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ISBN 978-85-60944-12-5 versão

An 7 Col. LEPSI IP/FE-USP 2009

 

8/11 - COLÓQUIO-COMUNICAÇÕES LIVRES

 

A educação e a verdade: entre o desejo, o saber e o cuidado de si

 

 

Tânia M. B. Aguiar

Doutoranda em Educação (Psicologia e Educação- LEPSI-IP/FE-USP) tania.aguiar@usp.br

 

 


RESUMO

Neste texto pretendemos relatar, resumidamente, os estudos de uma pesquisa em fase de realização no Programa de Pós – Graduação da FE – USP, na qual objetivamos a reflexão acerca da noção de verdade na obra de Michel Foucault e Jacques Lacan e no campo da educação. Considerando as distinções e as aproximações da psicanálise e da filosofia à questão da verdade, buscamos nesses autores um sujeito que não seja dado a priori e desse modo, uma noção de verdade que não tem a ver com o verdadeiro ou o falso da educação, mas com o que significa a produção de verdades justificadas nos fundamentos racionais estabelecidos pela demanda do campo da educação.

Palavras – chave: verdade, educação, Michel Foucault, Jacques Lacan.


 

 

Por certo, a partir da reflexão dos textos desses autores, não propomos um estudo sobre a analítica da verdade, no âmbito da Filosofia, e tampouco a busca por um enigma (verdade) da educação a ser decifrado ou descoberto, com o objetivo de estabelecer (mais) uma 'verdade' para esse campo. Mas, de outro modo, refletir sobre as implicações de uma educação tomada, muitas vezes, como o campo no qual a deliberação racional faz da verdade a força motriz.

Este trabalho não tem como objetivo promover uma conciliação conceitual entre a psicanálise – especialmente em seu registro lacaniano -, com a filosofia foucaultiana. Mas, identificar e explorar a partilha de um solo comum para ambos, qual seja: a crítica à filosofia do sujeito, o sujeito racional e universal. Portanto, sob a hipótese da existência deste solo comum entre estes autores refletir sobre as relações estabelecidas entre sujeito e verdade.

A psicanálise, desde os primeiros estudos freudianos, coloca em questão a posição absoluta do sujeito e, com Lacan, cria-se uma aliança entre a psicanálise e a filosofia. Como afirma Foucault em 'A hermenêutica do sujeito' :

"Lacan, foi o único depois de Freud a querer recentralizar a questão da psicanálise precisamente nesta questão das relações entre sujeito e verdade (...) e fez ressurgir no interior mesmo da psicanálise, a mais velha tradição, a mais velha interrogação, a mais velha inquietude desta epiméleia heautoû (cuidado de si)". (2006:40)

Podemos admitir que Lacan recoloca a questão da psicanálise porque confere ao sujeito o estatuto de sujeito do inconsciente – evanescente - (distinto do sujeito da 'ciência' - do sujeito como fundamento) e marca seus modos de relação com a verdade como causa e não como conseqüência do acesso a um saber pelo uso da razão. Ou seja, essa relação entre o sujeito e a verdade, estudada por Lacan, nada tem a ver com um saber – psicanalítico- que serviria à adequação e à norma.

Nesse sentido, Lacan (1992a) enfatiza que, não raro, o saber é tomado como verdade, mas a "verdade não é mais do que aquilo do qual o saber nada pode aprender (...)." (p.280). Ou seja, a verdade não pode ser isolada "como atributo do que quer que possa articular-se com o saber." (LACAN, 1992b:58).

A verdade estudada por Lacan não é a "verdade da psicanálise", não é uma Weltanschauung que converteria a psicanálise numa visão de mundo totalizada ou totalizante (FINK, 1998), mas uma verdade do sujeito, no sentido de que só o sujeito pode "semi-dizê-la". Portanto, não é a verdade sobre o sujeito. É algo que não é exterior, porém, é estranho ao sujeito. No Seminário XVII (O Avesso da psicanálise), Lacan (1992b:55) conclui que:"a verdade, com efeito, parece mesmo ser-nos estranha – refiro-me à nossa própria verdade. Ela está conosco, sem dúvidas, mas sem que nos concirna a um ponto tal que admitamos dizê-la."

Nesse mesmo texto, Lacan afirma que a verdade não pode ser toda dita, pois nos faltam palavras. Ou seja, dizer toda a verdade é materialmente impossível. "Nenhuma evocação da verdade pode ser feita se não for para indicar que ela só é acessível por um semi-dizer que ela não pode ser inteiramente dita, porque além de sua metade não há nada a dizer." (1992b, p.49).

O "semi-dizer" é um enigma – que é colhido na trama do discurso "psicanalisante" – definido por Lacan como a enunciação sem enunciado (com reserva de enunciado) para o qual cabe a interpretação do psicanalista, que se caracteriza precisamente por transformar a enunciação em enunciado. Esse "semi-dizer" surge como a Esfinge (Tragédia do Édipo), "que faz aparecer meio-corpo, pronta a desaparecer completamente quando se deu a solução." (op. cit., p. 33)

Cabe-nos assinalar ainda que, na teoria lacaniana, a verdade é inseparável da linguagem ou, nas palavras de Lacan (1992b:58), "dos efeitos de linguagem", pois "nenhuma verdade pode ser localizada a não ser no campo onde ela se enuncia". De acordo com Garcia-Roza (1998), não é, contudo, a partir do caráter formalizado do discurso que a verdade se insinua, "mas precisamente quando o discurso falha (...)". Esse autor, citando Lacan, escreve: "são nossos atos falhados, atos que são bem-sucedidos, nossas palavras que tropeçam são palavras que confessam e revelam uma verdade detrás." (GARCIA-ROZA, 1998:20).

Assim, admitir que haja impossibilidade de se expressar toda a verdade, que da verdade nada podemos saber – marcando uma disjunção irredutível entre saber e verdade – que a verdade é fugidia, é entendê-la como impotência (LACAN,1992b). Impotência que se manifesta por não estarmos em posse da verdade, e de não podermos – estruturalmente – estar.

De outro modo, considerando as aproximações e distinções entre a psicanálise e a filosofia foucaultiana – que como afirmou Chaves (2009) é uma 'relação' marcada pela ambigüidade –, mas reconhecendo que há um solo comum entre ambos, observamos que Foucault propõe claramente uma reelaboração da teoria do sujeito (Foucault, 1973) e neste percurso se envolve com a questão da verdade.

De acordo com Souza (2000), entre as principais referências da filosofia foucaultiana está o sujeito em sua experiência com a verdade. Diferentemente da tradição da filosofia moderna que se preocupou com a analítica da verdade, Foucault não concebeu a verdade como única e idêntica em toda a parte, situando o problema da verdade – filosófica e historicamente – no âmbito da constituição da subjetividade. De acordo com Santos (2003), especialmente em seus últimos trabalhos, Foucault centra sua "preocupação" na verdade. "Meu problema não deixou de ser sempre a verdade [...] mas a pergunta explícita é: como uma relação com a verdade constitui subjetividade?". 1

Nesse sentido, consideramos que desde seus estudos da década de 70, Foucault explicita tal "preocupação" quando lança a hipótese de que há duas histórias da verdade. Uma espécie de história interna, aquela que se corrige a partir de seus próprios princípios de regulação, a história da verdade igualmente como se faz na história das ciências e uma história externa/exterior, que é aquela que busca onde a verdade se forma – "onde um certo número de regras de jogo são definidas (...) regras a partir das quais vemos nascer certas formas de subjetividade" (Foucault, 1973: 11)

Em seu percurso teórico, Foucault marca a diferença entre o sujeito moderno e "o antigo" (da Antigüidade), pois, a partir de Descartes, o lugar da verdade já está constituído, em contraposição "a um sujeito que se forma e se torna outro em relação à verdade" 2. Ou seja, na "história da verdade", Foucault (2006) contrapõe o acesso a ela pelo conhecimento – e somente por ele, o que não "salva" o sujeito, não "transfigura o seu ser" – característica da "idade moderna das relações entre o sujeito e a verdade" (op. cit., p. 22) – com as práticas da Antigüidade, especialmente na Grécia (do século V a.C. até o V d.C.), quando o "cuidado de si" (epiméleia heautoû) – que designava o "conjunto das condições de espiritualidade, o conjunto das transformações de si que constituem a condição necessária para que se possa ter acesso à verdade" (op. cit., p. 21) – era praticado e transformava o sujeito.3

As análises de Foucault sobre a relação do sujeito e a verdade incidiram sobre as práticas ocorridas ao longo dos séculos que transformam "o cuidado de si", no "conhece-te a ti mesmo"4, um procedimento cartesiano, "que pôde ser aceito, desde o século XVII em certas práticas ou procedimentos filosóficos." (Foucault, 2006:19). Nesse sentido, suas conclusões apontam para o obscurecimento do "cuidado de si" pelo "conhecer a si mesmo" que exila o sujeito da "experiência da verdade", pois tal sujeito – do conhece-te a si mesmo – é um sujeito cognoscitivo ou epistemológico, portanto a "verdade" é exterior a ele. De acordo com Santos (2003), Foucault conclui que esse "saber" (oriundo do imperativo "conhece-te a ti mesmo") sem experiência, sem experimentação – logo sem riscos – e que resulta num sujeito "fixo", é desconhecido dos antigos, pois o "cuidado de si" implicava a experiência e a transformação.

Assim, para Foucault, a experiência da verdade pode ser um acontecimento que "liberta" o sujeito dessas práticas, pois não se estabelece numa "busca" do sujeito pela definição do "que é a verdade" ou de "onde está a verdade", mas como uma atividade que comporta riscos e pode oferecer outra maneira de viver.

Um dos caminhos percorridos por Foucault para compreender a relação do sujeito com a verdade foi o estudo da parrhèsia.5 De acordo com Rajchman (1994), podemos considerar que Foucault deu à parrhèsía grande ênfase porque compreendeu que as pessoas podem se reconhecer como sujeitos a partir do discurso crítico livre, e viu nela uma experiência de verdade. Foucault, em sua incursão pela Grécia Antiga, pôde pensar "na verdade" e localizar uma prática de "verdade" especialmente na problematização da parrhèsía que produziria um saber. Através daquilo que ele denominou como "filosofia crítica", pôde perguntar: quanto custa à razão dizer a verdade? (RAJCHMAN,1994:17). Pôde identificar a verdade como causa na "ciência" e como condição de possibilidade da filosofia e pôde estabelecer uma relação entre o dizer a verdade e a prática do sujeito (SANTOS, 2003), demonstrando, com isso, o quanto a "questão da verdade" envolveu seu pensamento num longo percurso.

Esta breve caracterização da questão da verdade nos textos de Jacques Lacan e Michel Foucault possibilita refletir sobre a 'verdade' do (e no) campo da educação, pois isto significa 'desnaturalizar' o sujeito, a verdade e conseqüentemente os discursos universalizantes inscritos no campo educacional.

Certamente no espaço deste texto, deslocaremos o foco das polêmicas acerca de tais discursos (e práticas) e polarizaremos a questão na possibilidade de uma problematização sobre a verdade racional e universal do campo da educação e da questão da verdade tal como abordada por Lacan e Foucault.

E educação – neste momento remetemos à educação escolar – se constitui num conjunto de prescrições de conduta porque historicamente se caracteriza como uma instituição privilegiada para o exercício do uso da razão e para a modelagem do homem. Tal 'privilégio' não significa que a escola está ou esteve acima das demais instituições (como por exemplo, a família), mas caracteriza-se como a instituição na qual emerge muito claramente a figura do homem como problema, própria da episteme moderna.6 A educação submetida à (ou submetendo a) escolarização tem como condicionante um "sujeito de conhecimento tomado por si próprio e como objeto para o saber (...) tomado como natural, universal, racionalista, autônomo e senhor de si." (HOFFMAN E PRADO FILHO, 2008:03).

A questão é pensar nas práticas educacionais e neste sujeito de conhecimento para quem é destinado um saber (que produz e é produzido no interior das práticas) e na constituição da subjetividade que daí emerge. É pensar a partir da problematização da verdade universal (logo racional) que produz a figura do homem como um problema e para o qual a educação escolar traria a solução.

Mas, problematizar a partir de referências que não pressupõe o sujeito transcendental, mas que considera a "dimensão da historicidade das relações consigo mesmo, na dimensão da subjetividade e da constituição de si e na imanência da transitoriedade histórica". (HOFFMAN E PRADO FILHO, 2008:03). E ainda, problematizar estas 'práticas de verdade' e sua inevitável incompletude (pois produzem subjetividades, mas há algo que lhes escapa), a partir de uma crítica aos fundamentos da tradição racionalista que estimula olhar para um sujeito remetido à lei (trágica) do desejo. Eis o nosso objetivo.

 

Notas:

1- (Foucault, in: Abraham, 2003:45). Tradução livre.

2 - ibid. Tradução livre.

3- Essas práticas não tinham uma dimensão individualista, mas constituídas como prática social que não excluía o outro. Foucault, M. A hermenêutica do sujeito, 2006

4 - Em "A Hermenêutica do Sujeito", Foucault mostra como o "conhece-te a ti mesmo" (gnôthi seautoû) socrático (que estava atrelado, "acoplado", ao princípio do "cuida de ti mesmo" –"epiméleia heautoû"), é requalificado filosoficamente, transformando-se no "conhece-te a ti mesmo" cartesiano (uma forma de consciência). Portanto, o procedimento cartesiano e o gnôthi seautoû socrático distanciam-se imensamente. (2006, pp.7-24)

5- De acordo com Foucault, no texto "coraje y verdad" (In:Abraham,2003,pp.19-23), a palavra parrhèsía é comumente traduzida para o inglês como 'free speech' e para o francês como 'franc parler'. (Houaiss: parrésia=liberdade oratória; afirmação corajosa). Neste texto, Foucault dá uma visão geral do significado da palavra e da evolução do significado através da cultura grega e romana. Cabrera, M. (In: Abraham, 2003), analisa essas idéias e afirma que Foucaut apresenta algumas características da parrhèsía: 1. não é uma verdade de fato (é uma verdade concebida como autêntica); 2. ao dizer a verdade o parresista (parrhèsiastes) tem que correr um risco diante de seu interlocutor; 3. a parrhèsía implica coragem de dizer a verdade e de escutá-la também, especialmente do lado daquele que fala. (Abraham, T. 2003, pp.265-276) Tradução nossa. Camargo e Mariguela (2007) afirmam que a palavra parrhèsía tal como usada primeiramente por Eurípedes, "define uma função discursiva. Como ato de enunciação o sujeito não está separado daquilo que fala. Sua constituição como sujeito falante é determinada por aquilo que diz."

6. Conforme conclui Foucault em A palavra e as coisas, 1999.

 

Referências bibliográficas:

ABRAHAM , T. El último Foucault. Buenos Aires: Editorial Sudamericana, 2003.

CAMARGO, A.M.F. & MARIGUELA, M. Apresentação. In: Cotidiano escolar – emergência e invenção. 2007. online: http://www.fe.unicamp.br/.

CHAVES, E. Entre o elogio e a crítica. In: Dossiê Michel Foucault. Revista CULT. São Paulo: Editora Bregantini, 2009 (pp.48-50)

FINK, B. O sujeito lacaniano: entre a linguagem e o gozo. Tradução: Maria de Lourdes S. Câmara. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.

FOUCAULT, M. A hermenêutica do sujeito. Tradução: Márcio Alves da Fonseca e Salma Tannus Muchail. 2ª. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006. (Tópicos)

_____________. Coraje y verdad. In: ABRAHAM , T. El último Foucault. Buenos Aires: Editorial Sudamericana, 2003. (pp.267-276)

_____________. A palavra e as coisas. Tradução: Márcio Alves da Fonseca e Salma Tannus Muchail. São Paulo: Martins Fontes, 1999. (Tópicos)

_____________. A verdade e as formas jurídicas. (1973). Rio de Janeiro: NAU Editora, 2005.

HOFFMAN, H & PRADO FILHO, K. Ética, subjetividade e constituição de si. Congresso Fazendo Gênero 8 - Corpo, Violência e Poder. Florianópolis, 2008. online: http://www.fazendogenero8.ufsc.br/sts/ST50/Hoffmann-Prado_Filho_50.pdf

GARCIA-ROZA, A. Palavra e verdade: na filosofia antiga e na psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998

LACAN, J. Escritos. Volume 1. Tradução de Inês Oseki-Depré. 3ª. ed. São Paulo: Perspectiva, 1992a (Coleção Debates)

_________.O seminário, livro 17: o avesso da psicanálise (1969-1970). Tradução Ari Roitman. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1992b

RAJCHMAN, J. Eros e Verdade: Lacan, Foucault e a questão da ética. Tradução: Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1994.

SANTOS, F. El riesgo de pensar. In: ABRAHAM , T. El último Foucault. Buenos Aires: Editorial Sudamericana, 2003.(p.40-106)

SOUZA, S. C. A ética de Michel Foucault: a verdade, o sujeito, a experiência. Belém, PA: Cejup, 2000