7O discurso científico e o discurso desejante: as marcas do discurso na estruturação do sujeitoA educação e a verdade: entre o desejo, o saber e o cuidado de si author indexsubject indexsearch form
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 ISBN 978-85-60944-12-5

An 7 Col. LEPSI IP/FE-USP 2009

 

8/11 - COLÓQUIO-COMUNICAÇÕES LIVRES

 

Delegando decisões: o jornal e sua relação com o leitor

 

 

Suelen Gregatti da Igreja

GEPPEP/FEUSP Contato: sue_igreja@yahoo.com.br

 

 


RESUMO

No presente trabalho proponho um exercício de leitura de textos argumentativos visando a descrever os mecanismos lingüístico-discursivos mobilizados para sustentar o ponto de vista adotado por um jornal de grande circulação. Para tal, tomei como objeto de análise os textos publicados no jornal O Estado de São Paulo, de 03 de maio a 21 de junho de 2007, relativos à greve na Universidade de São Paulo (USP), selecionando aqueles nos quais a presença da argumentação era mais declarada: os editoriais e os textos opinativos. A pergunta de pesquisa foi: quais dispositivos lingüístico-discursivos são prioritariamente utilizados por um jornal em textos opinativos para persuadir o leitor da pertinência de seu ponto de vista? Para respondê-la, os dados foram analisados com base no estudo dos predicados (CHIERCHIA, 2003) empregados com relação a lados antagônicos representados quanto à greve na USP. A partir da análise de tais textos, foi possível depreender como os predicados são usados na construção da argumentação presente na linguagem (DUCROT, 1972).

Palavras chave: Escrita, predicados e argumentação.


 

 

INTRODUÇÃO

O presente trabalho é um exercício de leitura de textos argumentativos visando a descrever os mecanismos lingüístico-discursivos mobilizados para sustentar o ponto de vista adotado por um jornal de grande circulação. A seguinte pergunta de pesquisa norteou a pesquisa: quais dispositivos lingüístico-discursivos são prioritariamente utilizados por um jornal em textos opinativos para persuadir o leitor da pertinência de seu ponto de vista?

Para respondê-la tomei como objeto de estudo os textos publicados no jornal O Estado de São Paulo, de 03 de maio a 21 de junho de 2007, relativos à greve na Universidade de São Paulo (USP), selecionando aqueles nos quais a presença da argumentação era mais declarada: os editoriais e os textos opinativos. Os textos analisados referem-se a um período durante o qual um grupo de alunos da USP ocupou o espaço da reitoria como forma de protesto contra um conjunto de medidas tomadas pelo governo estadual (representado pelo governador José Serra), as quais foram entendidas pelos estudantes como ameaças à autonomia das universidades públicas do estado de São Paulo.

O primeiro critério para o recorte aqui realizado foi a escolha de um tema polêmico, envolvendo duas partes em confronto. Isso porque o antagonismo convoca o leitor a tomar partido, criando a necessidade de formar um ponto de vista a respeito do assunto em questão. O segundo critério para a seleção do corpus diz respeito ao veículo onde as notícias foram publicadas: o jornal O Estado de São Paulo. Trata-se de um periódico de alta circulação no estado, e que, como tal, pode ser considerado um agente potencialmente responsável pela formação de opinião de um grande público leitor.

Esta pesquisa, de certo modo, é fruto de uma recomendação de Barzotto (1998) que propõe o exercício de uma postura crítica sobre o material de leitura disponível no mercado, para que se possa, na medida do possível, escapar aos limites do modelo no qual deveriam se encaixar e produzir mais, a partir dos recursos lingüísticos disponíveis, ou seja, ir além da simples reprodução do que já circula na mídia. (Op. cit.: 15).

O autor destaca um tipo de leitura que se baseie não apenas numa possibilidade de reprodução posterior do conteúdo que lido, mas, sobretudo, numa posição crítica com relação a ele. Assim, interesso-me pelo estudo dos mecanismos linguageiros presentes nos textos publicados no jornal, que apresentem indícios (GINZBURG, 1988) do modo pelo qual os textos são escritos, de maneira a levar o leitor a adotar o ponto de vista nele veiculado.

Uma vez que tenho como foco as construções argumentativas em textos jornalísticos, passo à apresentação de considerações a respeito da maneira como a argumentação ocorre na linguagem. Para tal fim, parto das considerações de Ducrot (1981) que realiza um estudo a partir da idéia de que os atos de enunciação têm uma função argumentativa cujo objetivo é "levar o destinatário a certa conclusão, ou dela desviá-lo" (Op. cit.: 178) conforme a intenção do enunciador. O autor desenvolve, então, um raciocínio segundo o qual existem marcas que podem ser identificadas no enunciado argumentativo, havendo, então, elementos que podem ser identificados como constituídos por seu conteúdo informativo, que servem para dar uma orientação argumentativa ao enunciado e para "conduzir o destinatário em tal ou qual direção" (Op. cit.: 178).

Em trabalho anterior, Ducrot (1972) tratou da relação entre o emprego de palavras e o projeto argumentativo mais amplo. Descreveu as relações existentes entre a possibilidade de construir enunciados passíveis de serem compreendidos e a argumentação. Para ele:

as significações atribuídas aos enunciados devem ser tais que se possa construir um componente retórico capaz de prever, levando em conta essas significações e as condições de emprego, o sentido efetivo do enunciado nos diferentes contextos em que seja empregado. (Op.cit.: 123)

Neste sentido, Ducrot propõe que os argumentos devem ser articulados no enunciado de modo a tentar prever os prováveis resultados que venha a ter diante de seu público, levando em consideração as condições de produção e recepção do discurso. A partir dessa citação, é possível concluir com relação à questão existente na mídia de buscar uma organização textual de maneira a realizar uma argumentação que tem como função primordial a busca pela condução do leitor em direção a "provocar ou aumentar a adesão dos espíritos às teses que lhes apresentam ao assentimento" (PERELMAN, 2005: 4), quando se trata de argumentar.

Ducrot (1981) afirma ainda que argumentar por meio da linguagem não se constitui como uma imposição de condições de verdade (Op.cit.: 230). Não lhe interessa discutir a veracidade do enunciado, mas sim a sua articulação argumentativa, buscando explicá-la a partir de observações realizadas pelo enunciador (Op.cit.: 230). Neste sentido, a orientação argumentativa dos enunciados é indicada por certos mecanismos constantes da língua. Mais especificamente, Ducrot (1981) realizou um estudo semântico dos enunciados, como forma de "demonstrar o estatuto da argumentação na língua" (Op. cit.: 229), e mostrando que é possível identificar elementos textuais que indiciem a argumentação na linguagem (DUCROT, 1973: 225).

No caso dos enunciados a serem aqui analisados – textos de jornais –, os elementos que indicam a orientação argumentativa são as marcas lingüísticas responsáveis pelo funcionamento das estratégias argumentativas. Tais expressões direcionam o argumento para determinados efeitos de sentido de acordo com o lugar em que são enunciadas. Pretendo, desta maneira, dar continuidade a esta proposta de Ducrot (1981), no sentido de empreender uma análise semântica a partir de predicados utilizados como modo de argumentar.

Os predicados foram aqui tomados como uma categoria de análise, por meio da qual pretendo verificar indícios da maneira como a argumentação é articulada nos textos jornalísticos explicitamente de cunho opinativo. Parto de um conceito mobilizado pelo historiador italiano Carlos Ginzburg (1989) que ficou conhecido como "paradigma indiciário", nome utilizado para referir-se a uma tradição de pesquisa que defende a possibilidade de reconstruir o aspecto de algo que nunca se viu por meio de pequenos indícios.

Para definir o que seja um predicado, inicio pelas considerações de Lyons (1980), em que o autor realiza uma distinção entre a noção clássica de predicado, e aquilo que chamará de predicador. Trata-se, no primeiro caso, de um operador com um ou mais argumentos, e que está relacionado ao verbo. Já no segundo caso,

(...) o predicador é um elemento que se combina com uma só EN, ou que coloca em relação a uma EN algo que não é necessariamente uma EN ; o predicador é, de alguma maneira, o pivô do nó da frase. (Op. cit.: 70) (tradução nossa)1

Lyons (Op.cit.) dá, portanto, um destaque maior quanto à relevância do que chama como predicador, e que chamarei aqui de predicado, pois a distinção nominal proposta pelo autor é no sentido de não haver confusão com o sentido clássico de predicado. O predicador é, portanto, entendido a partir da relação que estabelece na EN, ou seja, na expressão nominal na qual se instala.

Levo ainda em consideração o estudo de Ilari e Geraldi (1990), em que os autores, ao distinguir a noção clássica de predicado, e a noção por eles adotada, apontam para o fato de que

os predicados são entidades indefinidas do ponto de vista da verdade, toda oração acabada apresenta duas dimensões: o valor de verdade (o fato de ela ser verdadeira, ou falsa, nas circunstâncias) e as condições de verdade (as exigências que os fatos precisam satisfazer para que a oração seja declarada verdadeira). (Op.cit.: 21)

Este trecho da obra de Ilari e Geraldi permite a compreensão de outra questão que interessa particularmente a este trabalho, qual seja, a de que o predicado relacionado a uma expressão nominal não representa uma verdade a respeito dela. Ao contrário, a maneira como ele é construído, dentro da lógica argumentativa do conjunto do texto, é que permite ao leitor avaliar se ele é ou não verossímil. E está aí apresentada a relevância da linguagem no que se refere à arte do convencimento.

Mais pontualmente, considero o conceito de predicado não verbal proposto por Chierchia (2003), de que "o predicado atribuído ao sujeito pode ser um adjetivo, um substantivo comum, ou uma preposição" (Op.cit.: 311). Desta maneira, buscarei elementos tais quais os destacados pelo autor, no sentido de empreender a análise sobre os predicados utilizados quanto à qualificação dos estudantes e do governo, no embate estabelecido no período de greve na USP.

 

PREDICADOS SUSPEITOS

Dos textos selecionados para compor o corpus deste trabalho, incluem-se aqueles publicados no caderno "Notas e Informações". Dele, foi selecionando um texto publicado no dia 16 de maio de 2007, intitulado "A invasão da Reitoria da USP", que ocupava a parte superior da página do jornal. A reportagem segue abaixo.

 

 

Devido à extensão deste texto, realizei um recorte analítico, de maneira a me ater mais pontualmente ao primeiro parágrafo para chegar a uma conclusão geral quanto ao todo. O texto inicia-se com a apresentação de um fato recém ocorrido: "Por determinação do governador José Serra, a Procuradoria Geral do Estado entrará com uma ação de reintegração de posse para desalojar os estudantes" (linhas 1 e 2), seguido de uma contextualização a respeito da ocupação: "os estudantes que, desde o dia 3, ocupam as instalações da Reitoria da Universidade de São Paulo (USP), na Cidade Universitária, caso eles não saiam ainda hoje." (linhas 2 e 3).

Ainda no mesmo parágrafo, o texto passa a realizar uma espécie de histórico a respeito de alguns acontecimentos ocorridos até então, no que se refere à ocupação da USP: "Como já se tornou rotina em incidentes desse tipo, a direção da USP tentou negociar a desocupação com os invasores. Mas, como as negociações não prosperaram, pois os alunos insistiram em fazer reivindicações absurdas, Serra se dispõe a romper o impasse, recorrendo à Justiça para acabar com uma inadmissível afronta ao princípio da autoridade por um grupo de estudantes irresponsáveis." (linhas 4 a 9).

Neste primeiro parágrafo, observa-se uma quebra no discurso, uma vez que, se num primeiro momento houve apenas a exposição de fatos, num segundo momento percebe-se o emprego de predicados que marcam o posicionamento ideológico do escritor diante da ocupação. Ele qualifica as posturas e representação: 1) da universidade ("a direção da USP tentou negociar" – linhas 5 e 6); 2) do governo ("Serra se dispõe a romper o impasse, recorrendo à Justiça" – linhas 7 e 8); e 3) dos estudantes que ocupavam a reitoria ("inadmissível afronta ao princípio da autoridade por um grupo de estudantes irresponsáveis" – linhas 8 e 9).

A partir da observação deste primeiro parágrafo do texto, percebe-se que ficam caracterizados, por meio do uso de predicados, os lados envolvidos na disputa retratada entre governo e universidade versus estudantes ocupantes da reitoria, conforme pode ser verificado no esquema que se segue.

 

 

Por meio da leitura destes três grupos "a", "b" e "c", destaco algumas expressões que acredito serem relevantes para a compreensão de como o campo semântico selecionado forma a imagem sobre os dois lados da disputa representados. Quando o escritor seleciona as expressões: "inédita", "tentou negociar", "se dispõe a romper o impasse", para se referir ao governo e à reitoria, apresenta uma argumentação que indicia que ambos são representantes de uma postura engajada, que busca resolver este problema com os estudantes. Em contrapartida, ao qualificar os ocupantes da reitoria, faz uso de palavras como: "rotina", "desse tipo", "não prosperam", "insistiram", e "reivindicações absurdas", usa argumentos que indiciam que os estudantes têm atitudes corriqueiras e que são apresentadas negativamente.

Neste sentido, verifica-se que o texto é articulado de maneira a dar a ver o ponto de vista adotado pelo enunciador. E a argumentação utilizada é feita por meio da seleção de predicados que permitam a criação das imagens positiva e negativa quanto ao governo/reitoria e aos alunos. Para se ter uma idéia da maneira como os predicados são empregados ao longo do texto, no que se segue apresento tabelas contendo informações a respeito dos nomes e seus respectivos predicados, localizados quanto às linhas e parágrafos.

 

 

Os predicados empregados quanto ao governo criam uma imagem de que este está numa posição na qual faz a tentativa de resolver o "impasse" (linha 7) com os alunos. Esses predicados pertencem a um campo lexical positivo, que indica que o governo se propõe a cumprir com sua obrigação: resolver os problemas gerados pelos alunos.

Já na Tabela 2 há uma mudança quando se trata do emprego de predicados que qualifiquem os alunos e suas ações. O que ocorre é a seleção de um campo lexical que aponta para questões negativas no que se refere aos estudantes, que são tratados como "invasores" (linha 6), "irresponsáveis" (linha 9) e "vândalos" (linha 52).

 

 

Com esta oposição entre governo que se "dispõe a romper o impasse" (linha 7) e estudantes que praticam "atos de violência e vandalismo" (linha 48), o enunciador apresenta uma divisão entre um lado que procura resolver o problema e o outro lado que cria os problemas. Assim, o jornalista responsável pelo texto cria a imagem de uma espécie de "guerra", na qual o governo está sendo afrontado pelos estudantes que querem destruí-lo.

Além disso, cabe ressaltar que houve emprego de um número consideravelmente maior de predicados de cunho negativo com relação aos estudantes (12) em relação aos predicados positivos com relação ao governo (3). Tal diferença marca o destaque à desqualificação dos estudantes e auxilia no processo argumentativo.

A partir da análise da notícia "A invasão da reitoria da USP" é possível perceber que existe a transmissão de um único ponto de vista, o qual é argumentado por meio dos predicados, tais como os elencados acima. Isso faz com que o jornal crie uma imagem de plenitude, como se o ponto de vista que transmite fosse o único possível.

Para realizar uma análise mais precisa a respeito da maneira como o jornal se articula, de forma a argumentar por meio da linguagem, passo à análise de outro texto publicado no jornal O Estado de São Paulo, "Uma outra USP é possível", do caderno Espaço Aberto, e assinada por Luiz Weis. Interessa-me, mais pontualmente, depreender qual é a imagem de universidade criada pelo jornal.

A notícia começa pela apresentação que se segue.

"Nem tudo foi ilegalidade, de um lado, e complacência, de outro, nos 50 dias de invasão da Reitoria da Universidade de São Paulo, desocupada na última sexta-feira." (linhas 1 a 6). Em seguida, Weis passa à apresentação das pessoas tomadas como exemplo para a argumentação do texto: "Que o digam os Da Silva – Jameson, Larissa e Marcelo. Sem serem aparentados, têm em comum, muito além do mesmo sobrenome de uma infinidade de brasileiros, uma condição inaceitavelmente rara." (linhas 6 a 13). E assim o autor expõe o problema de que a notícia tratará: "São os únicos, entre os 60 primeiros do curso de Relações Internacionais da USP, que fizeram o ciclo médio inteiro em escola pública." (linhas 14 a 18).

A partir de uma breve abordagem a respeito do início da notícia, por meio da observação de dados relativos aos dois primeiros parágrafos, é possível depreender que a organização textual adotada por Weis insere primeiramente o leitor na questão da ocupação da USP, e em seguida apresenta o caso de três "Da Silva" que serão tomados como exemplo para apresentar a pouca entrada de alunos vindos de escolas públicas, na USP. Ainda é possível perceber uma separação inicial feita pelo enunciador, entre os alunos que realizaram a ocupação da Reitoria da USP, e que estão relacionados à "ilegalidade" e à "complacência"; e os alunos "Da Silva", que são descritos como tendo uma "condição inaceitavelmente rara", ou seja, são referidos como alunos batalhadores.

O tema referente aos alunos de escolas públicas é desenvolvido até o parágrafo oitavo, em que há uma retomada a respeito da ocupação da reitoria da USP, conforme pode ser verificado pelo excerto abaixo:

"apesar dos 50 dias que abalaram o mundo uspiano, apesar de professores capazes de dizer que os protestos contra a tomada da Reitoria foram 'manifestações de extrema-direita, que não tivemos nem na ditadura' e apesar da ativa minoria de alunos prontos a aplaudir tamanha enormidade – apesar da treva, em resumo- uma outra USP é possível." (linhas 108 a 121).

Neste momento, o texto passa por uma mudança quando ao assunto abordado, pois da questão da inclusão dos alunos oriundos de escolas públicas na USP, o autor passa a uma argumentação em que coloca quatro seqüências de "apesares" relativas à ocupação da reitoria da USP, os quais são opostos à afirmação que forma o título da notícia: "uma outra USP é possível". Aqui, é possível verificar, mais uma vez, a divisão feita entre o que é relativo aos alunos que ocuparam a Reitoria da USP, descrito por meio dos "apesares", e os alunos advindos de escolas públicas, que representam o lado de que "uma outra USP é possível".

Após a exposição dos aspectos negativos da universidade em questão por parte do autor, pode haver uma expectativa do leitor em que espere a demonstração de quais as soluções que seriam propostas pela notícia. Contudo, Weis faz uma retomada aos "Da Silva", com relatos de cada um a respeito do que fizeram para a divulgação dos "benefícios" oferecidos pela USP para receber alunos de baixa renda, através, entre outros, do "Incrusp – Sistema de Pontuação Acrescida, em burocratês", segundo o autor. Por fim, Weis apresenta argumentos conclusivos quanto à maneira como ele encara a USP, que transcrevo abaixo:

"'Tendo em vista a deterioração do ensino público, a queda na qualificação dos professores e o despreparo dos alunos para enfrentarem a concorrência nos vestibulares, para a grande maioria dos estudantes de escolas públicas ingressar em uma universidade como a USP é, ainda, um sonho inatingível.
Senti-me feliz por mostrar-lhes que também são capazes disso, apesar de todas as dificuldades. Por fim, esta experiência me acrescentou uma maior preocupação com o futuro das novas gerações e mostrou-me que todos nós devemos compartilhar a responsabilidade de construir um País melhor, mais justo e igualitário.'" (linhas 187 a 207).

No trecho final, representando parte da fala de Marcelo Marque da Silva, um dos alunos utilizado como exemplo no texto, percebe-se uma contradição inicial: ele diz que "Meus amigos do ensino médio optaram, ou foram compelidos a estudar em universidades particulares" (linhas 179 a 182), ou seja, ele coloca a importância de estudar numa universidade "como a USP", e que poderia ser qualquer universidade considerada boa, portanto, não necessariamente pública.

Em contrapartida, é dada a ver aqui, como em outros momentos do texto, uma imagem de que a escola pública encontra-se num estado de "deterioração". Caberia, então, se perguntar como seria possível que a escola pública estivesse no caos apresentado, se a USP, que é uma instituição pública, é uma universidade de excelência.

Para tentar entender esta contradição, é preciso entender que o que o autor chama como "escola pública", está ligado ao ensino fundamental e médio, e que a USP não é por ele considerada como pública, pois não se encaixa nas categorias apresentadas por ele, no que se refere ao ensino público.

Além disso, é preciso destacar que, se este texto tem como título "Uma outra USP é possível", a expectativa é de que haja algum tipo de indicação a respeito do que é possível fazer para criar esta nova USP. Neste ponto, é possível chegar a duas considerações.

A primeira é de que Weis parte do pressuposto da necessidade de criar "uma outra USP", uma vez que a USP que existe na realidade não corresponde a um ideal de universidade. Isso é possível de ser confirmado quando a USP é qualificada como em estado de "deterioração", graças aos alunos grevistas, sobretudo.

A segunda consideração é que não existe nenhuma passagem da notícia que indique explicitamente uma possibilidade para a construção desta "outra USP". Contudo, essa possibilidade pode ser interpretada como sendo relacionada a alunos como os "Da Silva" que, ao lutarem para conseguir um espaço na USP, adotaram uma posição de trabalho e de inclusão, através da divulgação do Inclusp. Assim, trata-se daqueles que, segundo é exposto pelo jornal, tornariam possível a existência de uma outra USP.

A partir da análise desta notícia, é possível depreender que o autor, mesmo que de maneira indireta, ratifica a posição do jornal, qual seja, contrária à greve na USP. Proponho isso porque, ao excluir a USP como sendo pública, e ao expor que o ensino público é ruim, e ao dividir os alunos entre os que realizam a greve, descritos negativamente, e os alunos que lutaram para entrar na USP, e que são descritos positivamente, o que existe é a veiculação de um posicionamento contrário à maneira como a USP vinha sido relacionada aos grevistas, e um posicionamento favorável a uma USP desvinculada à greve e às condições do ensino público brasileiro.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

No presente trabalho, parti das proposições de Ducrot (1981), segundo as quais ao enunciar já se tem uma argumentação pressuposta. Com base neste preceito, interessou-me investigar de que maneira havia uma articulação lingüístico-discursiva em textos argumentativos, mais especificamente no que se refere aos textos de opinião e editoriais do jornal O Estado de São Paulo, relativos a um tema polêmico: a greve na USP.

A análise foi realizada a partir do estudo do emprego de predicados qualificando os lados envolvidos na greve: o governo e a reitoria; e os estudantes que ocuparam a reitoria. Assim sendo, verifiquei a recorrência de expressões relativas a um mesmo campo semântico quanto a cada grupo representado, indiciando a presença de uma argumentação implícita, por meio de uma articulação da linguagem. Não havia uma defesa explícita quanto a um posicionamento adotado no jornal a respeito da greve, por meio de uma organização textual que elencasse argumentos favoráveis ou contrários a ela.

O que observei foi o emprego de predicados, de maneira a argumentar pela linguagem. É o caso, por exemplo, do uso do predicado "invasores", relativo aos alunos que ocuparam a Reitoria da USP. Quando no jornal há o uso deste predicado, parte-se de uma imagem pejorativa supostamente aceita. Não há, desta maneira, uma argumentação que se baseie no levantamento de razões pelas quais os alunos deveriam ser considerados invasores ou não.

Assim sendo, o emprego de predicado com um sentido previamente estabelecido, faz com que seu sentido seja tido como um lugar comum, uma vez que foi utilizado continuamente pelo jornal, como pôde ser percebido pelo levantamento de tais predicados, amplamente repetido ao longo dos textos aqui analisados. E, se tais predicados são tomados pelo leitor como sendo de comum acordo, passam a ser tidos como verdades, sem que haja contestação ou discussão sobre sua pertinência.

É possível concluir, portanto, que no exercício de leitura de textos argumentativo, é preciso que se leve em consideração o fato de que há argumentações em que o ponto de vista adotado pelo enunciador não é declarado, como foi o caso da notícia "Uma outra USP é possível", na qual, aparentemente, tratava-se da questão da inclusão dos alunos vindos de escolas públicas, na USP, e, como pano de fundo, havia outras duas questões presentes: 1) a oposição entre os alunos que realizaram a greve, e os que não a realizaram, valorizando-se os alunos do segundo caso e; 2) a oposição entre o ensino público fundamenta e médio, como estando em situação caótica, e a USP como universidade de excelência, sem se levar em consideração o fato de ela também ser uma instituição pública.

Neste sentido, a partir do momento em que se entende que existem argumentos explícitos, realizados com base em uma tese declarada, e argumentos implícitos, e que são depreendidos após uma análise das articulação linguageira realizada, é compreensível a importância de exercícios de leitura. Isto porque, só é possível refutar ou aceitar aquilo que se percebe, ou seja, só é possível realizar uma leitura crítica, se se tem noção dos argumentos presentes em um enunciado.

Desta maneira, se as publicações midiáticas portam opiniões prêt-à-porter, que apontariam para o favorecimento da desresponsabilização do leitor, o presente estudo permite apontar para uma possibilidade que caminha no sentido contrário, qual seja, o da realização de leituras críticas, segundo as quais o leitor venha a adotar um posicionamento próprio perante o que lê.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CHIERCHIA, GENNARO. Semântica. Editora da Unicamp, 2003.

BARZOTTO, Valdir Heitor. Leitura de Revistas Periódicas: forma, texto e discurso. Tese de doutoramento. Campinas: IEL/Unicamp, 1998.

DUCROT, Oswald. O dizer e o dito. São Paulo: Editora Cultrix Ltda., 1972.

____. Les échelles argumentatives. In: La preuve et le dire. Paris : Mame, 1973.

____. Provar e dizer. São Paulo. Global Editora, 1981.

ILARI, Rodolfo; GERALDI, João Wanderley. Semântica. São Paulo. Editora Ática, 1990.

LYONS, John. Sémantique linguistique. Paris. Librairie Larrouse, 1980.

PERELMAN, Chaïm & OLBRECHTS-TYTECA, Lucie, Tratado da argumentação : a nova retórica. São Paulo. Martins Fontes, 2005.

 

 

NOTAS DE FIM

1 "le prédicateur est un élément qui se combine avec un seul SN, ou qui met en rapport un SN et quelque chose qui n'est pas nécessairement un SN; le prédicateur est en quelque sorte le pivot du noyau de phrase."