechos de uma subjetividade que se constitui longe dos sonhos e dos ideais, uma subjetividade cada vez mais confundida com o corpo? Não serão os episódios citados tristes modos dos jovens se representarem em um cenário social tão pobre de experiências?

Ora, se a "paixão pela coisa em si", identificada por Zizek, como a tônica do século XX, o século da ciência, levou-nos a grandes avanços, precisamos, talvez reconhecer que a "paixão pelo real" que daí decorre, pode nos levar a uma tal indiferença com a dimensão da alteridade, cujo resultado talvez possa realmente ser um novo tipo de relação com o semelhante.

De toda forma, ao invés de emergirmos no caos da barbárie, talvez possamos nos perguntar sobre como possibilitar a construção de experiências que sejam potentes para o sujeito e seus laços. Será que não é possível constituir nenhuma espécie de novo nas relações atuais?

Nesse sentido, nossa tarefa talvez seja inventar outras estéticas de vida para que talvez delas derivem novos modos de experiências éticas para o sujeito e seus laços. Isso talvez seja parecido com o que se propõe a partir de um ensaio: ensaiar sempre abre a possibilidade de uma nova experiência com o presente. Ensaiar no pensamento, na escrita e na vida é não renunciar a uma constante reflexão, é não tomar a notícia como um dado, é ler nas letras das linhas e entrelinhas.

Nesse escrito, buscamos ensaiar um outro modo de ver as problematizações acerca da violência juvenil de nosso tempo. Um modo de lidar com as questões dos jovens que suporte, simultaneamente, articular o saber e a falta. Um modo mais criativo de lidar com a tensão própria que caracteriza a juventude, mesmo em meio à aridez e a decorrente paixão pelo real presente nas condições sociais atuais.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002.

AGRESSÃO À DOMÉSTICA CHOCA O PAÍS. Zero Hora, Porto Alegre, 26 jun. 2007, p.44.

ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 2001.

BENJAMIN, Walter (1933). Experiência e pobreza. In: _________. Magia, técnica, arte e política. Obras escolhidas I. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 114-119.

_____ . (1936). O Narrador. In: _____. Magia, técnica, arte e política. Obras escolhidas I. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 197-221.

CALLIGARIS, Contardo. Cama de Gato. Folha de São Paulo, São Paulo, 18 set. 2004, Caderno Mais.

CHEMAMA, Roland. Dicionário de Psicanálise – Larousse. Porto Alegre: Artes Médicas, 1995.

DIGNIDADE INCENDIADA. Revista IstoÉ. 30 abr. 1997. Disponível em http://www.terra.com.br/istoe/politica/143933.htm. Acesso em 22 de setembro de 2005.

FREUD, Sigmund (1913). Totem e Tabu. Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Ed. Imago, vol. XIII, 1980.

KEHL, Maria Rita. Sobre Ética e Psicanálise. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

______. Clientes Especiais. Folha de São Paulo, 01 jul. 2007. Caderno Mais.

KUBRICK, Stanley. Laranja Mecânica, Reino Unido, 1971, 138 min.

STOKLER, Alexandre. Cama de Gato, Brasil, 2002, 92 min.

ZIZEK, Slavoj. Bem-vindo ao deserto do real! São Paulo: Boitempo, 2003.

 

 

1 Para a Psicanálise lacaniana, o real é o que não pode ser simbolizado totalmente na palavra ou na escrita, aquilo que não cessa de não se escrever. Tomamos a sintomatologia ligada à violência como o que fica fora da simbolização, um real que precisa ser decifrado.
2 Dentre os cinco rapazes estava o filho de um juiz federal e o enteado de um ex-ministro do Superior Tribunal Eleitoral.
3 Para outros detalhes, ver Agamben (2002).
4 TRAUMA é a sigla para Tentativa de realizar algo minimamente audacioso, uma espécie de resposta irônica de um grupo de brasileiros ao DOGMA 95, criado por cineastas dinamarqueses, cujo objetivo era criar um cinema puro, sem truques e efeitos especiais.
5 A dívida simbólica com o Outro se estabelece a partir da operação simbólica do Nome-do-Pai cuja função é permitir que o sujeito tenha acesso ao falo enquanto significante da falta. Ou seja, o estabelecimento da dívida simbólica faz com que o sujeito coloque-se em posição de satisfazer às conseqüências da instalação da falta. Em Totem e Tabu (1913), Freud demonstrou que na neurose o lugar simbólico é ocupado pelo Pai morto. Pois será o recalcamento do assassinato do Pai que vai engendrar, no sujeito, a série de proibições, sintomas e inibições – segundo Freud, transformar a dívida em culpa é a forma neurótica de relacionar-se com a dívida simbólica (Chemama, 1995).