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On-line ISBN 978-85-60944-35-4

An 8 Col. LEPSI IP/FE-USP 2011

 

A escola inclusiva como uma utopia do século XXI

 

 

Ana Beatriz Coutinho Lerner

Psicóloga, psicanalista, mestre em Psicologia Escolar pelo IP/USP e doutoranda da Faculdade de Educação da USP. anabcoutinho@usp.br. Tel: 3030-9521 (cons.) / 8244-3834

 

 

A educação na contemporaneidade é marcada por um discurso que dá ênfase à igualdade de direitos e à inclusão de crianças diferentes nas escolas, como uma forma de promover a educação para todos. Trata-se, de fato, da proposição de um modelo de escola a construir de acordo com a Declaração de Salamanca de 1994, mas cujos contornos situam-se no domínio do utópico, ou seja, de um desejável imaginariamente tornado possível. 

Na literatura pedagógica, a efetivação da escola inclusiva, em suas mais diversas definições, parece depender de um conjunto de prescrições e de medidas administrativas a serem colocados em prática, sem que se leve em conta o que subjaz a uma posição subjetiva inclusiva e o que impede intimamente, inconscientemente, que os educadores alcancem essa tão almejada mudança de posição.

Em nome da sustentação de uma posição política, muitas vezes beligerante, o que vemos são crianças negligenciadas, educadores culpabilizados e em busca de culpados pelo fracasso de um ideal: o da inclusão.

O presente trabalho, fruto das primeiras considerações no percurso do meu doutorado, aborda o movimento da educação inclusiva em termos discursivos, isto é, utilizando o referencial teórico da psicanálise, em especial as formulações lacanianas sobre os quatro discursos (Seminário 17: O avesso da Psicanálise). Para isso, tomamos em análise, o discurso veiculado pelo Fórum Permanente de Educação Inclusiva, um grupo com cerca de mil associados, criado para debater e defender a inclusão total e incondicional de todas as pessoas em todos os contextos sociais, em especial o educativo.

Este Fórum foi criado em 2002 dentro da categoria "debates e causas" e é movimentado basicamente por mensagens eletrônicas e encontros mensais presenciais. Dentre os associados ao grupo estão profissionais das áreas de saúde, educação e, em menor freqüência, profissionais de outras áreas que tangenciam a questão da inclusão (jornalistas, publicitários, tradutores, etc...). Também fazem parte do grupo pais e familiares de crianças com ou sem deficiências, pessoas com deficiência e interessados em geral.

As dificuldades de escrever sobre um tema defendido como uma bandeira da atualidade começaram com a escolha da nomenclatura a ser utilizada. Deficientes, portadores de necessidades especiais, portadores de deficiência, pessoas/sujeito com deficiência?

Em busca de um certo respaldo, recorri à legislação mais atualizada para me certificar de que utilizava a nomenclatura correta, pelo menos do ponto de vista legal, ainda que a abordagem dos fenômenos humanos em termos de certo ou errado não seja pertinente ao discurso psicanalítico, para o qual o significante não precisa estar colado ao significado. Qual seria, então, o significante correto para definir um sujeito com deficiência? De que forma abordar a questão sem que o termo seja tomado pejorativamente?

Essas e outras precauções de que as pessoas se cercam ao tecer críticas sobre o movimento inclusivo dão mostras da intensidade do embate e da radicalidade das posições que estão em jogo.

A resolução nº 1, de 15 de outubro de 2010, do Conselho Nacional dos Direito da Pessoa Portadora de Deficiência – CONADE - é o que há de mais atual na discussão sobre a terminologia relacionada ao movimento inclusivo e atualiza a nomenclatura do regimento interno da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, substituindo o termo "Pessoas Portadoras de Deficiência" pelo termo "Pessoas com Deficiência" (DOU de 05/11/2010, nº 212, Seção 1, pág. 4).

Essa nomenclatura passou a ser utilizada nas comunicações do Fórum Permanente de Educação Inclusiva que se configura como um espaço de interlocução no qual os usuários divulgam textos e notícias de jornais e revistas sobre a inclusão, eventos relacionados ao tema, relato de experiências pessoais e profissionais com crianças e adolescentes incluídos, denúncias de situações de exclusão e preconceito, troca mensagens de apoio e também atualizações sobre mudanças na legislação vigente.

Como parte dos associados é composta de profissionais especialistas no assunto,  não é raro que circulem pedidos de orientação, de indicação bibliográfica e de instrumentalização diante de dificuldades face à inclusão.

Os textos que circulam no fórum nos pareceram um recorte pertinente para análise do discurso sobre a inclusão por apresentarem um estilo oral, embora sejam redigidos, e por representarem uma diversidade de posições, a partir de diferentes lugares e relações com a questão da deficiência, compondo diversas enunciações complementares ao discurso técnico: pais, pessoas com deficiências e leigos interessados no tema.

Os escritos foram tomados neste trabalho como produção discursiva, e não como produções individuais, a partir da noção psicanalítica de sintoma social pensada como o "engendramento de sentidos que são tecidos socialmente, uma vez que o particular e o coletivo são partes de uma mesma trama" (BASTOS, 2003). Este enodamento está na base da definição de inconsciente e de discurso para Lacan. É o que afirma Calligaris (1992/93), em seu texto À escuta do sintoma social:

"O inconsciente não é um depósito mnésico individual. Ao contrário, como Lacan diz, ele é trans-subjetivo, ou seja, é a rede dos laços de linguagem e  os discursos que nos organizam e pelos quais somos produzidos como sujeito" (p. 16).

O intuito dessa análise é desvelar as posições discursivas e os embates que elas fomentam, adotando uma posição perante o texto que implique em abordar os discursos a partir de uma ética, deixando em suspenso opiniões ou concepções morais sobre o assunto, o que não deixa de revelar uma posição política, no sentido mais amplo do termo.

 

A teoria dos quatro discursos

Já são bastantes conhecidos os três ofícios impossíveis apresentados por Freud no prefácio escrito para o livro "A Juventude Desorientada", de Aichorn: governar, educar e analisar. Quinet, em seu livro sobre a psicose e laço social, considera que o chamado mal estar na civilização está ancorado no mal estar dos laços sociais que "se expressam nos atos de governar e ser governado, educar e ser educado e, também, (...) no vínculo entre analista e analisante".

Apoiado sobre essas três impossibilidades e acrescentando a elas uma quarta, "o fazer desejar", característico do discurso da histérica, é que Lacan vai propor sua teorização sobre os quatro discursos. Para ele, essas quatro formas de se relacionar – governar, educar, analisar e fazer desejar – constituem os quatro discursos, que funcionam como "uma espécie de pólo de atração para o qual convergem, num movimento de báscula constante, todos os discursos existentes". (JORGE, 1997, p.158). São quatro discursos radicais que  podem recobrir diversas formações discursivas e servir como um analisador importante dos discursos contemporâneos.

Se tentarmos definir esses modos de relação em termos de discurso, podemos dizer que:

 "Governar corresponde ao discurso do mestre/senhor, em que a lei e o poder dominam; educar constitui o discurso universitário, dominado pelo saber; analisar corresponde ao laço social inventado no inicio do século XX por Freud, em que o analista se apaga como sujeito para ser a causa libidinal do processo analítico e, fazer desejar é o discurso da histérica dominado pelo sujeito da interrogação (...), que a partir de seu sintoma faz o mestre não só querer saber mais, mas produzir um saber". (QUINET, 2006, p. 17).

Os discursos estão formalizados em matemas, com quatro elementos que se alternam em quatro posições.

A rotação dos quatro elementos nos quatro lugares vai configurar a estrutura de cada discurso. "Os lugares dos discursos são fixos na medida em que implicam que, necessariamente, todo e qualquer discurso apresenta uma verdade que o move, sua mola propulsora, sobre a qual está assentado um agente, que se dirige a um outro, produtor, a fim de obter deste uma produção". (JORGE, 1997, p. 158).

Retomados os termos em que estão expressos os quatro discursos, passarei à análise de alguns trechos de textos que foram reunidos sob uma categoria denominada pelos próprios autores de Ensino Regular X Ensino Especializado. Os trechos que estão destacados em itálico foram extraídos na íntegra dos escritos que circularam pelo Fórum Permanente de Educação Inclusiva.

Esse é um tema bastante freqüente nas discussões que ocorrem no fórum e, em geral, os associados criam uma relação de oposição entre ensino regular e ensino especializado, destacando aspectos positivos do primeiro em detrimento do segundo. O ensino especializado é caracterizado como pasteurizado, excludente e preconceituoso, enquanto que o ensino regular é caracterizado como aquele que respeita as diferenças e que recebe as crianças independentemente de suas particularidades.

É interessante notar que o embate em torno do tipo de ensino ideal para as crianças obscurece a discussão sobre a qualidade do ensino que é oferecido em ambos os âmbitos.

As professoras que, de alguma maneira manifestam críticas ou mesmo oposição aos princípios do Fórum, são consideradas com pouco preparo pedagógico, tratadas com ironia ou mesmo com hostilidade. Seu discurso é considerado "ladainha", "lenga-lenga" de profissionais reacionários e resistentes a mudanças.

Me desculpe os dois pés no peito...mas eu já estou cansado de ouvir a mesma ladainha há 11 anos...será que isso não foi tempo suficiente para as pessoas se prepararem??  (Márcio)

Outro aspecto interessante nos discursos refere-se aos vocativos e expressões utilizadas que marcam o tom emocional que o texto vai seguir. Muitos associados iniciam as discussões com termos como: "Amados", "Queridos colegas", significantes que revelam o envolvimento emocional com a causa da inclusão.  Tais significantes são especialmente utilizados em mensagens que contém críticas, como uma estratégia para   amainar a reação dos colegas e o embate. Os recorrentes pedidos de desculpas por opiniões dissonantes também parecem uma preparação para o teor agressivo que se anuncia no texto.

Amados, me desculpem, mas a minha dúvida persiste. (...) Eu não consigo aceitar muitas coisas que leio aqui porque tudo parece muito bonito quando é escrito no papel, mas na prática as coisas não são assim. (Angelina)

O que se apresenta como dúvida, como interrogação, parece ser uma falsa pergunta, uma afirmação fechada, travestida de dúvida que enseja mais o embate do que o debate e o abalo das certezas. É interessante notar também que o fechamento se dá pela via do saber: nós sabemos que a inclusão é o melhor para todas as crianças ou o avesso dessa afirmação.

Querida amiga, quero muito lhe dizer com absoluta certeza que o melhor para TODAS as crianças é estar na escola que lhe ensine com dignidade, que ela seja respeitada em todos os seus direitos e que as conduzam de forma segura à sua autonomia. (Verônica)

Saber mais sobre o assunto, estudar, saber votar e exigir o direito daqueles que nos representam, fortificar a aliança família-escola. Isto tudo não é só teoria é prática que dá certo. (Juliana)

O discurso comporta muitos significantes que remetem às certezas: certamente, com absoluta certeza, o verdadeiro, é evidente, obrigatoriamente. Parece haver um saber pronto sobre o melhor modelo de inclusão a ser implantado e uma queixa dirigida ao modelo atual. Esses significantes de caráter de obrigatoriedade encerram a dúvida que poderia atribuir à criança um lugar de co-autor de seu processo de escolarização. A criança, (interessante notar que o significante criança é usado para se referir ao aluno de inclusão enquanto o significante aluno é utilizado para se referir aos outras alunos) muitas vezes, fica no lugar de objeto do embate entre as certezas imaginárias.

Outro indício interessante é a freqüência com que as metáforas de guerra são utilizadas nas mensagens: que você seja mais uma guerreira pela Inclusão; Temos muito a conquistar; Precisamos lutar mais  para vencer; Derrubar o preconceito, etc.

Apesar de dizer que não há um modelo para a inclusão, algumas falas delineiam um modelo de inclusão pautado no querer, no amor, na vontade, na aceitação e no respeito às diferenças. 

A diferença é palavra de ordem nas discussões, defendida a todo custo. Porém, a consideração à diferença impõe que haja um saber prévio a respeito dela. O que se anuncia nas formações discursivas é que, diante do fato de que todos somos diferentes, os professores precisam se prepara para lidar com a diferença, o que sugere que esta diferença não carreia uma interrogação, não abre espaço para a manifestação subjetiva da criança incluída.

Além disso, é interessante notar também que a diferença não é acolhida no interior do próprio grupo de discussão. Opiniões contrárias são, muitas vezes rechaçadas, mais ou menos polidamente, como podemos ver nos trechos abaixo, endereçados a uma professora de escola especial que questiona a obrigatoriedade da escolarização regular para todas as crianças:

Olha, do fundo do coração, mude o modo de pensar, em vez de gastar sua energia escrevendo longos e-mails sobre o que não dá certo, pense no que poderia dar, vamos discutir sugestões, soluções, possibilidades, porque esse caminho não tem volta. (Beth)

A hipocrisia está justamente em dizer que não é contra a inclusão, mas o coração não a aceita de verdade. Sabe, aquilo que fica lá no fundo, bem no fundo de nosso coração? Aquela vozinha que não quer, mas que precisa querer porque é certo, porque é lei, porque é obrigada? (Lílian)

Em resposta a tais mensagens, a professora prossegue:

Alguém do grupo disse que meu email não era pertinente. Não acredito, afinal, "acho" que esse fórum seja para debates sobre inclusão... ou estou
errada? Mas não vou mais debater com vocês. Alguns pediram pra eu mudar o meu
pensamento. Vocês mudariam o de vocês? Eu também não!!!
Continuo com meus alunos felizes e sorridentes!!
(Diana)

Um dos vetores recorrentes no discurso da inclusão é a contestação e o ataque aos modelos atuais da educação no que se refere ao atendimento prestado às crianças com deficiências. Essa característica o aproxima do discurso da histérica no sentido de se configurar como aquele que se dirige ao fundamento do Outro e não cessa de denunciar sua falha.

Contudo, fica subtraído um interessante efeito do discurso da histérica que é provocar um novo saber, desafiando a autoridade e as teorias estabelecidas e  evidenciando a impossibilidade de uma inclusão-toda.

Nos textos analisados o discurso da inclusão que nasce de uma contestação, inclusive por sua origem atrelada ao movimento anti-manicomial, desliza para o campo da orientação ou da prescrição de um outro modelo.

Na medida em que aponta que o certo não é isso, mas aquilo outro, substitui um ideal por outro. Nesse sentido, podemos dizer que o discurso desliza de uma posição histérica para o discurso do mestre que orienta, prescreve, que define uma direção para que todos marchem rumo ao ideal.

E o ideal que parece estar em jogo é o de que haverá um dia em que a escola estará pronta para acolher a diferença. É apenas uma questão de tempo.

Temos a vontade de que as mudanças sejam mais rápidas, que as famílias assumam seus filhos e os ajudem a enfrentar as barreiras, que as Escolas estejam prontas para receber todos os diferentes. (Márcio)

...será que isso não foi tempo suficiente para as pessoas se prepararem??? (Márcio)

As pessoas mantêm no horizonte uma idealização de completude e não concebem o despreparo como condição estruturante no encontro com a alteridade. Dessa forma, o tempo está em posição de elidir as limitações que a alteridade impõe.

Para concluir, gostaria de propor uma questão que remete ao lugar da psicanálise no interior do campo da Educação Inclusiva. Penso que é função do psicanalista sustentar um discurso que faça face à perspectiva totalitarista do discurso do mestre, para que a inclusão não se reduza a uma religião, ou para utilizar as palavras dos próprios participantes do Fórum, um Credo Inclusivo.

 

Bibliografia

Bastos, M. B. (2003) Inclusão escolar: um trabalho com professores a partir de operadores da psicanálise. Dissertação de mestrado apresentada ao IP-USP.

Calligaris, C. (1992/93). À escuta do sintoma social. Entrevista ao Anuário Brasileiro de Psicanálise. Rio de Janeiro: Relume- Dumará. N. 1, p. 11-22.

Jorge, M. A. C. (1988). Sexo e Discurso em Freud e Lacan. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.

Quinet, A. (2006). Psicose e Laço Social: esquizofrenia, paranóia e melancolia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.