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ISBN 978-85-60944-35-4 versión on-line

An 8 Col. LEPSI IP/FE-USP 2011

 

Memória Educativa e Formação Docente: o lugar ou (não) lugar dos saberes nas investigações orientadas pela psicanálise

 

 

Adriana Pereira BomfimI; Márcia Barra Milhomens ChauvetII

IDoutoranda em Educação pela Faculdade de Educação (FE) da Universidade de Brasília
II Mestre em Educação pela Faculdade de Educação (FE) da Universidade de Brasília

 

 


RESUMO

Este trabalho é resultante de duas pesquisas de mestrado, já concluídas, que investigaram os possíveis efeitos que a leitura psicanalítica pode trazer à formação de professores, em especial aqueles que trabalham com crianças e adolescentes fora do suposto padrão de normalidade – com algum tipo de deficiência e em situação de vulnerabilidade/risco social. Neste sentido, discutiu-se, a partir dos relatos escritos dos docentes como a presença do saber inconsciente pode influenciar e interferir no saber-fazer pedagógico, bem como nos saberes instituídos, fruto de uma formação cartesiana e tecnicista, que despreza a dimensão subjetiva, inerente ao ato educativo. Nas investigações, a Memória Educativa foi o principal dispositivo de pesquisa, onde elementos subjetivos emergem, revelando os lugares e (não) lugares ocupados pelo saber, sobretudo o inconsciente, nas trajetórias de vida e formação profissional dos educadores. Por conseguinte, foi possível perceber, a partir dos escritos docentes, o que conduziu a escolha pelo trabalho com estes alunos, em especial, o que os mantém neste lugar repleto de saberes desconhecidos, que os incomoda, cotidianamente, mas que também os instiga ao convívio diário com saberes, ora desconhecidos, ora familiares, na tentativa de tamponar uma falta que não cessa de se inscrever. A leitura psicanalítica, que orientou as pesquisas, (re)vela os prazeres e desprazeres que mantém estes educadores em contato permanente com saberes incontroláveis e desconhecidos, divergentes das concepções que sustentam sua formação profissional, impregnada de certezas e saberes absolutos, distantes da realidade presente em suas salas de aula.

Palavras-chave: Memória Educativa, Formação Docente, Psicanálise.


 

 

Situando lugares e saberes da escola e em nossas pesquisas

Atualmente, a sociedade vem passando por grandes transformações, tanto nos campos sócio-econômico e político, como nas configurações familiares. A crise de concepções e paradigmas, o consumismo exagerado, o declínio da função paterna, os questionamentos acerca de valores instituídos, dentre outras questões, repercutem, também, na instituição escolar.

Segundo Oliveira (2003), a informação tornou-se mercadoria valiosa em nosso mundo, onde a ciência e a tecnologia são instrumentos de produção e riqueza. Disso decorre a tendência atual de maior valorização à preparação de pessoas competentes e eficientes para aquisição de informações, em detrimento da formação de "pessoas que estejam aptas a elaborar conceitos de verdade e de valor". (p. 244).

Com o advento da globalização uma série de padronizações, maneiras de agir e pensar muito homogêneas foram, aos poucos, sendo impregnadas em todos os ambientes sociais. Apesar de "reconhecer" a diversidade, a política globalizante propõe uma espécie de homogeinização na qual, de acordo com Mrech (2003):

... a sociedade contemporânea transforma-se na sociedade do estereótipo, onde há crenças prévias de como as pessoas devem pensar e sentir. De como as mães devem ser. De como os professores devem se relacionar com os alunos. De como os alunos devem se relacionar com os professores (p.20).

Aquele que é diferente, ou seja, que não atende ao padrão pré-estabelecido possui, nesta perspectiva, um lugar muito bem definido: compor a margem da sociedade, já que não atende ao ideal de produção imposto a todas as pessoas.

Considerando esse contexto, comum às pessoas com deficiência e aos adolescentes em situação de vulnerabilidade, nossas pesquisas propuseram uma reflexão inicial acerca dos ideais desta sociedade globalizada, onde a eficiência, a rapidez e a produtividade são palavras de ordem, às quais todas as pessoas devem se submeter para serem aceitas e consideradas capazes e produtivas. Percebemos que, na sociedade do consumo e da produtividade, quem desobedece ao padrão de normalidade só tem um destino: a exclusão.

Apesar de a escola continuar sendo, em geral, guiada pelo ideário da racionalidade instrumental e objetividade científica e, ainda, a despeito de sua desvalorização social, percebemos, também, que muitas têm sido as tentativas de torná-la um espaço com ações educativas mais adequadas à realidade e às problemáticas da sociedade contemporânea. Os atuais programas educacionais têm usado como fundamento do processo educativo, a concepção de desenvolvimento integral do ser humano; contudo, praticamente, não há abertura de espaços para o entendimento de um outro nível de realidade: a dimensão inconsciente.

Nesta perspectiva, discutimos, a partir de reflexões advindas de nossas pesquisas de Mestrado1, uma formação de professores que considere fatores subjetivos, que extrapole a dimensão exclusiva da razão, não valorizando apenas o saber técnico. Abordamos uma formação que não seja guiada por ilusórias certezas positivistas, mas capaz de propiciar aos professores reflexões acerca de suas experiências educacionais, considerando, também, conforme Martins (2009): "os sentidos (conscientes e inconscientes) que perpassam as relações pedagógicas". (p.3).

Os relatos escritos e as falas dos docentes, que participaram das pesquisas, nos levaram a reflexões acerca de como a presença do saber inconsciente pode influenciar e interferir no saber-fazer pedagógico, bem como nos saberes instituídos, fruto de uma formação marcada pelo cartesianismo e por técnicas didático-pedagógicas miraculosas, que desprezam uma dimensão que é subjetiva e inerente ao ato educativo.

"Essa coisa de ser amigo do aluno é fundamental. Eu acho que percebi isso nessa época, com o professor de Química que me ajudou e me tratava com amizade. Não foi uma técnica que eu aprendi, foi um momento... da minha vida que... a gente acaba fazendo, tentando repetir isso. [...] E é inconsciente, com certeza, é inconsciente. Eu conversando aqui com você agora, eu estou percebendo que eu trouxe isso exatamente do segundo grau (risos), dessa época com o professor de Química". (Professora M.O.2).

"Teve um aluno meu, nesse ano, que tinha sido meu aluno, antes, na quinta série, porque agora eu só trabalho com sétima e oitava. Ele era um aluno bem quietinho, na dele. Ele pedia pra eu corrigir ou explicar qualquer coisa, eu ia, fazia com ele e tal... sem grandes problemas. Aí esse ano ele chegou na sétima série e os alunos trocaram orkut aqui comigo, perguntaram qual era o meu e ele perguntou: ‘Professora, eu posso te adicionar?'E eu falei: ‘Pode e tal...'. Quando ele me adicionou, ele colocou lá um screp pra mim: ‘Professora, você foi a melhor professora de Língua Portuguesa que eu já tive'.Nossa! Mas aquilo mexeu tanto comigo, que eu falei assim: ‘Meu Deus, o quê que eu ensinei pra essa criatura? Por que ele está falando isso, né?'. Não teve conteúdo, né... pra ele gostar tanto da língua portuguesa desse jeito. Na verdade foi uma quebra de alguma coisa, que ele realmente gostou da minha postura, não sei, da forma como eu trabalhei com ele... E eu vi que eu tinha quebrado aquela coisa pessoal"... (Professora M.A).

Nesse sentido, discutimos a ausência do saber inconsciente nos espaços de formação educativa a partir de duas perspectivas. Uma primeira, onde o saber inconsciente é percebido com certo desconforto, como não-saber, fruto da ignorância de quem desconhece a sua origem. Uma segunda, em que este saber de ordem inconsciente revela-se associado a um não-saber, aodesconhecido, àquilo que não se quer saber (porque é, justamente, inconsciente e suscita mudanças na ‘confortável' posição de saber/poder ocupada, em especial, pelo professor, a qual não admite a eclosão do não saber - inconsciente), embora este seja elemento constituinte das situações educativas e do próprio ser humano. Nesta última percepção, notamos que a ausência de discussões que contemplem uma dimensão inconsciente do saber-fazer educativo na escola e nos demais espaços educativos ocorre muito mais pelo desconhecimento dos seus efeitos e pelas ameaças ao padrão confortável de atuação profissional, por conta da falta de espaços de escuta que propiciem a emergência dos sujeitos – professor e aluno - do que pela ignorância do seu significado.

 

Saber x Conhecimento

Nossas pesquisas ocorreram na perspectiva de discutir a formação do professor que trabalha com pessoas com deficiência ou com adolescentes em situação de vulnerabilidade/risco social, conhecer sua trajetória de vida escolar e as possíveis interferências de suas marcas constituintes em sua postura diante do não-saber que o aluno - diferente do padrão idealizado – apresenta e lhe impõe como desafio cotidiano.

Uma importante contribuição do referencial psicanalítico, utilizado na análise de dados de nossas pesquisas, refere-se às distinções entre "conhecimento" e "saber". Mrech (2003) explicita que o saber é da ordem da elaboração pessoal, algo a ser estabelecido e tecido pelo sujeito e que o conhecimento é "(...) apenas um contexto inicial instituído a partir da informação". (p.83).

O conhecimento advém de informações, conceitos, ideias, conteúdos que são comunicados. Mas, a construção de um saber requer a reconstrução das informações, agregando-as aos saberes anteriores do sujeito, com uma implicação subjetiva, de modo que acaba reconhecendo como algo próprio, não apenas informação.

Já o que o professor transmite é muito mais que o conteúdo; ele coloca algo de seu saber e conhecimento. Os alunos observam no mestre sua postura ética, seu comprometimento, como lida com as divergências, respeito aos outros, a cultura, as diferenças, enfim, seu modo de proceder, que o apresenta como pessoa, como sujeito desejante e também sujeito do inconsciente. A educação não se restringe ao ensino e à aprendizagem de conteúdos escolares, abarca também ensinamentos e aprendizagens para a vida; trata de ensinar a criança a aprender a viver.

Percebemos, em algumas falas dos docentes, a presença de um saber sobre o conhecimento que ultrapassa o nível de aquisição de informações. Notamos, ainda, que o próprio professor tem uma percepção de si, de fatos/momentos na formação de sua identidade docente:

"Após a entrevista, percebi que meu saber é muito menos formalizado e mais apropriado, pois são saberes indissociados da minha pessoa, da minha experiência e formação, e também do tipo de clientela com a qual trabalho. Sou uma profissional em formação. Obrigada pela chance de refletir".
(Professora N.).

Para Monteiro (2006), a reflexão proposta pela psicanálise sugere que o professor pode e deve balizar seu discurso naquilo que caracteriza sua singularidade, na relação que estabelece com o conhecimento a ser transmitido. Assim, espera-se que não se prenda mais a modelos ou padrões considerados adequados e sim que deixe vir à tona o seu estilo. Ressaltamos, ainda, que o professor é um sujeito sempre em formação, e, conforme Nóvoa (2000):

a identidade não é um dado adquirido ou um produto, mas um lugar de lutas e conflitos, um espaço de construção de maneiras de ser e estar na profissão, ou seja, faz sentido crer que a maneira como cada professor ensina está diretamente dependente daquilo que é como sujeito, dos estilos que o constituem como mestre, quando exerce o ensino (p.26).

Alguns professores revelaram, espontaneamente, a importância de terem revisitado suas histórias de vida e trazido à consciência muitos aspectos que já não lembravam, podendo desse modo, refletir e buscar novos rumos para o futuro:

"Eu fiquei muito feliz em participar... foi uma experiência muito boa. Nesses dias em que eu fiquei sentadinha escrevendo, eu lembrei de coisas que foi muito bom lembrar...e eu quero te agradecer, porque eu queria muito ter participado (chora),foi muito legal! Obrigada! (ri e chora de emoção)". (Professora M.O.).

 

Memória Educativa: uma ressignificação de saberes

Em nossas pesquisas de mestrado, utilizamos, como principal dispositivo de investigação, a Memória Educativa. Por meio desta, os professores pesquisados puderam relatar e escrever suas trajetórias como alunos, nos diferentes níveis da instituição escolar e, a partir disso, refletiram sobre aspectos e marcas inscritas ao longo de suas histórias de vida, reconhecendo-os como relevantes na escolha docente e formação de seus estilos na atuação pedagógica. Em o Futuro de uma Ilusão, Freud (1927) afirma:

Quanto menos um homem conhece a respeito do passado e do presente, mais inseguro terá de mostrar-se seu juízo sobre o futuro (...) o presente tem de se tornar o passado para que possa produzir pontos de observação a partir dos quais ele julgue o futuro (p.15).

Os estudos sobre a Memória Educativa têm, originalmente, a relevante contribuição do trabalho desenvolvido por Almeida e Rodrigues (1998), por meio do módulo - Imersão no Processo Educativo das Ciências e da Matemática, integrante do Programa de Aperfeiçoamento de Professores de Ensino Médio (pró-Ciências). Nesse estudo, os professores foram convidados a refletir e analisar sua prática educacional, por meio de dois momentos inter-relacionados: a sua prática docente como educadores (professores) e a sua memória educativa como educandos (alunos), com o objetivo de reflexão e aprofundamento teórico do fazer educativo e, sobretudo, de questões a serem enfrentadas por este educador (idem, p. 7).

De maneira específica, as autoras pretenderam que os professores se apropriassem da construção de suas identidades profissionais; uma vez que a elaboração da Memória Educativa, enquanto dispositivo, propunha uma viagem ao passado, através da sua trajetória como estudante (...) de tal forma que houvesse um resgate, na memória do tempo, episódios, situações, pessoas e processos dessa experiência vivida (ibidem, p. 12).

Ao propormos o registro da trajetória escolar, como um resgate histórico da caminhada dos sujeitos, visamos que houvesse uma retomada consciente, embora tal retomada esteja perpassada pelo inconsciente. Como tais registros se deram por formas discursivas, certamente algo do inconsciente compareceu.

De acordo com Montenegro (1994), além de resgate do passado, a história também apresenta formas de elucidação do presente, além de projetar o futuro. O tempo histórico não é o tempo vivido. A história escrita, documentada, distingue-se do acontecido, é uma representação. E neste hiato entre o vivido e o narrado localiza-se o fazer próprio do historiador. (Idem p.10).

Por meio das memórias e reminiscências, o sujeito também passa por processo semelhante. A escrita elaborativa pode exercitar funções de ressignificação e reelaboração da vida e também dos saberes, na medida em que o sujeito perceba e considere a existência de um saber não explícito, mas que revela "verdades" de si mesmo.

Acreditamos que a busca da compreensão, pelo professor, do que ocorre consigo mesmo seja um modo de formação continuada que pode levar à superação de dificuldades. Neste tipo de formação, o olhar deve dirigir-se para além do metodológico, do pedagógico, buscando enxergar a pessoa do professor e seu processo de constituição. Pensamos, como alguns autores que trabalham com a formação docente inicial e/ou continuada, que a escolha profissional esteja relacionada à singularidade da história de cada um, que é construída por meio de processos inconscientes, identificações sucessivas e diversas, além da necessidade de ocupar um lugar na sociedade.

Para Freud, no texto O mal-estar na civilização (1930) os sujeitos buscam reparar o desamparo e satisfazer a necessidade de proteção, com formas compensatórias, como: a "arte" (p. 93),o "uso de drogas" (p.93), a "sublimação das pulsões" (p.98), "o trabalho" (p.99), as "fantasias" (p. 99, 100), o "remodelamento delirante da realidade" (p.100), o "amor sexual" (p.101) e a "enfermidade neurótica" (p.104).

A idéia do desamparo humano na obra freudiana refere-se às renúncias e aos limites da vida. Para não nos confrontarmos com o sentimento de desamparo, buscamos resgatar uma suposta completude. Esta sensação de completude está associada tanto ao sentimento oceânico (uma vivência nostálgica de inseparabilidade do mundo, um estado fusional originário), quanto a revivescência da onipotência infantil oriunda do narcisismo primário. Remete-se, também, a pulsões inibidas.

Dessa forma, seguindo o pensamento de Freud de que o trabalho é uma forma de enfrentamento da falta, buscamos articular as escolhas docentes pelo trabalho pedagógico com adolescentes em situação de risco/vulnerabilidade social e com a inclusão de pessoas com algum tipo de deficiência no ensino regular, com o modo com que os professores lidam com seus sentimentos de desamparo. Consideramos, também, que cada sujeito encontra modos singulares e diversos de lidar ou na tentativa de obturar suas faltas.

"Com as pessoas adultas eu não conseguia me soltar e com alunos, adolescentes e crianças eu estava muito à vontade. Então, eu vejo que tudo isso é até responsável por eu seu professora de criança e de adolescente, porque é onde eu me sinto bem, não no meio de adultos... pra me soltar, me expressar, sem ter medo de ter que estar provando alguma coisa." (Professora N.)

 

Prazer, desprazer, saber, não saber: os possíveis caminhos das escolhas

A leitura psicanalítica, que orientou as pesquisas, (re)vela os prazeres e desprazeres que mantém estes educadores em contato permanente com saberes incontroláveis e desconhecidos, divergentes das concepções que sustentam sua formação profissional, impregnada de certezas e saberes absolutos, distantes da realidade presente em suas salas de aula.

Segundo Freud (1930/1929), para suportar as vicissitudes da vida, o homem não pode dispensar medidas paliativas. Para tanto, ele apresenta três caminhos: derivativos poderosos, que nos fazem extrair luz de nossa desgraça; satisfações substitutivas, que a diminuem, e substâncias tóxicas, que nos tornam insensíveis a ela (p.83).

Freud esclarece, também, que o homem, para alcançar a felicidade, propósito de sua vida, esforça-se para que não haja sofrimento ou desprazer e, ao mesmo tempo, para viver apenas momentos de intenso prazer. Isto, pois, é o princípio do prazer que rege a vida. Entretanto, essa missão logo se revela impossível, uma vez que não existe a possibilidade de satisfação permanente dos desejos. A felicidade humana, afirma Freud, restringe-se à sua constituição. Por outro lado, o sofrimento é algo sempre presente. Freud (ibidem) diz que ele nos ameaça a partir de três direções:

...de nosso próprio corpo, condenado à decadência e à dissolução, e que nem mesmo pode dispensar o sofrimento e a ansiedade como sinais de advertência; do mundo externo, que pode voltar-se contra nós com forças de destruição esmagadoras e impiedosas; e, finalmente, de nossos relacionamentos com os outros homens (p.84-85).

Essa última, a mais difícil de suportar. E é por conta desses entraves, impostos pelas possibilidades de sofrimento, que o homem acaba priorizando a tarefa de evitar o sofrimento em lugar da obtenção de prazer. Outrossim, o princípio do prazer transforma-se em princípio da realidade. O ideal de ter todas as suas necessidades atendidas é deixado em segundo plano. O lugar do gozo (satisfação irrestrita de todas as necessidades, que dão prazer), caminho inicialmente mais tentador, é relativizado. Desse modo, resta ao homem buscar saídas para fugir do sofrimento e do desprazer.

Transpondo essa situação para o ambiente educativo, é possível inferir que os ideais narcísicos de uma educação perfeita e da completude do trabalho docente podem ser, também, fruto das ilusões; de ilusões depositadas na escola e sustentadas por discursos recheados de certezas, que se distanciam da real condição humana - marcada pela falta - e que têm o inconsciente como uma iguaria intragável. As ilusões, assim, nos poupam de sentimentos de desprazer; as queixas, quando elas não se concretizam, funcionam como uma defesa que nos sustenta em um lugar de proteção, no qual é permitido viver, assim como acontece com os religiosos.

Se retomarmos a trajetória histórica da educação, como via para essa discussão, constataremos que, apesar da ecleticidade de práticas pedagógicas, uma característica comum persistiu em todas as épocas: a promoção e sustentação de uma imagem ideal de homem (Voltolini, 2001). Imagem esta, buscada incessantemente pelo educador.

Verificamos que os professores, sujeitos de nossas pesquisas, muitas vezes, ao se depararem com a complexidade da vida de adolescentes em situação de vulnerabilidade e de crianças com algum tipo de deficiência, sentem-se frustrados diante da impossibilidade de resolução dos problemas vivenciados pelos mesmos. As frustrações também são decorrentes das idealizações pedagógicas que frequentemente esbarram nas falhas do outro e nas diferenças de estilos de aprendizagem nunca contempladas inteiramente pelos métodos e técnicas de ensino.

Por outro lado, pudemos observar que a vivência cotidiana com tais impossibilidades proporcionou a estes professores um quantum de desidealização do ato educativo, levando-os a buscarem ações alternativas, além de flexibilização diante da realidade. Isso implica continuar fazendo uma aposta na pessoa do aluno, apesar das vicissitudes vivenciadas.

Segundo Lajonquière (2002), o educador deve renunciar a esse ideal de completude narcísica imaginária e também à ilusão de que é possível gestar, por obra dos ideais e normas educativas, pelo menos um adulto do futuro a quem nada falta (p.40).

Almeida (2000) alerta que, embora a divisão subjetiva do sujeito e o mal-estar na cultura afastem o impossível da educação, enquanto ideal de perfeição narcísica, o ato educativo permite modificar o sujeito frente à castração, uma vez que educar e educar-se implica, sobretudo, estar em contato permanente com a alteridade e ter que se haver com a diferença. Entre a imagem ideal do aluno e o aluno real, de carne, ossos e desejo se estende uma diferença radical, da mesma forma que existe uma diferença entre a imagem ideal do mestre (p.11).

O mal-estar de que falamos não é resultante único do processo de inclusão de alunos com deficiência no ensino regular ou de reinserção dos adolescentes em situação de risco na sociedade; pelo contrário, esse processo parece funcionar como uma válvula de escape para um profissional desesperado, perdido e que encontrou na inclusão/na reinserção justificativas para, ao menos, alguns dos seus problemas. Isto porque, sabemos, os de ordem inconsciente são incontroláveis, inevitáveis.

Implicar-se no impossível da educação significa, portanto, conviver com o imprevisível do ato educativo, além de encontrar-se inevitavelmente com sua própria face, pois aquele que suporta o ato de educar não se confronta apenas com a criança viva – o aluno -, mas, e, sobretudo, com a criança recalcada que o inspira na maioria de suas reações, lembra Almeida (ibidem).

"Os meninos foram vendo quem eu era e, com jeitinho, fui conseguindo conquistar os meninos e vi, foi aí que eu vi, que eu não podia ser aquela professora autoritária que lá na frente da sala falando, com aquele monte de menino sentadinho me ouvindo, porque não era a realidade daqui e aí foi quando eu comecei a mudar um pouco a minha postura, eles foram começando a me entender e eu começando a entendê-los e eles me ensinando e eu ensinando a eles. Eles mais me ensinando, do que eu, na realidade e... foi dando certo. Eu acho que eu tenho muito ainda pra mostrar pra eles, pra ensinar, porque eu acho que a cada dia a gente está aprendendo uma coisa. A gente é professor, mas a gente está sempre aprendendo." (Professora M.O).

Uma grande contribuição que a psicanálise trouxe às nossas pesquisas foi considerar a importância da escuta dos professores, como meio de re-significar saberes, de organizar concepções que formam saberes particulares, de trocar experiências e concepções de educação com seus pares. Nossas escolas, geralmente, empregam padrões pré-estabelecidos para a prática educativa, seguindo planejamentos descontextualizados que valorizam somente os aspectos cognitivos dos educandos, deixando de respeitá-los como sujeitos únicos, portadores de marcas de vida incrustadas em suas pessoas.

Os educadores se iludem ao buscarem unicamente o conhecimento de métodos e técnicas de ensino, visando melhorarem seus trabalhos pedagógicos e, também, como um meio de minimizar os mal-estares comuns às vivências diárias de sala de aula, tanto em relação ao ensino-aprendizagem, como a relacionamentos interpessoais. Assis (2003) aponta que a falta de investimento nas relações construídas/tecidas em sala de aula tem gerado a banalização de valores e, com isso, a ética tem sido abandonada enquanto andaime da civilização:

Há a crença supervalorizada e equivocada de que a capacitação humana e o desenvolvimento de habilidades são produtos de transmissão de informações mais que de experiências. Questão mais de ciência do que de arte e sabedoria.  (Idem,p.249).

Desse modo, a ciência é tida como guia para a existência humana, orientando a todos como obter a felicidade. A educação passa a ser reduzida a mera transmissão de informações.

A partir do exposto, buscamos alertar os professores sujeitos de nossas pesquisas sobre a importância das relações interpessoais entre professores e alunos, apresentando alguns conceitos da teoria psicanalítica. Oportunizamos também momentos de reflexão e discussão entre os pares, sobre suas práticas pedagógicas.

Vale ressaltar que muitos relatos demonstraram a necessidade de criação de um espaço onde o docente possa falar e ouvir suas dúvidas, anseios e atuações. Propomos, então, que haja momentos sistemáticos e coordenados de escuta, com trocas de experiências entre os pares e re-significações sobre escolhas e práticas educativas.

Isso posto, sugerimos uma formação que resgate a subjetividade dos professores que lidam com alunos em situação de risco e com pessoas com deficiência. Trata-se de uma oportunidade de reconstrução do fazer educativo, onde se exercite a aceitação da diferença, o que significa, sobretudo, a aceitação do humano. A escola é convidada a perceber que este novo posicionamento significa o retorno da dimensão humana para a educação; o que passa, em princípio, pela inclusão do professor.

Nesse sentido, acreditamos que a negação do humano nos ambientes educacionais talvez seja um dos maiores problemas a serem enfrentados hoje. Os professores continuam sendo formados, em pleno século XXI, para uma realidade bem diferente daquela que vão encontrar na escola. Talvez o fato de nunca ter sido oferecida a oportunidade de ser expressarem, de comunicarem suas opiniões, alimente a insegurança e a paralisia na qual se encontram.

Precisamos nos livrar das gaiolas que nos aprisionam, e elas somos nós mesmos. Para tanto, consideramos a abertura dos espaços de escuta na escola umas das vias de expressão e partilha dos desconfortos docentes, uma vez que a eles é dada a chance de, ao menos, perceber que fazem parte de um grupo e não estão sozinhos. Uma das grandes surpresas dessa investigação foi a percepção de que eles se sentem isolados uns dos outros, como se vivessem em mundos diferentes, mesmo estando na mesma escola, mesmo enfrentando os mesmos problemas.

 

Referências

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__________. (1989). O Mal-Estar na Civilização. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v. XXI. Rio de Janeiro: Imago. (Obra original publicada em 1930).

KENSKI, Vani Moreira. (1998) Práticas Interdisciplinares de Pesquisa. In: R.V. Serbino (org.). Formação de Professores. São Paulo: UNESP, pp.309-320.

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MRECH, L. M. (2003). Psicanálise e Educação: Novos operadores de Leituras. São Paulo: Pioneira Thompson.

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MONTENEGRO, Antonio Torres. (1994). História Oral e Memória: a cultura popular revisitada. São Paulo, Contexto.

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VOLTOLINI, Rinaldo. (2001) As Vicissitudes da Transmissão da Psicanálise a Educadores. In: III Colóquio do LEPSI IP/FE-USP, São Paulo. Disponível em: http://www.proceedings.scielo.br. Acesso em: 01 Abr. 2007.

 

 

1 Dissertações defendidas na Faculdade de Educação (FE) da Universidade de Brasília (UnB), intituladas: Identidade Docente e suas Implicações no trabalho pedagógico com adolescentes em situação de risco: uma leitura psicanalítica (Márcia Barra Milhomens Chauvet, disponível em: http://repositorio.bce.unb.br/bitstream/10482/5173/1/2008_MarciaBMChauvet.pdf); e A escuta na escola inclusiva: saberes e sabores do mal-estar docente (Adriana Pereira Bomfim, disponível em: http://repositorio.bce.unb.br/bitstream/10482/947/1/2008_AdrianaPereiraBomfim.pdf).
2 Ao longo do texto são utilizados trechos das memórias educativas e entrevistas das professoras que foram sujeitos das nossas pesquisas.