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ISBN 978-85-60944-35-4 versión on-line

An 8 Col. LEPSI IP/FE-USP 2011

 

Desejo e sexualidade na constituição do conhecimento1

 

 

Andréia Tenorio dos Santos

terrandreia@gmail.com

 

 


RESUMO

A discussão proposta por este artigo se insere nos campos de estudos da psicanálise e da educação, tendo por objetivo investigar e refletir, sob um viés psicanalítico, acerca da origem da atividade intelectual, isto é, busca investigar como alguém pode chegar ao conhecimento. Para isso, estabelece, tal como posto por Freud (1909), uma íntima relação entre curiosidade sexual e curiosidade intelectual, evidenciando, assim, uma relação entre desejo, sexualidade e conhecimento.

Palavras-chave: psicanálise e educação; curiosidade; sexualidade; conhecimento, castração.


 

 

A pergunta crucial

Que venha o que vier, mas minha origem, por humilde que seja, eu quero conhecer! (...) Tal é minha origem; nada mais poderá modificá-la. Por que, pois, haveria eu de renunciar a descobrir o segredo de meu nascimento?
Sófocles, Édipo Rei

Ninguém saberá de nada: o que sei é tão volátil e quase inexistente que fica entre mim e eu.
Clarice Lispector

A atividade de conhecimento não cessa de se relacionar com um enigma. "O ato de conhecer ocorre sobre o fundo de um drama particular do sujeito" (2006, p. 38), traz Voltolini, numa remissão a Freud. Um ato de conhecimento não poderia, então, ser considerado equivalente a um ato de conhecer-se? Um AUTOrizar-se de si? Um ATOrizar-se? Pôr em ato algo da ordem de um enigma?

Na primeira epígrafe deste artigo, está Édipo a reclamar por sua origem: "Por que, pois, haveria eu de renunciar a descobrir o segredo de meu nascimento?". E, na sequência, está Clarice a responder-lhe: "Ninguém saberá de nada: o que sei é tão volátil e quase inexistente que fica entre mim e eu".

A pergunta de Édipo é a pergunta crucial, a pergunta das origens, aquela que põe em marcha o pensamento de uma criança. Freud, no texto As teorias sexuais das crianças (1908), aponta a chegada de um irmão como fator fundamental para que uma criança se lance em sua pesquisa sobre os problemas da sexualidade:

O desejo da criança por esse tipo de conhecimento [os problemas sexuais] não surge espontaneamente, em consequência talvez de alguma necessidade inata de causas estabelecidas; surge sob o aguilhão de pulsões egoístas que a dominam, quando é surpreendida – talvez ao fim do seu segundo ano – pela chegada de um novo bebê. (Freud, 1908, p. 193)

"De onde vêm os bebês?" e suas variações "De onde vim, pra onde vou?" e "Como advim como sujeito desejante?" apontam para o horizonte enigmático do desejo. O que está em xeque na pergunta das origens é exatamente saber sobre a origem do desejo. É sobre o desejo que se pergunta Édipo e é sobre o desejo que nos perguntamos todos.

A criança, em função da chegada de um irmão ou de um terceiro que desestabiliza seu lugar no desejo inconsciente da mãe, descobre que nasceu porque alguém desejou, constatando com isso que "sua vontade não é reguladora do movimento do mundo" (Dunker, 2006, p. 45), ou seja, o mundo não gira em função de seus desejos. Assim, pensaria ela: "se não sou eu quem controla, também não controlo o desejo dos meus pais, logo estes podem deixar de me desejar". Isso certamente desmonta o mundo da criança e a pulsiona a pesquisar sobre a origem dos bebês, não  por  uma  simples  curiosidade,  mas,  sim,  movida  "sob  o  aguilhão  de  pulsões  egoístas", simplesmente para evitar que eles voltem a surgir e atravancar seu caminho.

 

As fabulosas teorias sexuais das crianças e o confronto com a castração

Freud observa que, imbuída de descobrir a origem dos bebês, uma criança, quando não foi demasiadamente intimidada, dirige-se a um adulto - em sua concepção dono de todo saber e verdade - e faz-lhe diretamente a pergunta que não cala: "De onde vêm os bebês?". Esta, por sua vez, é respondida de maneira evasiva; a criança é às vezes repreendida por sua curiosidade; ou a ela é dada a explicação de que 'As cegonhas trazem os bebês'.

Esta afirmação do adulto transforma-se, para a criança, em uma interrogação. Ela desconfia disso e interroga-se: 'As cegonhas trazem mesmo os bebês? - um enigma a ser decifrado em absoluto segredo:

De um grande número de informações que reuni, deduzi que as crianças se recusam a crer na teoria da cegonha e que, a partir dessa primeira decepção, começam a desconfiar dos adultos e suspeitar que estes lhes escondem algo proibido, passando como resultado a manter em segredo suas investigações posteriores. (Freud, 1908, p. 194)

Assim, tomadas pela excitação pulsional que vivem em seu corpo, as crianças começam a teorizar sobre a sexualidade e, aos poucos, vão construindo seus próprios conhecimentos. Por nutrirem uma especial desconfiança pelo que lhe dizem os adultos a respeito de como nascem os bebês, as crianças se põem a elaborar em segredo suas próprias teorias acerca da sexualidade: todos os seres, homens ou mulheres, têm um pênis; os bebês são gerados em função da ingestão de algo e vêm ao mundo pelo ânus; a relação sexual tem sentido sádico. Todas essas teorias encobrem a castração pois negam a diferença sexual, e todas fracassam.

O fracasso das teorias sexuais infantis é motivado pela imaturidade sexual das crianças, já que todas elas são concebidas sob a influência dos componentes da pulsão sexual, isto é, com base naquilo que a criança experimenta nas fases oral, sádico-anal e fálica de sua organização sexual.

As  crianças  pensam  com  o  corpo,  elas  sentem  no  próprio  corpo  as  teorias  que  criam. "Estas  são  teorias  sexuais  pelas  quais  as  crianças  sentem  uma  predileção  de  caráter  pulsional" (Kupfer, 1990, p. 39). Porém, suas teorias fracassam, pois as crianças desconhecem em seu próprio corpo a vagina e o sêmen – as peças que faltavam para completar o quebra-cabeça. O fracasso dessas teorias põe a criança em contato com a castração.

Dunker, no artigo Discurso e narrativa na construção do saber sexual (2005), traz contribuições interessantes ao pensar essa desconfiança das crianças para com os adultos como uma possibilidade de inauguração da criança na posição de autor de um discurso. É por desconfiar do que lhe diz o adulto que a criança cria suas próprias teorias. Assim, a criança

não é apenas agente deste discurso, no sentido de ocupá-lo como um personagem, nem como ator, mas fundamentalmente como autor. Para tanto ela precisa duvidar do Outro, reconhecê-lo como alguém que não é simplesmente uma figura caridosa interessada em lhe transmitir saber. Ou seja, essa experiência primária do "adulto enganador" permite uma descoberta crucial: há saberes verdadeiros e outros falsos, saber e verdade estão separados. (Dunker, 2005, p.147)

Nesse sentido, propomos que esse movimento da criança de construir suas próprias teorias acerca da sexualidade, ignorando as explicações que lhes dão os adultos sobre a origem dos bebês, seja um movimento de AUTOrizar-se de si, ATOrizar-se, pôr-se em ato. "A criança confronta o discurso do adulto em uma investigação própria, onde suas cartas não serão mostradas ao adversário. (...) Uma investigação da qual ela se faz agente justamente pela exclusão do Outro" (DUNKER, 2005, p.148).

É nessa posição de agente, daquela que atua, daquele que se coloca em cena e produz efeitos, que a criança se apresenta na elaboração de suas teorias. O efeito maior é a "produção" de uma ficção, a ficção de um sujeito: A ficção do si mesmo, como aponta o título do livro de Costa (1998).

Aqui retorna a fala de Voltolini (2006) sobre o ato de conhecimento ocorrer sob o "drama particular do sujeito". É, em seu drama particular (por exemplo, descobrir de onde veio o novo bebê para evitar que isso volte a ocorrer) que o sujeito infantil é convocado a iniciar-se na construção do si mesmo e de si mesmo, a pôr-se em cena na sua própria invenção. O conhecimento se dá, quando em função de seus conflitos e questões pessoais, o sujeito é convocado a atuar, a agir. É no embate com a castração que o sujeito infantil é convocado a inventar-se, a produzir conhecimento sobre si e sobre o mundo.

Essa invenção leva a questão do conhecimento para a dimensão do mito, colocando em evidência aquilo que Voltolini chamou da dialética do "primado do eu sobre o objeto", pois, assinala ele, "antes de tendermos para o mundo é para fazer o mundo tender para nós que operamos" (2006, p. 39). Haveria aí, segundo o autor, a dialética formulada por Freud com os conceitos de princípio de prazer e princípio de realidade.

O original da abordagem de Freud na questão do conhecimento: ele não serve para nos fazer adaptar a uma realidade com tal, mas serve sim para adaptar uma realidade, não sem limitações, ao que queremos fazer dela. (Voltolini, 2006, p. 38)

Haveria, portanto, uma razão de conveniência no ato de conhecer. Isso implicaria dizer que o não conhecer (ou não querer saber) também pode seguir essa lógica. Se não é conveniente para uma criança conhecer algo, se esse não conhecer puder evitar algum desprazer, sofrimento ou conflito, ela poderá se negar a querer saber. Aqui, é possível fazer menção a Sara Paín (1987) no que tange à ignorância como função. A ignorância, não como um distúrbio ou como uma disfunção, mas, sim, o contrário, isto é, como a manifestação de um saber o saber inconsciente – o qual se coloca a serviço da verdade do sujeito, uma verdade da qual nada sabe o sujeito. Portanto, um sujeito busca conhecer ou não se dispõe a tal movimento para amenizar conflitos ou livrar-se deles, o movimento de conhecimento é sempre narcísico.

Mas, para que a questão mesma do conhecimento se apresente ao sujeito, é fundamental que esse narcisismo tenha sido construído. E é através da mãe, de sua vinculação com seu bebê, que uma "ordem" narcísica se impõe; que o infans (aquele que não fala) poderá tornar-se uma criança (aquela que acede ao campo da linguagem e da palavra) e ter a possibilidade de constituir-se como sujeito desejante no seu processo de estruturação psíquica. Isto é, para que o infans advenha sujeito desejante é fundamental uma sujeição, uma submissão à linguagem, ao Outro.

É num processo de assujeitamento (alienação) ao desejo do outro (a mãe) que o infans terá ou não condições de advir sujeito. Porém, essa alienação do infans ao desejo materno não pode ser toda, com riscos de não advir sujeito algum, isto é, de ele ser abocanhado pelo desejo materno e nele ficar aprisionado sem poder desejar. O pai, trazendo consigo a lei da interdição, separará o infans do corpo e do desejo maternos. O pai, quando traz consigo o não, veiculando a função simbólica, barra não só o bebê como também a mãe. O bebê não pode aceder ao corpo materno, e a mãe não pode querer que corpo do bebê volte a ser parte do seu corpo.

Sinteticamente podemos entender que o desejo do bebê é continuar sendo objeto de desejo da mãe. O pai, então, deve entrar nessa relação dual (mãe-bebê) para interditá-la. É isso que ele faz ao enunciar com gestos e palavras que a mãe lhe pertence, isto é, que a mãe é o objeto de desejo dele e que ele (o pai) é objeto de desejo dela; assim, impõe ao filho e à mãe a lei máxima da interdição: a lei universal da proibição do incesto, a lei organizadora do Desejo.

Para Freud (1900), o desejo está ligado a uma mítica vivência de satisfação absoluta: um momento mítico em que nos sentiríamos completos. Lajonquière (2007) nos ajuda a compreendê-la:

O recém-nascido, em estado de total desamparo, experimenta uma necessidade. Esta instala no organismo uma tensão, submergindo-o numa comoção generalizada ao ponto de colocar em perigo sua própria integridade. Nessas circunstâncias, o até então organismo grita, e a mãe (ou qualquer outro), acudindo em seu auxílio, transforma essa manifestação inintencional numa demanda de alimento no instante mesmo em que o acolhe em seus braços e lhe oferece o seio. Assim, o grito se faz demanda e a criança passa de um estado de total inanição à satisfação completa. O gesto do adulto é a todas as luzes significante, isto é, recorta, põe ordem "grampeando" uma significação aí onde antes só reinava a pura indiferenciação orgânica. Mais exatamente: aí onde nada havia, a primeira experiência ou vivência de satisfação inscreve a diferença entre o "nada" e o "tudo" [inscreve o desejo]. A marca deixada toma a forma de um traço mnêmico que faz às vezes de pedra fundacional de todo o aparelho psíquico. (p.155)

Essa primeira vivência é bastante significativa, pois ela marca o recém-nascido, deixando-lhe um traço mnêmico que sobredeterminará suas experiências posteriores. A cada momento que ele sentir-se em iminente estado de tensão haverá em sua memória uma (re)ativação do traço mnêmico originário de prazer; ele está condenado a viver para sempre em busca de um objeto que, de fato, nunca existiu.

A partir da primeira vivência, o recém-nascido "entende" que sempre há de existir um objeto (algo ou alguém) capaz de retirá-lo de um estado de tensão e supri-lo integralmente. No entanto, nas próximas ocasiões, a satisfação primeira não se repetirá, porque não é possível haver algo ou alguém que o satisfaça sempre na medida exata.

Esta impossibilidade de satisfação faz o recém-nascido experimentar uma falta; abre nele um eterno "estar em falta" que o impulsiona a buscar objetos que supram essa falta. Em psicanálise, esse "'estar em falta' chama-se desejo (Wunsh) e o objeto que o causa com sua falta chama-se em Freud, a coisa (das Ding) e, em Lacan, objeto 'a' (l'object petit a)" (LAJONQUIÈRE, 1992, p.156). Dessa forma, a falta (de objeto) abre caminho para o Wunsh. O desejo aponta então para a uma experiência passada (e mítica), na qual um mítico objeto se perdera. Embora esse objeto nunca tenha existido de fato, a partir de então, a busca por ele é contínua.

Cabe aqui uma remissão a um conceito caro à psicanálise, o conceito de pulsão. Freud, no texto Pulsões e Destinos da Pulsão (1915), traz sua célebre definição para pulsão (Trieb):

A "pulsão" nos aparecerá como um conceito-limite entre o psíquico e o somático, como representante psíquico dos estímulos que provém do interior do corpo e alcançam a psique, como uma medida da exigência de trabalho imposta ao psíquico em consequência de sua relação com o corpo. (p. 148)

Pelo exposto, a pulsão está no "entre": entre o corpo e o psíquico, isto é, apresenta-se nos dois lugares, mas, ao mesmo tempo, em nenhum deles especificamente. Ela é aquilo que do corpo afeta o psíquico e por isso nele estará representado como força contínua. Parece ser que a pulsão se manifesta na medida em que estímulos originados no corpo, por sua grande intensidade, passam a agir como pressão (força) no aparelho psíquico impulsionando-o a trabalhar. Então, a pulsão pode ser entendida como estímulos internos que impõem trabalho ao psiquismo. Mas, como coloca Freud (1915), não é exatamente a pulsão que age no psiquismo, senão suas representações sob forma de afetos.

A pulsão é uma construção teórica que não prescinde do apoio biológico – já que a fonte da pulsão é biológica – mas se faz nitidamente independente desse plano quando institui a necessidade de ser representada pelas identificações. Ou seja, não há simplesmente uma maturação de instintos em jogo, é preciso que intervenham experiências com outras pessoas para que a pulsão seja construída e revele sua eficácia no plano psíquico. A pulsão, como diz Godino é "pilotada" pelos outros, já que, no princípio, uma criança é indefesa na busca dos objetos necessários à sua satisfação. (Kupfer, 1990, p. 12)

É graças ao contato com os outros, em especial com a mãe, que se construirão as primeiras representações que levarão à "satisfação" da pulsão, o que impulsionará à busca de objetos de satisfação. Assim, Kupfer (1990) coloca:

Para que o alvo [da  pulsão] seja atingido, torna-se  necessário  ir "buscar" um "objeto" através do qual se possa obter a "satisfação" (...). A busca de objetos (...) pode existir em parte graças à construção das identificações, uma espécie de "acervo" que o sujeito adquire no contato com os outros, ao longo de seu processo de estruturação, (...) que o "ensina" como ir buscar o objeto, para onde dirigir a energia produzida pela fonte. (p. 11)

Ficamos sabendo, portanto, que o processo de estruturação de um sujeito se dá no contato com o outro, na vinculação da mãe com seu bebê. É graças ao investimento desejoso dos outros (pais) sobre o bebê que será possível a construção das identificações. Graças às identificações que a pulsão pode atuar, isto é, que haverá a construção da sexualidade.

O conceito de pulsão está diretamente relacionado ao conceito de sexualidade. Na psicanálise, a sexualidade está relacionada à busca de objetos de satisfação. O que quer a pulsão sexual é satisfazer-se. Assim, pra ela, não importa tanto o objeto, mas sim que, por meio desse objeto ou qualquer outro de sua escolha, ela possa atingir seu alvo (objetivo): a satisfação, a eliminação do desprazer que causado pelas tensões pulsionais. A maior característica, então, da pulsão sexual, da sexualidade é seu caráter perverso-polimorfo.

Popularmente a sexualidade é entendida como o encontro de sexos opostos com vistas à reprodução, isto é, nessa noção há uma necessária ligação entre objeto (sexo oposto) e alvo (reprodução). A sexualidade humana é perversa-polimorfa já que ela não tem objeto específico de satisfação (a satisfação se dá através de diversos objetos e diversos modos) e tem como alvo, não a reprodução, mas o prazer (Freud, 1905). Assim, a psicanálise inaugura uma nova concepção de sexualidade, na medida em que traz para o seu campo as perversões.

A labilidade da pulsão sexual, isto é, sua impossibilidade de satisfazer-se com um único objeto ou de uma única forma, faz o ser humano zanzar pelo mundo em busca de objetos que melhor o satisfaça. Conforme dito anteriormente, a sexualidade é construída numa necessária vinculação entre bebê e mãe. É esta a responsável por lançar a criança a buscar objetos de satisfação e isso se dá através de um enlaçamento pulsional, um circuito pulsional que tem a linguagem como sua grande aliada.

Pensar o circuito da pulsão implica pensar a questão mesma da satisfação pulsional, de seu percurso ao alvo. Segundo Laznik (1991, p. 42), "a satisfação da pulsão não é outra coisa que a execução de um trajeto em forma de circuito que vem se enlaçar sobre o ponto de partida". O circuito pulsional é cíclico. A pulsão se movimenta em círculo, pois do mesmo modo que ela inicia seu percurso numa fonte corporal excitada (e por apoio às funções fisiológicas); para encerrar seu circuito é para o corpo que ela retorna, isto é, ela "encerra" seu circuito buscando como objeto outra fonte corporal que possa satisfazê-la.

Freud "trabalha essa questão do circuito pulsional a partir do sadismo-masoquismo e da pulsão escópica do voyeurismo-exibicionismo" (1997, p. 214), mas Laznik, em seus textos (1991, 1997), nos apresenta uma leitura lacaniana da instauração do circuito pulsional. Segundo ela, no Seminário XI: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1964), Lacan trabalha detalhadamente o circuito pulsional descrito por Freud, introduzindo, no entanto, a noção do "surgimento do sujeito da pulsão" (1997, p. 214), o qual faz parte da conceitualização de Lacansobre a pulsão:

A pulsão não é mais um conceito de articulação entre o biológico e o psíquico mas sobretudo um conceito que articula o significante e o corpo. Porém esse corpo não é organismo, é uma construção que implica uma imagem totalizante, i(a), em cuja composição o olhar do Outro desempenha um papel importante. (Laznik, 1997, p. 214)

O olhar pode, aqui, ser entendido com a simbologia do desejo dos pais sobre seus filhos. A criança, no princípio, se agarrará (alienará) no olhar da mãe para ocupar um lugar no mundo, pra fazer-se sujeito. Na constituição do sujeito, o olhar não remete a um dos quatro sentidos propriamente dito, mas é, antes de tudo, uma metáfora para o desejo, para isto que nos edifica como sujeito do desejo. É o olhar do Outro enquanto linguagem que nos constitui como sujeitos de linguagem. Um bebê só pode saber de si pelo outro. Se a mãe não lhe enuncia "Tu és meu filho", não há como um principiante "não-ser" tornar-se um "ser". É através da mãe que o bebê (esse não-ser) poderá formar uma imagem de si e então formar-se sujeito.

Na teoria psicanalítica a constituição do sujeito se dá por meio de duas "encruzilhadas lógicas": O estádio do espelho e o complexo de Édipo. É através da primeira encruzilhada que se dá o início de todo o enlaçamento pulsional que fará alguém advir sujeito.

De forma sucinta, podemos entender o estádio do espelho como um "momento" em que graças à presença da mãe, o bebê tem a chance de sair de um estado de indiferenciação (onde só há dados dispersos ainda não organizados) e passar a um estado de unificação corporal. Kubric (2007) descreve da seguinte forma o estádio do espelho:

Em um primeiro momento, ao ver seu próprio reflexo a criança pequena acredita que se trata de um outro real; em um segundo momento, a criança descobre que o outro do espelho não é real, mas uma imagem; só em um terceiro momento a criança se reconhece, isto é, identifica a imagem que vê como a própria imagem e conquista a representação do corpo como unidade [momento no qual se jubila com a própria imagem]. (p. 92)

O estádio do espelho2 possibilita estruturalmente a formação de uma imagem especular, que consiste no fato de que o bebê, graças ao efeito do olhar materno (metaforizado pelo espelho), se reconhece jubilatoriamente na imagem especular que a mãe lhe propõe como sua. Através da imagem especular, proposta e ratificada pelo outro, o bebê passa a ter uma imagem totalizante de seu corpo e poderá se reconhecer como Eu-especular, podendo a partir daí ter consciência de si, de seu corpo.

Dito de outra forma, a mãe, trocando, alimentando, acarinhando (isto é, erogenizando o corpo do filho), e principalmente falando com ele, inserindo-o no mundo da linguagem, vai lhe dizer que aquele (ele) que está a sua frente, a quem ela se endereça como o "bebê lindo da mamãe" é seu objeto mais precioso porque objeto de seu desejo. O pequeno corpo, ainda puro caos de excitação, ainda num estado de indiferenciação, escuta atentamente essa mãe e aos poucos começa a se identificar, a se reconhecer naquilo que ela lhe diz, isto é, aliena-se à sua fala. Trata-se aí da formação de uma imagem especular, de onde derivará um Eu, um eu alienado ao desejo materno.

Então, quando falamos da "presença" da mãe, "trata-se aqui de distinguir a questão do olhar e a da visão" (Laznik, 1991, p. 32), já que falamos do efeito de seu olhar (de seu falar) sobre o filho. "Trata-se aqui do olhar no sentido da presença; o olho sendo o signo de um investimento libidinal" (Idem).

É, portanto, mais que uma presença física, é, antes, a presença de um olhar investido de libido. Ou seja, não basta que a mãe esteja presente apenas para nutrir seu filho com alimento ou zelar pela satisfação de suas necessidades fisiológicas, é necessário que ela (através de seu desejo) invista libido (vida) neste pequenino corpo (ainda puro organismo).

É a mãe nutrindo seu filho de libido, esse alimento que vai pulsioná-lo à frente, que vai dar condições pra que ele saia de um estado de ser puro organismo e possa ir se modelando corpo, unificando-se. É a libido, a energia das pulsões sexuais, que dá forças (força) aoenlaçamento pulsional, às condições da satisfação pulsional e a uma possível busca de objetos no mundo.

Portanto, todo esse enlaçamento será o suporte para que uma pessoa se lance no mundo do conhecimento, para que ela deseje. Lembremos que a criança, ao querer saber sobre a origem dos bebês, sobre os problemas da sexualidade, está antes apontando para o desejo, para o enigma do desejo. A busca de conhecimento, então, está relacionada, como vimos, a uma questão narcísica, à questão enigmática de querer saber sobre algo que é impossível saber.

Ao criarem suas teorias sexuais, as crianças se põem a pensar, mas suas teorias, ao negarem e esconderem a diferença dos sexos, negam a castração. Segundo Kupfer (1990), "a posição de uma criança frente à castração é decisiva para o seu destino de sujeito sexuado", e desejante. É dependendo de como a criança se depara e lida com a castração que ela, digamos, desejará "mais", "menos" ou "nada", que se configurará ou não uma pulsão de saber.

A curiosidade em saber sobre os problemas sexuais é interditada pela lei do incesto, pela sociedade, pela cultura. Segundo Freud (1905), essa pesquisa sexual, pela força da repressão, poderá ser sublimada numa pulsão de saber. A sublimação, segundo Laplanche e Pontalis (1983), caracteriza-se por ser um:

processo postulado por Freud para explicar atividades humanas sem qualquer relação aparente com a sexualidade, mas que encontrariam o seu elemento propulsor na força da pulsão sexual. Freud descreveu como atividades de sublimação principalmente a atividade artística e a investigação intelectual. Diz-se que a pulsão é sublimada na medida em que é derivada para um novo alvo não sexual ou em que visa objetos socialmente valorizados. (p. 638)

A sublimação vem marcar exatamente um processo de "barragem" da libido contra a satisfação direta da pulsão sexual, que consiste na substituição dos objetos e alvos sexuais, para os quais tendiam a pulsão, por outros não-sexuais, porém, investidos de valor social. Chamamos de dessexualização essa passagem do sexual ao não-sexual; mas deixemos claro de antemão que uma pulsão quando sublimada não deixa de ser sexual, ela continua sendo, pois ela atuará com a energia (a libido) da pulsão sexual, com a diferença de que seus objetos e objetivos não tenderão mais à satisfação pela via sexual propriamente dita, mas pela via da busca de saberes no campo do conhecimento.

Kupfer marca algo bastante interessante quando afirma que o processo de dessexualização não ocorre precisamente sobre a pulsão ou sobre seu objeto ou sobre seu alvo, mas ocorre "basicamente, na troca de objetos, no deslocamento de um objeto sexual para outro não-sexual", isto é, "a operação é dessexualizadora. Na passagem, no vão entre um e outro, está a dessexualização" (1990, p. 63, grifos nossos). O mais importante são os tipos de objetos e de satisfação que se obtém com a sublimação: objetos valorizados socialmente e uma satisfação de ordem narcísica. A ideia principal é que na troca de objeto "a satisfação direta da pulsão é substituída por uma narcísica" (Kupfer, 1990, p. 64).

Freud (1905) localiza a origem da pulsão de saber na florescência da vida sexual da criança, entre os três e os cinco anos e coloca que "sua atividade corresponde, de um lado, a uma forma sublimada de dominação e, de outro, trabalha com a energia escopofílica" (p. 1905 [1915], p. 183). Isso significa que a energia do desejo de ver (a pulsão de ver) e o desejo de domínio (pulsões sadomasoquistas) estão a serviço da pulsão de saber e que esta atua com a energia da pulsão sexual (a libido).

A atividade de conhecer não cessa de se relacionar com um enigma! E esse enigma remete ao desejo e, consequentemente, à castração. "É menos para sobreviver do que pra dominar que pensamos" (Voltolini, 2006). O domínio que se estabelece é sobre uma realidade conflituosa que deverá ser dominada a partir das marcas de nossas preferências, das conveniências narcísicas de cada sujeito. Assim, como dito inicialmente, querer saber ou não querer saber pode ser igualmente conveniente para o sujeito, o que pode ou não resultar ematividade de conhecimento.

Conforme Ferreira, no artigo Algo que se produz como um clarão, "saber e não-saber são fatos de estrutura do funcionamento do aparelho psíquico" (p. 44-45). Assim, temos que considerar a atividade de conhecer não sem levar em conta que ela pode representar o embaraço do sujeito com um saber que lhe é fugidio, "volátil" – como lindamente trouxe Clarice Lispector.

 

Referências Bibliográficas

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VOLTOLINI, R. (2006). Pensar é desejar. São Paulo: Segmento. Revista Educação - Especial: Biblioteca do Professor Freud, 1, 36-45.

 

 

1 Este trabalho se origina das reflexões suscitadas pela pesquisa de iniciação científica "A sexualidade infantil e o desejo de saber: a origem da atividade intelectual nas crianças" que realizamos no período de ago/2009 a jul/2010, na Faculdade de Educação da USP, sob a orientação do profº Dr. Leandro de Lajonquière.
2 O estádio do espelho de Lacan não deve ser entendido como uma fase e nem exatamente como uma real vivência que ocorreria de fato em frente a um espelho também real, mas deve ser visto como uma "encruzilhada estrutural" (Lacan) da subjetividade . A mãe funcionaria como uma espécie de espelho no qual o bebê vê refletida sua imagem, ou melhor, os olhos da mãe são o próprio espelho. Conforme Lajonquière (2007, p. 164), "trata-se de um processo de identificação que possibilita ao sujeito funcionar como Um num sistema de intercâmbios com a mãe, o pai, ou, simplesmente, os outros (os intercâmbios têm lugar no seio do Outro)".