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ISBN 978-85-60944-12-5 versão

An 7 Col. LEPSI IP/FE-USP 2009

 

8/11 - COLÓQUIO-COMUNICAÇÕES LIVRES

 

Especificidade da psicanálise na infância – a intersecção entre o tempo lógico e o cronológico

 

 

Sara Jane Carmo FiguerêdoI; Letícia Silveira VasconcelosII; Bárbara Fernandes e SousaIII

IPsicóloga, psicanalista, psicomotricista, neonatologista e especialista em Diagnostico e Tratamento dos Transtornos do Desenvolvimento pelo Centro Lydia Coriat de Porto Alegre e membro da equipe da Bem Viver Clínica e Centro de Estudos Interdisciplinar. sarajcf@yahoo.com.br
IIPsicóloga, psicomotricista e especialista em Diagnostico e Tratamento dos Transtornos do Desenvolvimento pelo Centro Lydia Coriat de Porto Alegre e membro da equipe da Bem Viver Clínica e Centro de Estudos Interdisciplinar. leticiavasconcelos@bemviverclin.com
IIIFonoaudióloga, Especialista em motricidade orofacial e Diagnostico e Tratamento dos Transtornos do Desenvolvimento pelo Centro Lydia Coriat de Porto Alegre e membro da equipe da Bem Viver Clínica e Centro de Estudos Interdisciplinar. babifono@ig.com.br

 

 


RESUMO

Uma das particularidades da psicanálise com crianças é o fato de que estas se encontram em plena estruturação subjetiva. Esta condição da infância delineia uma temporalidade própria, que localiza a criança na conjunção entre o passado, o futuro e o presente, tempo do seu desenvolvimento. Compreendemos que o desenvolvimento se constitui a partir de aspectos estruturais: o orgânico, o cognitivo e o psíquico; e instrumentais: a linguagem, a aprendizagem, os hábitos de vida diária, os jogos, as relações sociais e a psicomotricidade. De fato, o desenvolvimento se apresenta como uma das primeiras provas da qual esta criança-filho deve dar conta, para se mostrar capaz da função de imortalizar seus pais. Daí que dizemos que os aspectos instrumentais têm efeito estrutural. Por isso, e pela sua responsabilidade ética para com este sujeito em constituição, o psicanalista de criança precisa ter um saber transdisciplinar sobre o desenvolvimento, podendo identificar dificuldades em todos os seus aspectos; de modo a fazer as intervenções e encaminhamentos necessários para garantir as condições para o mesmo. Com isso, não se pretende anular as especialidades, o que se pretende é reafirmar a impossibilidade de se trabalhar com crianças fora do amparo de uma equipe interdisciplinar. Após uma discussão teórica será apresentado um caso clínico que ilustra as questões levantadas.

Palavras-chave: Psicanálise da infância, transdisciplina, desenvolvimento infantil.


 

 

Muito se discute sobre as especificidades da clínica psicanalítica com criança: as questões transferenciais, o brincar, a inclusão da família, as interfaces com a educação, além do fato de que estas se encontram em plena estruturação, condição a que se propõe pensar este trabalho.

Estar em estruturação confere à infância uma temporalidade própria. Desde seus recursos simbólicos ainda escassos, ainda em constituição, a criança é convocada a exercer sua função de filho. Esta convocação localiza a criança na conjunção entre passado, presente e futuro. O passado que, re-apresentado pelo fantasma parental, desde um antes a inscreve com marcas simbólicas, tecendo para ela um papel na novela familiar; o futuro, como responsável por realizar os ideais dos pais, transcendendo-os e imortalizando-os; e o presente, tempo cronológico de sua existência, agora desde o qual deve responder às demandas que lhes são apresentadas, ao mesmo tempo em que está às voltas com seu desenvolvimento.

O desenvolvimento é aqui tomado desde a concepção de que ele se constitui por aspectos estruturais: o orgânico e o subjetivo; e instrumentais: a linguagem, a aprendizagem, os hábitos de vida diária, os jogos, as relações sociais e a psicomotricidade. (CORIAT e JERUSALINSKY, 1996) Tais aspectos, ainda que indissociáveis entre si determinam saberes e condutas próprias no lidar com a infância.

No seu livro A Infância em Cena, Esteban Levin (2002 p.24) afirma que "Não há desenvolvimento possível sem uma estrutura que o origine e sustente". Não há o que se discordar dessa afirmação. O que queremos salientar nesta comunicação é que ela é igualmente verdadeira no seu sentido contrário, ou seja, não há uma estrutura sem um corpo em desenvolvimento na qual ela se veja encarnada. Como afirma Bergès (1986 p.53):

"...o corpo é dado, na ordem hipotética de uma representação inata, na mesma forma que é dada a cadeia da linguagem no meio ambiente do bebê, falado antes de seu nascimento, receptáculo do discurso dos pais a seu respeito, evocador de semelhanças, da linguagem familiar, das origens, da sexuação, em particular do primeiro nome e patronímico."

Assim, ainda que exista uma pré-história do sujeito, que antecede seu nascimento e o antecipa como membro da espécie e de uma família, é só pelo corpo que sua existência material se torna possível. É próprio da experiência da criança ter um corpo em desenvolvimento.

Se a noção de desenvolvimento fica remetida ao significante criança, a noção de estrutura remete ao sujeito. No entanto, ao invés de entendê-los como conceitos distintos, fazemos eco ao tema deste Colóquio, Formação de profissionais e a criança-sujeito, em que os dois termos são propostos em relação – tal como os eixos temporais da diacronia (tempo cronológico) e a sincronia (tempo lógico). A sincronia fala da estrutura psíquica em um momento específico e confere imediatamente à criança uma condição espaço-temporal, enquanto que a diacronia fala do desenvolvimento em sua progressão.

Leda Fischer Bernardino, no seu livro As Psicoses Não-decididas da Infância: Um Estudo Psicanalítico (2004, p. 53), fazendo referência a Elsa Coriat (1999) afirma que "não há como negligenciar um tempo cronológico, com "as sucessivas transformações que se vão operando no devir"; e ainda, "é na repetição das experiências que "vai se construindo a estrutura do aparelho psíquico"".

De fato, o desenvolvimento se apresenta como uma das primeiras provas da qual esta criança-filho deve dar conta, para se mostrar capaz de se tornar o filho idealizado. Daí que dizemos que os aspectos instrumentais têm efeito estrutural, posto que suas aquisições, a tempo e a contento, se colocam para os pais como primeiras garantias de que seus investimentos se depositam na pessoa certa – garantias que se traduzem em mais investimentos, que, por sua vez, são condição para que a estruturação subjetiva se dê de forma satisfatória. A esta operação chamamos antecipação funcional, que ilustra a condição radical de dependência em que se encontra a criança em relação a um outro que possa dar sustentação a priori às suas aquisições posteriores. Quanto a isso, em Jerusalinsky J. (2002 p.90) lê-se: "não há aquisição instrumental que possa advir, não há desenvolvimento que possa produzir-se sem esse enlaçamento com o circuito de desejo e demanda do Outro que produz antecipações imaginárias endereçadas ao bebê e postas em ato nos cuidados que lhes são dirigidos."

Quando algo falha no desenvolvimento, a capacidade do outro de apostar nas conquistas da criança fica posta em cheque. Um filho que não se mostra mais capaz de atender aos ideais parentais e que passa a ser identificado por sua dificuldade, vai ter sua filiação referida ao sintoma, à síndrome, à surdez, à cegueira, à paralisia... O trabalho com uma criança com questões no desenvolvimento incide, necessariamente, sobre a maneira como ela vai ser aceita e incluída na sua família, sobre a possibilidade desta família de elaborar o luto pela criança perfeita que não veio e de refazer suas expectativas.

Por isso, mas principalmente por sua responsabilidade ética para com este sujeito em constituição, o psicanalista de criança precisa ter um saber transdisciplinar sobre o desenvolvimento. O psicanalista de criança e, ousamos dizer, todos os profissionais que trabalham com crianças têm a obrigação de saber identificar dificuldades no desenvolvimento em todos os seus aspectos. Como pontua Alfredo Jerusalinsky, (1) um dos passos a serem observados no atendimento analítico é justamente a "delimitação do real", o que implica circunscrever aquilo do sintoma que não tem função de representação, que se situa no real do corpo, submetido à anatomia, à fisiologia, à genética. Crianças afetadas por síndromes e transtornos orgânicos são em geral afetadas por uma série de sintomas. Chegam ao consultório e escola com uma lista de restrições. No entanto, em meio a tais restrições, nem todas são definidas de fato por sua patologia. Diante de uma criança com uma lesão orgânica há que se definir qual seu real comprometimento ao desenvolvimento. Se, por um lado, não se podem negligenciar as demandas orgânicas; por outro, é preciso preservar a criança de tratamentos excessivos. Dessa forma, podem-se fazer as intervenções e encaminhamentos necessários para garantir as condições para o desenvolvimento e a estruturação dessa criança-sujeito.

Não é sem riscos que se faz o encaminhamento para um atendimento instrumental. Afinal, ao dar corpo ao sintoma, é possível que os pais se fascinem por sua materialidade e pelo aceno de uma cura tangível. É comum que o olhar do outro fique siderado pela brutalidade de um sintoma orgânico, situando-se justamente naquilo que a criança traz de incapacidade, colocando-a frente a uma demanda constantemente não atendida. Trata-se, desse modo, de direcionar o olhar para o possível. Como afirma Levin (2005 p.13).

"Neste trabalho pretendemos incluir-nos no outro espelho, afastando-nos daquilo que supostamente essas crianças não podem fazer, criar, dizer, representar, simbolizar, aplicar e tomando como ponto de partida aquilo que elas podem sim construir, pensar, imaginar, fazer, dizer e realizar, ainda que pareça estranho, desmedido, intraduzível, caótico ou impossível".

Por outro lado, ao encaminhar, o analista precisa apostar no trabalho do outro profissional, de certa forma, estendendo a ele a transferência que foi estabelecida com a criança e os pais.

É essencial esclarecer que um saber e olhar atentos ao desenvolvimento e sua urgência não devem ser confundidos com um desejo de cura pela normalização. Trata-se, como dissemos, de um compromisso ético com esse sujeito de não negligenciar aquilo que lhe é próprio enquanto criança: construir pontos de engate entre o seu advir e aquilo que se espera dele enquanto filho, sejam estes pontos ancorados no estrutural ou no instrumental.

 

Os encantos de uma pequena sereia

No inicio de 1994, Ariel (2) chega ao consultório por volta de três anos de idade, uma amiga da família havia me indicado por já ter atendido o filho. A mãe me fala pelo telefone o quanto fui bem recomendada e que espera que eu possa amar sua filha como amei Rafael. Perguntei-me o que esta frase poderia estar a demandar de mim enquanto terapeuta, trato de pensar na verdade da colocação de Elsa Coriat (1990 p.30). Desde que ética interviremos nós, se os pais nos consultam?

"Utilizamos a palavra ética porque aqui não se trata do bem nem do mal, do correto ou do incorreto, e menos ainda de uma técnica estabelecida, de um programa a aplicar para tal caso ou para tal outro. Trata-se de um deixar-se levar na busca do desejo dos pais e funcionar como pivô de sua emergência no discurso, restituindo das profundezas a que fora arremessado pelo impacto das más notícias, ao presente e ao futuro que se alojam no corpo de seu filho".

É preciso respeitar o saber dos pais, é esse saber que nos demanda algo quando estes pais se dão conta de que algo falta, de que algo falha. É importante não esquecer que essa criança traz consigo uma demanda destes pais que antecipam para ela um nome, um corpo, uma história com a qual vai se deparar e ter que dar conta enquanto se desenvolve, enquanto se estrutura.

Os pais escolhem trazer Ariel a primeira consulta e entendo porque a demanda dos pais era de "amor". Ariel é realmente encantadora, esperta e sorridente, mas seu corpo fala de que algo não vai bem. Depois de brincarmos muito, de casinha, de esconde-esconde, Ariel me fala que esta fazendo natação. Pergunta se eu gosto de nadar. Digo que podemos brincar de fazer de conta que nadamos porque lá na clinica não tem piscina.

Muito pequena com seus três anos pergunto se ela sabe por que ela veio me conhecer, ao que ela responde, muito corretamente, que vinha brincar comigo.

"A atividade lúdica, o que nós, os sérios adultos chamamos, com complacência, de"brincadeira", é um longo trabalho de elaboração por parte da criança. Trabalho que consiste em outorgar um sentido a estes significantes, sentido que não é outro que da situação que a criança desenvolve no cenário lúdico (...) é sempre desde o brincar que se produz uma criança." (CORIAT, 1990, PG.26)

Partindo de sua resposta reconheço uma demanda de atendimento também em Ariel: entender o que lhe acontece. Aprender a respeitar e lidar com a demanda da família sem esquecer deste sujeitinho que também espera por falar do seu desejo é também uma especificidade do atendimento da clínica psicanalítica com crianças.

Os pais me falam que Ariel havia adquirido a marcha em tempo certo, aos 11 meses, corria, pulava, fazia tudo o que todas as crianças faziam. Porém, há uns seis meses, começara a perder o equilíbrio e andar cambaleando. Inicialmente achavam que era uma brincadeira, mas apesar das reclamações o transtorno continuava a progredir. Preocupados, a levaram a um ortopedista que não diagnosticou nada e encaminhou para o fisioterapeuta que fez uma série de exercícios. Ariel se queixava de dor, não melhorando do quadro. Foi quando a amiga sugeriu um psicanalista, já que poderia ser algo emocional. Enquanto psicanalista e também psicomotricista, foi possível perceber o quão consistente era essa demanda dos pais. O corpo de Ariel trazia marcas que falavam de um transtorno no seu desenvolvimento, falavam da sua estruturação, e do quanto isso afetava o seu instrumental. Acima de tudo, o sintoma de Ariel se dava a ver ao olhar do Outro. Por tudo isso, precisava ser tomada por uma clínica que não fosse uma terapêutica do sintoma, mas sim que pudesse olhar para seu corpo como o corpo de um sujeito desejante.

Brincávamos muito de esconde-esconde e em uma destas brincadeiras Ariel, não conseguindo sustentar-se em pé caiu, chorou muito e disse que ela estava quebrada. Contou que a perna da boneca dela tinha quebrado e que a mamãe levou no médico de bonecas e ele consertou, perguntou se eu podia consertar a perna dela.

Tínhamos seis meses de trabalho e Ariel seguia seu atendimento, mas o sintoma motivo da demanda dos pais não apresentava uma melhora. Entendi a queda de Ariel e sua verbalização como uma demanda, agora dela, de que algo fosse feito em relação a sua marcha. Embora Ariel falasse sobre a escola, os colegas que a empurravam na escorregadeira, a professora que às vezes a colocava no colo, que papai disse que ela estava tortinha, Ariel já não dava conta deste sintoma que tomava uma dimensão maior com o passar do tempo. Ainda que estivesse podendo elaborar algumas questões, havia uma impossibilidade real com a qual não estava conseguindo lidar. Aqui nos deparamos com o limite do orgânico, com um sintoma que escapa à simbolização.

Embora em entrevistas anteriores com os pais eu houvesse perguntado sobre o parto, pós parto, doenças que Ariel já tivera, nunca os encaminhara a um neurologista, desta vez resolvi faze-lo.

Como foi citado, um encaminhamento é sempre delicado. Os pais estão à espera de uma resposta que os acalme e que traga a cura, a solução para aquele sintoma. Geralmente buscam em vários especialistas, neste caso, depois do início da análise eles pararam esta busca, delegando a mim este lugar de saber e de curador.

Era fácil "amar" Ariel, como os pais haviam me demandado, ela era encantadora. No entanto, também era clara sua demanda de que se acreditasse na sua dificuldade motora e que se desvelasse algo que estava escondido em seu corpo. Esse amor de que os pais falam, remete somente ao encontro com o encantamento de Ariel, que permanece como filha idealizada, onde não é possível uma falha. Esse não olhar, definia também um não cuidar do sintoma orgânico.

Foi feito o encaminhamento e o processo de procurar por uma resposta foi retomado pelos pais com sofrimento. Os pais falam que Ariel é uma filha linda, mas que tem uma imperfeição. Podendo finalmente se deparar com uma falta: "Ela é como um tapete persa doutora, lindo, maravilhoso, mas não é perfeito porque os artesões dizem que só Deus pode fazer as coisas perfeitas." Os pais começam a questionar sua criação.

Depois de alguns exames foi diagnosticada uma pequena lesão cerebral no centro responsável pela marcha, resultante de uma provável anóxia de parto. Como a lesão foi muito pequena, os sintomas só vieram a aparecer tardiamente, não tendo sido indicado um trabalho de estimulação precoce. (3)

Diante do diagnóstico, a questão trazida pelos pais agora era do que podia ser feito e o quanto da locomoção seria perdido. Era importante entender o que era da ordem do real. Este também era um pedido constante de Ariel, enquanto brincava com seu corpo de esconde-esconde sempre por saber o que ele escondia por traz de seu desequilíbrio motor e o quanto também seria amada portando uma imperfeição, mesmo sendo linda e encantadora.

Os pais também começavam uma busca por saber por que não podiam criar algo perfeito como Deus. Por que falharam em ver antes o que se passava com sua filha, já que estava ali desde o início? O quanto o médico havia errado no parto? A mãe seria culpada por ter insistido em um parto natural, mesmo não tendo a dilatação suficiente?

Muitas questões se colocaram para tentar responder a essa ferida narcísica que os pais teriam que dar conta. Ora lidando com suas culpas, ora com a mudança de status pela qual Ariel passava: deixava de ser perfeita para trazer uma falha. Como suportar que algo falhe depois de estar tudo tão bem? Como suportar esse ideal que falha tardiamente e de forma que se mostre tão marcado no corpo?

Ariel continuava a brincar, agora com a piscina de bonecas (uma bacia havia virado piscina para as bonecas do playmobil). Perguntava-me sempre se eu gostava de nadar. Em um momento tive que responder que na verdade não sabia nadar bem, só nadava "cachorrinho". Ela ria muito e dizia que eu também não saberia cantar e que também não teria um namorado. Foi quando Ariel, diante de minha impossibilidade, começou a me contar sua história, a historia da pequena sereia. Neste tempo fazia 05 anos e escolhera como tema da festa "A Pequena Sereia".

A neurologista havia deixado claro que a "doença" não mais progrediria, mas também não melhoraria, que o melhor, então, era manter os exercícios físicos, a natação foi o escolhido. Era difícil para a mãe, principalmente, abrir mão de sua bailarina, "veja, ela jamais pode ser um bailarina". O pai brinca e responde: "Você também não! Quem sabe ela vai ser nadadora como o avô?"

A busca por re-significar este corpo está nascendo para os pais, enquanto para Ariel é algo que só continua. Depois que se diz grande para brincar de esconde-esconde, descobre a piscina de bonecas. Conta-me que seu pai a leva para natação às terças e quintas, e que todos a chamam de peixinho. Fala que nada melhor que sua amiga Soraia, cujo nome se parece com o meu, e que também não nada muito bem.

Ariel havia sido pela neurologista também para a fisioterapia, em função de estar usando cadeira de rodas, devido às constantes quedas. A cadeira de rodas não era necessária e a fisioterapeuta deveria o eixo corporal. Fazíamos um trabalho conjunto e combinamos algumas brincadeiras possíveis de Ariel fazer. Combinamos que ela poderia usar o espaço da aula de natação. As brincadeiras preferidas de Ariel na fisioterapia eram a bola e "as aventuras". Nas aventuras ela seguia trilhas, pulava obstáculos, nadava em um rio imaginário, e sempre achava um tesouro no fundo do mar.

Depois de algum tempo ela pode abrir mão da cadeira de rodas, me contando que andava bem, só um pouco engraçado, o que fazia com que os meninos rissem dela. Ariel percebeu que na cadeira de rodas todos a ajudavam e que quando ela andava, eles riam. Ainda assim, ela se dá conta de que preferia o riso à pena.

O Hospital Sarah tinha sido inaugurado há pouco tempo na cidade, a mãe me informou que marcaria uma consulta para Ariel. Perguntou-me o que eu achava e eu remeti a pergunta a Ariel, que perguntou se o hospital era meu, pois tinha o meu nome. Expliquei que não. Ela então me perguntou o que faria lá. Disse que faria uma consulta com o médico para ver sua perna. Ela falou que já não sentia dor e que a perna estava boa, não precisava mais de ir consertar. Com dificuldade a mãe suportou esperar por um momento em que Ariel desejasse rever as questões do seu corpo. Neste momento ela aprendia a lidar com sua diferença e a ser "amada" desta forma.

No início da primavera, próximo ao seu aniversario de seis anos, o pai lhe presenteou com uma coroa de princesa. Ela pediu que o pai entrasse na sessão com ela. Escolheram brincar com o playmobil de princesas, o pai era o rei, e ela era a princesa. Fizeram histórias de bruxas e de uma porção que fazia tudo que era ruim se transformar em uma coisa boa.

No final da sessão me perguntou por que em todas as histórias de contos de fadas as mães morriam e só ficavam as madrastas, e porque no final elas não ficavam boas. Pensamos em inventar uma história de princesas em que houvesse mãe, mas isso ficou esquecido até o dia que ela me disse que sabia porque as mães morriam: era porque elas eram muito fraquinhas, não suportavam muito sofrimento.

Falamos sobre o que é sofrimento, ela conta sua história, do que perdeu e do que ganhou, e de que já pode ir à outra Sarah (se referindo ao hospital), para ver o que a mãe quer.

Depois da ida ao hospital Sarah os médicos deram a família a possibilidade de uma cirurgia que estenderia o tendão possibilitando a Ariel um andar mais equilibrado. Ariel volta a falar da história da pequena sereia e de como a sereia encanta, de como ela tem uma voz linda e de como ela mexe com os cabelos na água, dos amigos e do pai, o rei dos mares, fala do príncipe, da bruxa, "sabe toda história tem bruxa e não tem mãe", a bruxa roubou a voz da pequena sereia e ela não podia dizer ao príncipe quem ela era, ela também desobedeceu ao pai e foi para superfície.

Repetia a história por muitas vezes, até que, em uma sessão, chegou feliz com a mãe e pediu que ela entrasse. Assim que entraram, ela me entregou a "verdadeira" história da pequena sereia. A mãe havia encontrado em seu trabalho na Internet o que elas entenderam como sendo a verdadeira história, na qual não é a pequena sereia que cria pernas, mas o príncipe que vira "sereio" e o pai o deixa viver no seu reino dos mares para sempre.

Os médicos do Sarah optaram por adiar a cirurgia por mais um tempo, visto que os pais ainda não sabiam se esta mudança era o melhor para Ariel. Mesmo preocupados com o tempo, sabendo que quanto mais cedo melhor a adaptação, o pedido de Ariel para ser "amada", aceita em sua diferença, fazia hoje uma diferença para estes pais que puderam mesmo diante da perda do filho idealizado re-significar o lugar deste filho. Entre bruxas, príncipes reis e fadas, existe uma princesa que não precisa das pernas para ser encantadora, precisa ser escutada na sua voz.

 

(1) aula proferida no dia 20 de novembro de 2007 no Curso de Especialização em Psicomotricidade UNIFACS, Salvador Bahia.

(2) Nome fictício.

(3) Ariel nasceu em 1990, no interior do estado da Bahia. Embora a família tivesse bastantes recursos, a indicação para um neurologista e conseqüentemente para uma estimulação precoce não foram feitas na época em virtude de não se ter um sintoma aparente.

 

Bibliografia

BÈRGES, J. O corpo e o olhar do outro. Escritos da Criança, n. 02, Publicação do Centro Lydia Coriat, Porto Alegre, 1988.

BERNARDINO, Leda M. F. As Psicoses Não-decididas da Infância: Um Estudo Psicanalítico. São Paulo, SP: Casa do Psicólogo, 2004.

CORIAT, E. O objeto do especialista. Escritos da Criança, n. 03, Publicação do Centro Lydia Coriat, Porto Alegre, 1990.

CORIAT, Lydia: JERUSALINSKY, Alfredo N. Aspectos estruturais e instrumentais do desenvolvimento. Escritos da Criança, no. 04. Porto Alegre, RS: Centro Lydia Coriat, 1996.

JERUSALINSKY, Julieta. Enquanto o futuro não vem, A psicanálise na clinica interdisciplinar com bebês. Salvador, BA: Ágalma, 2002.

LEVIN, E. A especificidade da prática psicomotora. Escritos da Criança, n. 04, Publicação do Centro Lydia Coriat, Porto Alegre, 1996.

LEVIN, Esteban. A Infância em Cena – Constituição do sujeito e desenvolvimento psicomotor. Petrópolis, RJ: Vozes, 2002.

LEVIN, Esteban. A clínica e a educação com a criança do outro espelho. Petrópolis, RJ: Vozes, 2005.