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On-line ISBN 978-85-60944-35-4

An 8 Col. LEPSI IP/FE-USP 2011

 

O declínio dos saberes e o gozo da técnica: a psicanálise na formação de pediatras

 

 

Ana Silvia de Morais; Edna Márcia Koizume; Rogério Lerner; Maria Cristina Kupfer

 

 

RESUMO

De 2004 e 2008, a Pesquisa Multicêntrica de Indicadores Clínicos de Risco para o Desenvolvimento Infantil (IRDI) criou e validou 31 indicadores observáveis nos primeiros 18 meses de vida da criança, que tiveram associação significativa com problemas psíquicos e de desenvolvimento. O estudo formou pediatras para uso do IRDI e coleta de dados. Como desdobramento, a pesquisa Detecção precoce de riscos para transtornos do espectro de autismo com Indicadores Clínicos de Risco para o Desenvolvimento Infantil e intervenção precoce: capacitação de enfermeiros, objetiva sistematizar uma formação para que enfermeiros, técnicos em enfermagem e agentes do PSF façam uso dos IRDI e aumentem sua sensibilidade para a constituição psíquica.

O presente trabalho discute a transmissão do saber implicado nos indicadores por meio da análise discursiva de entrevista realizada com um pediatra que participou da formação IRDI. Os resultados apontam que a formação prévia do profissional, técnica e especializada, influenciou na forma de assimilação dos indicadores. A lógica que prevalece no laço com os pacientes, centrado em patologias, imprime o viés de que os IRDIs são propícios ao ambiente de ambulatório. O discurso revela a dualidade objetivo/subjetivo e a cisão entre seu conhecimento prévio e o adquirido na formação. Os indicadores são tidos como uma ferramenta a mais, reveladora de doenças do hábito.  Ainda assim, indicadores ligados à função paterna tiveram maior impacto, devido à vivência pessoal do entrevistado.  É possível afirmar que os indicadores comparecem em sua prática, evidenciando efeitos da formação, embora a ressignificação do conhecimento prévio seja limitada.

Para futuras pesquisas, justifica-se um planejamento que se atenha à extensão dos efeitos da formação na prática do profissional, bem como ao desafio de um enlaçamento com seu conhecimento técnico prévio e à produção de um saber singular a partir do encontro com a Psicanálise.

No campo da atenção primária à saúde,  os cuidados à criança articulam-se em torno das noções de crescimento e desenvolvimento, norteando a prática clínica e os procedimentos de rotina realizados por pediatras, enfermeiros e agentes de saúde, entre outros profissionais (Brasil, 1984). Um dos objetivos dessa forma de abordagem é a identificação de sinais de risco e de tendência a patologias. Ao incluir a saúde mental como uma linha específica de atuação, a Agenda de Compromissos para a Saúde Integral da Criança e redução da Mortalidade Infantil (Brasil, 2004) estabelece que "...os profissionais devem estar aptos para identificar e referenciar as crianças que demandam intervenção, nos casos em que há sintomas indicativos de autismo, psicose, ou neuroses mais severas" (p. 31).

Essa consideração está em consonância com estudos internacionais que apontam a necessidade do rebaixamento da idade diagnóstica, realização de encaminhamentos e intervenção oportuna nesses quadros, por meio da detecção, nos dispositivos de saúde pública, dos primeiros sinais de risco e de tendência à instalação de distúrbios psíquicos graves. Para isso, sublinham a necessidade de formação dos profissionais da área da saúde (Mandell, Novak e Zubritsky, 2005; Pinto Martins et al., 2005; Barbaresi, Katusic e Voigt, 2006; Dosreis e Weiner, 2006; Holzer et al., 2006; Myers e Johnson, 2007, Inglese, 2009).  

No Brasil, algumas pesquisas revelam a precariedade das habilidades e competências apresentadas por profissionais encarregados pela avaliação do desenvolvimento infantil em unidades de saúde (Figueiras et al. 2003; Nóbrega et al., 2003; Figueiredo e Mello, 2003; Braga e Ávila, 2004; Vasconcelos et al. 2009;  Oliveira e Cadette, 2009). Portanto, a possibilidade de fazer valer o que as políticas prevêem em termos da saúde da criança passa pela formação dos profissionais da área para detectar problemas de desenvolvimento, entre eles os que concernem à constituição psíquica - tema a respeito do qual a psicanálise tem algo a dizer.

Atualmente, nas avaliações do desenvolvimento, priorizam-se os marcos motores e neurológicos (Wanderley, Weise e Brant, 2008; Carvalho et al., 2008). Contudo, a abertura do profissional aos possíveis sinais de risco ou tendência psicopatológica na criança inclui a consideração de aspectos outros, como a relação dela com o seu cuidador. Nessa direção, a pedido do Ministério da Saúde e com apoio da Fapesp e do CNPq,  um Grupo Nacional de Pesquisadores (GNP)1 criou 31 Indicadores Clínicos de Risco para o Desenvolvimento Infantil (IRDI) com base em conceitos psicanalíticos, da psicologia do desenvolvimento e da neurologia. Esses indicadores balizam a observação de crianças de até 18 meses de vida, e da relação destas com suas mães, em consultas pediátricas (Lerner e Kupfer, 2008). A ausência de dois ou mais indicadores apontam possíveis riscos ou tendência de problemas psíquicos ou de desenvolvimento, abrindo a possibilidade para intervenções oportunas.

Além de validar a capacidade de predição de risco para o desenvolvimento do protocolo, o estudo constituiu-se na primeira experiência de formação de pediatras para o uso do protocolo IRDI, conduzida em 2003 pela coordenação do GNP. Abordando principalmente o tema da constituição do bebê, a formação visava "sensibilizar os pediatras para a idéia de que alguns aspectos do desenvolvimento decorrem de operações subjetivantes fundamentais em curso na primeira infância, de forma que problemas de desenvolvimento podem ser evidências de problemas nas ditas operações" (Lerner, Crespin e Kupfer, 2011). Também se visava possibilitar intervenções anteriores à instalação efetiva de um quadro psicopatológico e a conseqüente minimização de seus efeitos.

A experiência de formação foi realizada em dois encontros, com intervalo médio de oito meses, contando com a participação de cerca de 90 pediatras de 11 centros de saúde de 9 cidades brasileiras. Alguns psicanalistas acompanharam tanto a formação quanto a aplicação do protocolo pelos pediatras, como monitores. Eram incentivadas as articulações entre o que estava sendo exposto para os pediatras e sua experiência clínica. (Lerner, Crespin e Kupfer, 2011).

Fundamentadas em pressupostos da teoria psicanalítica, as pesquisas que utilizam os IRDIs convocam áreas do conhecimento como a pediatria, a psiquiatria, a enfermagem, entre outras, numa tentativa de diálogo entre psicanálise e saúde pública que se por um lado é produtiva, por outro não deixa de colocar impasses teóricos que merecem discussão2. Um deles aproxima-se da intersecção entre Psicanálise e Educação, ao referir-se à forma como pode se dar a transmissão de princípios advindos da psicanálise a um campo que lhe é externo, como a medicina, e mais especificamente, à saúde pública – com toda a coletividade aí abarcada, em contraste com a particularidade que a teoria psicanalítica põe em cena.

Ao propor um dispositivo clínico-ético de formação para professores, Almeida (2006) aposta na possibilidade de uma transmissão da psicanálise em extensão (situações de ensino, divulgação e difusão), desde que algumas condições mínimas sejam criadas. Uma delas seria a finalidade de uma tal proposta: a promoção de uma mudança subjetiva nos participantes, em sua relação com os ideais e com o real de sua prática – em lugar da angústia, uma criação, um prazer.

É frente a este desafio que se situa um novo ciclo de formação, dessa vez voltado a profissionais de enfermagem. Trata-se da pesquisa "Detecção precoce de riscos para transtornos do espectro de autismo com Indicadores Clínicos de Risco para o Desenvolvimento Infantil e intervenção precoce: capacitação de enfermeiros para o trabalho em unidades básicas de saúde". A partir dela se dará seguimento aos ajustes formulados no protocolo IRDI para medir sua sensibilidade na detecção de riscos para os transtornos do espectro de autismo.

No contexto de delineamento dessa nova etapa, o presente trabalho tem como objetivo levantar uma discussão acerca do que pode ser gerado a partir do encontro da psicanálise com a área da saúde no que tange à formação profissional e a uma eventual transmissão de noções psicanalíticas para quem pouco ou nada sabe da psicanálise. Nossas indagações referem-se à possibilidade de uma sedimentação das experiências de formação de profissionais da saúde para a utilização dos IRDIs, remetendo-nos para isso à formação dos pediatras ocorridas em 2003. Nossas questões norteadoras foram: Houve a apropriação de um saber por parte dos profissionais que passaram pela capacitação do projeto IRDI? Como se deu essa apropriação e como este saber comparece na prática destes profissionais? Seria possível localizar seus indícios?   

O método que utilizamos foi a análise do discurso de uma entrevista com um pediatra que participou da capacitação do IRDI em 2003.  Assim, se as indagações acima ainda apontam para o âmbito da coletividade, é porque esperamos que nos guiem na discussão sobre caminhos e desafios para a próxima iniciativa de formação de profissionais da saúde, embora sejam discutidas à luz de uma experiência particular. 

 

Psicanálise e medicina: que tipo de afetação?

Se por um lado a análise da entrevista mostrou os efeitos da formação IRDI para a prática pediátrica,  por outro, explicitou a influência da formação médica, técnica e especializada, na forma como os indicadores foram assimilados, revelando o peso da história das práticas dos cuidados com o bebê.

Para nosso entrevistado, o contato com os indicadores se deu no contexto da pesquisa IRDI em 2004,  quando fazia parte da equipe do ambulatório do hospital em que trabalha - setor em que permaneceu até 2006.  A experiência é descrita por ele como uma "ampliação da visão" para a avaliação da criança e a aquisição de um olhar para a "interação da criança com a mãe".  Isso porque segundo ele, historicamente sempre fez parte da educação, do treinamento do pediatra, uma avaliação objetiva do desenvolvimento infantil, focando principalmente os ganhos motores do bebê e seu  desenvolvimento neurológico. Sublinhamos, contudo, que a influência de marcas como a trajetória pessoal e o caminho profissional, incluindo subespecialidades, imprime uma conformação específica a essa alegada ampliação da visão sobre a criança.

Além da residência em pediatria, o entrevistado possui especialização em duas áreas marcadas pelas situações de cronicidade ou urgência.  Na enfermaria, recebe pacientes provenientes do Pronto Socorro ou da Unidade Intensiva de Tratamento (UTI) que, segundo ele, já chegam com uma determinada doença, estabelecida ou identificada nesses dois setores. Seu percurso do ambulatório à enfermaria, somado à suas subespecializações, parecem acentuar a centralidade da doença em sua prática, à medida que marca seu lugar institucional, cuja função é a de iniciar ou manter um tratamento, dependendo da doença do paciente.

O entrevistado também acentua o caráter coletivo da intervenção, ao se referir aos procedimentos que são realizados com o paciente, da entrevista à progressão de tratamento. Em seu relato, o acento do trabalho da equipe – implícito, como ele próprio revela, no uso freqüente do pronome "a gente" - indica uma fala ancorada na pertinência ao grupo institucional, não cedendo espaço a sua subjetividade na constituição da cena em que, no caso do IRDI, o par mãe/bebê é considerado.

À formação atual do pediatra, influenciada pela crescente especialização e expansão dos conhecimentos, o entrevistado contrapõe a formação de "antigamente", na qual o profissional fazia o papel de médico, nutricionista, psicólogo, "de absolutamente tudo", segundo suas palavras. Para ele, o âmbito em que a prática de uma clínica mais aprofundada pode se manter nos dias é no consultório particular.  Assim, embora levada em consideração, uma prática mais sensível às questões psíquicas acaba sendo reduzida  a um setting específico, sendo considerada ao mesmo tempo uma clínica diferenciada e a invasão de outros saberes estabelecidos. Não parece haver um enlaçamento entre um novo saber e o conhecimento prévio que produza algo diferente, que não tenha sido, em sua visão, já pertencente a uma outra especialidade. Que visão de clínica estaria implícita aqui? E como ela se articula com os indicadores, cuja proposta é a de implicar o profissional da saúde na detecção de distúrbios do laço social, a partir de sua própria prática? 

 

Entre a doença e os "hábitos", que lugar para os  IRDIs?

A formação prévia do profissional também deixa a sua marca na relação que o entrevistado estabelece com a clientela. A divisão do paciente quanto a aspectos orgânicos, psíquicos, de desenvolvimento e relacional - conseqüência da segmentação do conhecimento - dificulta uma implicação com a ordem do sujeito do desejo.  Em momentos nos quais o profissional tende a considerar outra possibilidade de tratamento que não o das doenças orgânicas identificadas, o que poderia abrir a uma consideração referente ao IRDI, seu discurso segue outra direção, persistindo no âmbito orgânico da doença (uma anemia, um chiado no peito...).

Importante sublinhar uma interrupção no discurso ao mencionar a palavra "desenvolvimento" e no retorno da fala, com a evocação de "questões secundárias".Isto é, enquanto o principal parece ser a doença orgânica,  o desenvolvimento é o secundário. Seriam aspectos de ordens distintas, cujas possíveis relações não parecem ser consideradas.  Entre outras questões secundárias consideradas na enfermaria, são citadas "uma anemia, uma desnutrição, uma criança com erro alimentar". O trecho em questão mostra que a preocupação do profissional com a criança-paciente converge para o aspecto orgânico, considerado o objetivo focal sobre o qual o médico deve se debruçar. Os demais aspectos são considerados como objetivos secundários no contexto do atendimento.

Também é possível localizar no discurso acisão entre o que o entrevistado considera a doença da criança e o que entende que os IRDIs avaliam.  Ele relata uma dificuldade para avaliar se a criança está numa determinada condição (chorosa, muito apegada à mãe...) por estar doente ou por uma questão de "hábito". Não considera, portanto, que doenças e condições de sofrimento psíquico podem estar relacionados. Trata-se de um pensamento causalista: o que provoca o comportamento da criança, a doença orgânica ou aquilo que o IRDI avalia, "uma coisa habitual, usual"? Os comportamentos ficariam divididos segundo a causa: doença ou hábitos.  Nesta visão, o IRDI seria uma ferramenta de avaliação de hábitos.

Uma tal divisão delimita locais para a utilização dos indicadores. Dada a emergência que caracteriza o cenário institucional da enfermaria, não haveria a abertura para o âmbito do sofrimento psíquico integrado à condição geral da criança que o IRDI almeja. Tal cisão entre lugares propícios ou não ao uso dos indicadores aponta para uma divisão do sujeito na instituição e entre suas questões psíquicas e orgânicas.  Nessa perspectiva, que lugar haveria para a suposição de relações entre um sintoma em construção pela criança que chega à enfermaria e a condição vincular com seus cuidadores? Ou seja, que lugar para o sujeito?   

 

A paternidade como via de produção de um saber singular.

É em meio a este contexto da doença como questão predominantemente orgânica que a formação do IRDI se situa, mantendo como desafio gerar uma incidência outra na prática profissional.  Em relação ao pediatra entrevistado, o modo como os indicadores incidiram em seu trabalho remete ao peso do discurso científico fragmentado e da técnica, embora a via de uma experiência pessoal pareça ter criado uma abertura para uma apropriação singular. 

Os indicadores foram considerados pelo entrevistado como um item a ser cumprido por motivos institucionais e contribuição com a universidade e como uma ferramenta a mais de trabalho, um plus para se obter uma visão mais completa da criança:   insistência da associação do IRDI com um  "a mais" para a prática deixa entrever que o cerne do discurso científico fragmentado se mantém após a formação IRDI; mais do que isso, os indicadores são assimilados por um modo de fazer por acréscimos e sobreposição de tarefas e conhecimentos que pretendem dar conta da totalidade da criança.  Nota-se, entretanto, uma ambivalência entre a tentativa de dar um lugar à questões menos objetivas que seriam, segundo ele, afeitas à pediatria, e a objetividade que o médico "gosta de ter".

Por meio dos trechos analisados, percebe-se que os indicadores foram tomados pelo pediatra de forma a considerá-los como passíveis de avaliarem uma condição sintomática vincular sem relação com outras condições sintomáticas do âmbito organogênico. Contudo,  pode-se dizer que o curso de formação causou algum impacto no entrevistado, o que se evidencia quando ele consegue recuperar alguns dos indicadores, como aqueles relacionados à observação de elementos como o olhar e à fala (manhês) na relação mãe-bebê.

Ademais, uma maior incidência dos IRDIs sobre ele, que possa ter gerado efeitos de reposicionamento, parece ter ocorrido em relação aos indicadores ligados à função paterna, os quais ele citou com maior freqüência.  Provavelmente, isso se deveu ao fato de o saber implicado nos indicadores relativo à constituição do psiquismo do bebê por meio do laço com seus cuidadores, principalmente pai e mãe,  encontrar ressonância com a vivência da paternidade pelo entrevistado, pouco tempo após a sua participação na pesquisa multicêntrica. A associação entre as duas experiências é feita por ele, que chega a brincar com o fato de que talvez "precisasse passar pela formação antes de ser pai". 

Esse tipo de associação, tentando dar um novo sentido às duas vivências, não seria justamente o que uma transmissão orientada pela psicanálise possibilita? Ou seja, uma apropriação singular do saber, que passa sempre pelas questões do desejo de quem se submete a essa transmissão? Mesmo que a resposta seja positiva, resta a questão acerca de como isso comparece na prática profissional. Autores que utilizam uma abordagem clínica de orientação psicanalítica aplicada à análise de práticas profissionais (em especial de professores) consideram como uma das premissas de tal estratégia a articulação entre o profissional e o pessoal, segundo discussão e revisão sobre o tema  (Almeida, 2009).

 

Os IRDIs e a prática pediátrica

Qual teria sido, então, a conseqüência da formação IRDI para a atuação profissional de nosso entrevistado? Segundo ele, antes de conhecer os indicadores, a relação mãe-criança era avaliada segundo o grau de importância dado ao "problema identificado na criança". Ou seja, não se referia propriamente à interação entre ambas, mas à interação entre a mãe e a doença da criança, o quanto ela subestimava ou supervalorizava sua doença.Com a avaliação IRDI, algumas observações que já ocorriam ganharam novo sentido: do neurológico, passou ao âmbito do "psicológico".

Outra mudança importante refere-se ao posicionamento do pediatra na consulta. Por meio de um tropeço na língua, descortinou-se algo da relação médico-paciente após a formação IRDI, a qual ele passa a elaborar, situando-a numa perspectiva menos tecnicista, associada ao prazer.  Ele se diz mais à vontade em sua prática e na relação com os pacientes.

Sua fala  explicita, em suma, uma nova relação com o saber médico, o que pode sugerir um enlaçamento possibilitado pela formação IRDI.  Embora a capacitação proposta pela Pesquisa Multicêntrica não tenha seguido um enquadre clínico, a exemplo do que propõe Baietto e Gadeau (2002, apud Almeida, 2009) para a área da educação, talvez seja possível afirmar que alguns efeitos deste enquadre podem ter sido mobilizados, como uma "passagem entre duas maneiras de se referir à prática: uma, técnica, "douta", apoiada no conhecimento e a outra mais despojada do saber do "perito", do expert, na qual o sujeito se engaja de modo diferente na sua maneira de dizer e de escutar". 

 

Considerações finais

Embora tenham sido localizados na fala do entrevistado efeitos importantes da formação IRDI – alguns inesperados ou imprevistos – um dado importante a ser considerado é o de que para além do tempo "a mais" que diz ter passado a gastar,  o entrevistado afirmou não conseguir se lembrar de possíveis encaminhamentos ou mudança de hipóteses influenciadas pelos indicadores em seu trabalho. O tempo a mais gasto pelo pediatra não é pouca coisa, e muito menos a incorporação de um prazer no trabalho, em oposição a uma relação puramente técnica, bem como o enlaçamento de uma vivência pessoal como a paternidade - com a inequívoca marca deixada pelos indicadores ligados à função paterna.      

Porém, como gerar uma extensão dos efeitos à prática profissional, possibilitando encaminhamento ou uma reflexão que não represente uma cisão entre o conhecimento prévio e o novo saber?  É a necessidade deste novo passo que esta pesquisa parece apontar e que permanece em aberto.

No âmago de nossa discussão está a questão sobre a possibilidade e as características necessárias a uma experiência de formação em saúde pública que, orientada pela psicanálise, provoque a produção de um saber acerca da constituição humana. Uma pista nos é dada por Mezan (2002), ao alertar que a formalização lógica da teoria psicanalítica é diferente de um estudo psicanalítico da psicanálise. Enquanto a primeira corresponde ao aprender, o segundo corresponde ao apropriar-se. Embora focalize a formação em psicanálise para psicanalistas, nos interessa a discussão sobre uma prática pedagógica que funcionaria em favor da apropriação. Esta não impõe uma determinada leitura, mas suscita e colabora para a criação, um "modus operandi que sirva como instrumento para formular e dar conta de sua própria maneira de pensar e trabalhar" (p.202).  

 

REFERÊNCIAS

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1 Grupo de experts reunido por  Maria Cristina Machado Kupfer, do IPUSP, para construir o protocolo de indicadores e para conduzir a pesquisa multicêntrica em seus diferentes centros. O grupo foi constituído por Leda M. Fischer Bernardino, da PUC de Curitiba, Paula Rocha e Elizabeth Cavalcante, do CPPL de Recife, Domingos Paulo Infante, Lina G. Martins de Oliveira e M. Cecília Casagrande, de São Paulo, Daniele Wanderley, de Salvador, Lea M. Sales, da Universidade Federal do Pará, Profa. Regina M. R. Stellin, da UNIFOR de Fortaleza, Flávia Dutra, de Brasília, Otavio Souza, do Rio de Janeiro, Silvia Molina, de Porto Alegre, com coordenação técnica de M. Eugênia Pesaro, coordenação científica de Alfredo Jerusalinsky e coordenação científica nacional de M. Cristina M. Kupfer.
2Para uma discussão aprofundada sobre o encontro esses dois saberes, ver a tese de Maria Eugenia Pesaro: "Alcance e limites teóricos-metodológicos da pesquisa multicêntrica de indicadores de risco para o desenvolvimento infantil" (IPUSP, 2010).