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ISBN 978-85-60944-35-4 versión on-line

An 8 Col. LEPSI IP/FE-USP 2011

 

Um sujeito marcado pela expectativa da deficiência intelectual: aprendizagens possibilitadas pela escuta e pelo conhecimento da própria história

 

 

Carina Streda

 

 


RESUMO

Uma criança, sendo falada desde seu nascimento pelo Outro, constitui-se em um sujeito único, atendendo as demandas daqueles que a cercam. Quando nasce uma criança com síndrome de Down, por ser a síndrome classificada como deficiência intelectual, a cultura supõe nela a incapacidade para aprender ou, ao menos, espera dela um rendimento intelectual abaixo do esperado para uma criança nomeada "normal". Sendo assim, as apostas feitas pelas instâncias responsáveis pelo aprendizado da criança com síndrome de Down aparecem, muitas vezes, marcadas pela aceitação da não aprendizagem como um evento natural. A intervenção com um sujeito com síndrome de Down relatada neste artigo, mostra que, mesmo não tendo sido feita em idade considerada precoce, as aprendizagens foram possíveis a partir de dois movimentos básicos: a escuta e o conhecimento da própria história. A escuta, encaminhada de modo a introduzir espaços, pontuações no discurso do sujeito e a colocá-lo no lugar daquele que fala, pode ser considerada, neste contexto, como propiciadora de construção de aprendizagens e da apropriação de sua autonomia. O conhecimento da própria história, além de possibilitar ao sujeito situar-se no tempo e no espaço, possibilitou construir seu passado, reconstruindo-o e construindo, a partir disso, algo novo: sua nova postura enquanto sujeito, além do esperado pela sua condição genética.

Palavras-chave: Deficiência intelectual, história pessoal, escuta, aprendizagens.


 

 

INTRODUÇÃO

O presente artigo é resultado de uma intervenção feita a partir dos estágios e do trabalho de conclusão de curso de Psicopedagogia da Universidade de Passo Fundo RS. A intervenção foi feita com um jovem com síndrome de Down que mostrou o desejo de escrever um livro sobre sua vida e alegava não saber como produzi-lo. A partir das avaliações iniciais foi possível observar que em sua escolarização foi alfabetizado, mas não havia se apropriado de algumas convenções da escrita.

As entrevistas com os pais revelaram a expectativa, desde o nascimento, de que ele não iria aprender. Sendo assim, a trajetória escolar apareceu, neste discurso, marcada pela aceitação da não aprendizagem como normal. O movimento de escrita do livro aparece neste contexto como a quebra de tais expectativas, visto que, resultou em aprendizado e uma nova postura enquanto sujeito.

Sendo a própria história a razão de ser de cada um, a apropriação, pelo sujeito desta pesquisa, do conhecimento de sua própria história possibilitou os avanços observados. Em um contexto em que a escuta foi ferramenta de trabalho, criou-se um espaço para esse sujeito poder falar de si e assumir sua autonomia.

Este espaço, propiciado pela intervenção psicopedagógica, permitiu pesquisarem-se as implicações do diagnóstico e sua função rotuladora, e o prognóstico como discurso que tolhe as possibilidades futuras da criança com síndrome de Down.

Partindo do pressuposto que as aprendizagens se constroem no transcorrer do desenvolvimento infantil, a ideia que fundamenta esta pesquisa é a de que a deficiência intelectual não está no sujeito que nasce com síndrome de Down como condição preestabelecida. Tendo um histórico de exclusão e discriminação, o espaço de circulação social possível para que essas pessoas pudessem ter acesso ao ensino e a educação é tão recente e restrito que já determinamos seu fracasso intelectual pelas características marcantes postas pelo quadro da síndrome.

Sendo assim, as suposições feitas, a partir do diagnóstico da síndrome de Down, das futuras incapacidades e da deficiência intelectual da criança acabam por determinar as apostas que a família, a escola e a sociedade fará para que ela aprenda. A presente pesquisa, além de buscar fundamentar o pressuposto da deficiência intelectual como uma condição socialmente construída, dá provas práticas de que uma pessoa com síndrome de Down pode aprender em qualquer etapa de sua vida, quando valorizado enquanto sujeito de desejo, sujeito que fala, autor de ideias e inscrito em uma história.

 

1 Entre o filho ideal e o filho real: a difícil tarefa de se reestruturar o desejo em relação ao futuro.

Uma criança, quando nasce, tem à sua disposição uma estrutura biológica que permitirá sua sobrevivência orgânica. Mas isto não basta. O rompimento com o útero materno lhe convida a entrar em um mundo de desejo que, tecendo uma espécie de rede, recobre todo o seu corpo e o significa, possibilitando a sua sobrevivência na esfera da existência humana e subjetiva.

 A constituição da vida psíquica da criança ocorre no campo da linguagem. O desejo relacionado ao filho preexiste ao seu nascimento em forma de linguagem, pois ele é idealizado e falado a partir do imaginário dos adultos, principalmente os pais. O enlace da criança ao mundo simbólico se dá através de um Outro que encarna um saber em relação ao que ela virá a se constituir, portanto, na medida em que e como é falada, passa a existir enquanto sujeito humano. Neste sentido, Jerusalinsky (1999) enfatiza:

quando um corpo biológico, com danos ou não, é jogado ao mundo, alguém espera para fazer de cada borda, desejo de um desejo (o da mãe), e ali se produz o primeiro encontro com o Outro que ela encarna, primeiro encontro com o significante da mãe. A partir desta matriz simbólica, instala-se uma dimensão de espelhamento na qual algo se desprende da mera satisfação da necessidade biológica. Estes olhos, esta boca, estes braços, se perdem na medida em que são nomeados pela mãe, quem, assim, inicia-o no seu destino em se constituir como sujeito desejante, sujeito configurado por antecipação a respeito de sua existência biológica a partir dos ideais de seus pais (p.110).

Quando uma criança nasce com alguma patologia orgânica, o real do filho choca-se com o ideal construído pelos pais, e o resultado disso poderá resultar em entraves ao seu desenvolvimento. Diversas são as formações psíquicas possíveis por parte dos pais diante deste real que se impõe: por um lado a negação do diagnóstico, por outro um efeito traumático que sobrepõe a patologia ao sujeito. Porém o principal questionamento, mesmo inconsciente, que os pais fazem frente à patologia do filho é: o que poderemos desejar, agora, dele? O que podemos esperar?

O desejo dos pais, a teia simbólica que aguardava o filho, e que até então não levava em consideração sua patologia, sofrem uma ruptura, uma brecha produzida por um não saber a respeito do prognóstico do dano orgânico e do futuro da criança. Isso dificulta a apropriação por parte dos pais da função de investirem o recém-nascido dos seus ideais e expectativas, afinal, aquele não era o bebê esperado. Sendo a patologia da criança a trissomia do cromossoma 21, ou síndrome de Down, o corpo da criança traz em sua fisionomia as características marcantes da mutação genética. Como os pais receberão e o que farão de seus ideais ao receber este corpo diferente do esperado? Será possível, por parte dos pais, simbolizar o cromossomo a mais presente no código genético do filho, inscrevendo-o nesta dimensão simbólica, e mais, como este corpo virá a constituir-se em um sujeito?

Levando-se em conta a necessidade da criança de buscar no Outro o desejo e o saber referente ao que ela vai se constituir, "os desfiladeiros significantes do desejo parental são decisivos na significação que a patologia virá a assumir na vida de um bebê, pois o texto que cada sujeito pode produzir confrontando o real do organismo é singular" (JERUSALINSKY, 2002, p.113). E é nesse sentido que se pode dizer que um diagnóstico pode, uma vez que a ciência no contexto atual se coloca como aquela que diz sobre a verdade do sujeito, fraturar o desejo dos pais em relação ao seu filho e limitar suas possibilidades futuras reais, muito além dos limites impostos pela patologia.

 

2 Diagnóstico: síndrome de Down, deficiência intelectual. Prognóstico: não aprendizagem.

O sujeito desta pesquisa, a quem chamaremos V.S., tinha, à época da intervenção vinte e três anos. À sua diferença foi dado um nome: síndrome de Down. Decorrida de uma alteração cromossômica nos primeiros tempos de gestação, dependendo do contexto no qual é discutida, pode ser classificada como deficiência mental ou intelectual, sendo esse último termo empregado mais recentemente. Essas nomenclaturas fizeram pressupor, durante muito tempo, que as crianças nascidas com a síndrome não poderiam aprender.

A nomenclatura diz respeito a um conjunto de características que se espera encontrar nas pessoas que nascem com a síndrome de Down. Existem, por exemplo, informações comprovadas através de dados estatísticos, principalmente no que tange às possíveis características orgânicas: as probabilidades de desenvolvimento de cardiopatias, complicações respiratórias, malformações gastroenterológicas, patologias nos olhos, etc. Mesmo que essas probabilidades existam, não encontraremos todas essas características em uma só pessoa; ou seja, nem todas essas características fazem parte da realidade de todas as pessoas que têm síndrome de Down. Essas complicações poderão se apresentar, ou não. O que podemos pressupor, então, das perspectivas futuras de desenvolvimento e aprendizagem, quando ainda não conhecemos o futuro?

Mas nós não somos só um corpo. Três aspectos compõem a estrutura que permite nosso desenvolvimento: o corpo, aparelho biológico, sobre o qual se constitui a estrutura psíquica que engloba a subjetividade, possível através das relações que estabelecemos com as outras pessoas e da nossa história de vida, e a cognição, na medida em que nos interrogamos sobre o mundo que nos rodeia (CORIAT, 2008). A partir da articulação entre esses três aspectos é que são possíveis os intercâmbios com o meio como, por exemplo, a aprendizagem, a psicomotricidade, a linguagem e a socialização. Sendo o desenvolvimento humano algo tão complexo e, ao mesmo tempo, tão fascinante, seria injustiça nossa atribuí-lo somente ao viés orgânico, ignorando toda a dinâmica que o envolve.

Ao conhecermos a descrição da síndrome, portanto, podemos supor as características e o desenvolvimento futuro. Mas o que realmente irá acontecer não podemos saber de antemão, pois dependerá de cada indivíduo, das relações e das trocas que ele virá a estabelecer com o meio.

Quando V.S. nasceu, seus pais ouviram do médico que confirmou o diagnóstico através do exame de cariótipo a sentença: "crianças assim... não aprendem".  Devido à época e também as condições do local onde viviam, não tinham conhecimento de outras crianças que tinham a síndrome, tampouco maiores informações a respeito. Seu pai, que havia sonhado durante toda a gestação em ter um filho com quem poderia pescar, imaginou que o futuro do filho seria viver em uma cama, em estado vegetativo, já que a deficiência de nome tão complexo poderia resultar em inaptidão em diversos aspectos de seu desenvolvimento. E que seria a não aprendizagem senão a morte do sujeito?

Se estava determinado pelo saber médico que não aprenderia, seria possível desejar ou, ao menos, como ficaria a aposta em um sujeito que inicialmente é falado pelo outro? E mesmo que se passasse por cima disto, que não se aceitasse que o filho, por ter uma deficiência, não iria aprender, será que as incidências de não aprendizagem seriam tidas como normais, diferentemente de um filho nomeado como "normal", de quem se espera que aprenda? Sua mãe, em alguns momentos da entrevista, evidenciou: "tudo o que ele conseguia fazer e tudo o que ele aprendia, nós víamos como uma conquista, como superação". Super-ação remete ao aprender visto como mais, como além de suas capacidades. Não aprender era encarado como normal e, portanto, aceito.

Podemos nos questionar se V.S., por ter nascido com síndrome de Down, teria seu destino marcado pela impossibilidade de aprender ou pela única meta possível de aprender menos do que os outros. Nasceu deficiente intelectual, pelo seu quadro genético, ou tornou-se deficiente intelectual, a partir das diversas relações que estabeleceu nos diferentes grupos responsáveis por contribuir com seu processo de aprendizagem? A deficiência intelectual, podemos afirmar, não está localizada no indivíduo,

as habilidades, possibilidades, capacidades se constituem no curso do desenvolvimento das pessoas, ou seja, não são inatas, não estão dadas ao nascer. Portanto, aí se coloca uma possibilidade de se compreender a deficiência mental como uma condição socialmente construída (CARNEIRO, 2006, p.141).

Quando na época de seu nascimento foram indicados diversos materiais informativos a respeito da síndrome os pais rejeitaram, pois, segundo relato, "o aceitavam como era". Não era necessário saber mais, sua síndrome não seria motivo de não aceitação. E por essas intercalações que a vida de V.S. foi marcada: por um lado a aceitação do filho, mas a negação de sua patologia, que o convocou diversas vezes a ser igual aos outros, privando-o do atendimento especial quando necessitava e, por outro, a aceitação das incidências de não aprendizagem como normais e aceitáveis, quando não aprendia através dos mesmos métodos que os outros.

Neste ponto nos deparamos com necessidades, observáveis dentro do contexto do nascimento de uma criança com alguma síndrome, que parecem se opor. É imprescindível que se estabeleça o real, definindo os limites e as possibilidades funcionais da criança. Por outro lado, é necessário que haja um lugar vazio, onde não se antecipe em forma de saber o futuro da criança, pois "deixar um lugar vazio, sem pretender preenche-lo com o saber dos preconceitos (populares ou ‘científicos') de como deve ser um ‘Down (...), esse ponto obscuro de ignorância no saber de uma mãe, é o que acende a faísca da vida própria do filho" (CORIAT, 1999, p.313), abre-se um espaço para que se produza uma criança na sua singularidade, um sujeito.  

O desenvolvimento dentro dos tempos considerados normais e a conquista de aptidões até então não esperadas foi encarado como grande superação. A saída da escola especial foi marcada pela solicitação do sujeito, relatada pela mãe: não se sentia igual aos outros colegas da escola especial. Cursou o ensino fundamental e o primeiro ano do ensino médio em escola regular, e só então deixou a escola para se inserir no mercado de trabalho. Toda esta trajetória foi marcada por um sentimento de exclusão e pelas incidências de não aprendizagem.

Como pontua Cordié (1996),

a criança "normal" ouve bem cedo a demanda que lhe é dirigida de que ela deve aprender e ter sucesso, e percebe que tem que responder a essa expectativa. Desta mesma forma, a criança com necessidades especiais percebe que em torno dela existem expectativas de sua não aprendizagem. Estas duas posições podem causar uma inibição que é a interdição da pulsão de saber, o abandono do desejo, uma parada cuja razão mais frequente deve ser procurada do lado da demanda esmagadora do Outro (p.26).

V.S. já era adolescente quando tomou conhecimento do nome de sua diferença. Começou a buscar informações em todos os meios, e logo se apropriou de diversos termos que permeiam as discussões acerca da inclusão. Portador de necessidades especiais, inclusão, exclusão, escola regular, escola especial, direitos iguais para todos. Levantou a bandeira: "sou portador da síndrome de Down". Tentou entender a origem de sua diferença, mas a explicação foi demasiado complexa para suas estruturas de pensamento não operatórias.

A característica que mais lhe chamou atenção, quando buscou saber no que efetivamente era diferente, foi referente às mãos. Alguém havia dito a V.S. que as pessoas com síndrome de Down tinham uma diferença nas linhas das mãos, característica que sua mãe observou no momento do nascimento, após terem dito que seu filho havia nascido com algum "problema".

Como as linhas de suas mãos eram normais, sua mãe pensou que ele não tinha síndrome de Down. Aqui cabe uma analogia. Quando V.S. refere-se a si mesmo como "portador da síndrome de Down" pode-se pensar a síndrome como algo que ele traz em suas mãos, que ele porta, que ele tem, e que mostra aos outros: "Olhem, isso sou eu". Ou como um crachá, uma placa, uma bandeira, que ele carrega por todos os lados, e que de alguma maneira recobre todo o seu corpo. Recobre porque, antes de qualquer coisa, quando alguém o vê, principalmente pela primeira vez, pensa: "é deficiente, tem síndrome de Down".

Seguindo esse raciocínio, podemos pensar que V.S. porta uma dor! Mas, que dor seria essa? Pode ser muitas: a dor dos pais, ao receber um filho diferente do esperado; a dor ter uma característica a cobrir todo o seu corpo, que carrega um histórico de preconceito e discriminação e que o classifica como portador de uma síndrome e suas correspondentes deficiências antes de inquirir quem ele é; a dor de ser suposto como incapaz, principalmente para aprender, e ser privado do investimento necessário para provar o contrário.

Tendo sido alfabetizado na escola regular, contrariando as expectativas iniciais a respeito de seu aprendizado, nutria o sonho de ser escritor. Por que não escrever um livro? Era seu maior desejo. Um longo percurso se iniciou, a partir daí, e resultou em aprendizagem e apropriação de sua autonomia, de seu lugar de sujeito ativo.

 

3 A Escrita do Livro: A Escuta propiciando Aprendizagens

No início do processo de escrita do livro, suas narrações e descrições eram bastante curtas, sem muitos detalhes e confusas. Algumas informações importantes ele ocultava, como se as pessoas que iriam ler o que estava escrevendo fossem entender tudo o que ele queria dizer e aquilo que sentia, simplesmente porque ele sabia.

Iniciou seu trabalho com bastante esforço. O tempo dedicado à organização de seu livro era extenso. Escreveu muito. Ao fim, tinha muitas folhas de papel com textos em que narrava suas lembranças. Colheu, também, relatos de familiares e outras pessoas que conviveram com sua família desde o seu nascimento, além de materiais explicativos sobre a síndrome de Down, bem como livros e folhetos que discutem a inclusão.

Para que pudesse organizar suas ideias e transpô-las para o texto, estabeleceu-se uma relação baseada na escuta. Essa escuta precedia à escrita, ou seja, ele necessitava falar sobre tudo o que queria contar em seu livro antes de escrever. O interessante é que, da mesma maneira que quando alguém explicava algo a ele, ele necessitava que fosse repetido mais de duas ou três vezes para que entendesse, ao falar o que queria escrever ele repetia também muitas vezes, como se o pesquisador tivesse a mesma necessidade que ele. Ao dirigir a um outro a sua fala, precisava ouvir a si mesmo. Ele falava sobre tudo o que queria escrever e só depois ele escrevia.

Depois de muitas intervenções no sentido de fazê-lo explorar mais as informações, com perguntas como: Quando aconteceu? Onde? E o que você sentiu? O que mais você quer contar sobre isso?, entre outras provocações, V.S. passou a descrever com mais riqueza de detalhes e de maneira mais organizada suas ideias, de maneira autônoma. Esse espaço para que V.S. pudesse falar sobre as questões relativas à sua história pessoal produziu mudanças em sua postura enquanto sujeito. O lugar de enunciação e, por consequência, a produção de sua obra, possibilitou um conhecimento e apropriação de si mesmo. Segundo Fernandez (2007) o autor não só produz uma obra. O autor, ao produzir sua obra também produz a si mesmo, quando se reconhece criando, quando a sua obra mostra algo que, antes de produzi-la, o autor não conhecia em si mesmo, algo novo sobre ele.

Neste processo, algumas convenções da escrita V.S. aprendeu antes e durante o processo de produção do livro. Logo no início, utilizava poucos acentos nas palavras. Passou também a empregar sinais de pontuação; antes utilizava a vírgula e o ponto de maneira indiscriminada, e aos poucos, entendendo sua função, pôde utilizá-los em algumas situações.

Pode-se pensar nas dificuldades que V.S. apresentava em relação a escrita a partir do movimento de simbolização do qual a escrita participa, o que determina que

toda dificuldade em escrever, em qualquer criança que apareça, deve ser tomada e situada no seu lugar justo, a saber, esse originário de onde a articulação psique-soma preside às primeiras inscrições simbólicas" (Bergès-Bounes, 2010, p.40)

Apropriou-se também da ideia de que um texto é um processo que se constrói. Leu e releu seus escritos diversas vezes. Alguns trechos modificou, excluiu, percebeu erros e corrigiu e, mesmo necessitando de alguém ao seu lado que o provocasse em algumas situações a revisar o texto e pensar naquilo que estava escrito, o fato de ter podido avaliar o que havia produzido foi um grande avanço dentro daquilo que já havia conquistado. Hoje, quando se comunica pela internet, sua escrita é mais clara e mais correta. Essa diferença foi percebida por diversas pessoas.

 

4. Para aprender é preciso historizar-se.

Há, dentre os diversos movimentos feitos por V.S. na fase inicial de seu projeto de escrita, uma iniciativa que se destaca: elaborou e distribuiu entre familiares e amigos uma pesquisa com diversas perguntas sobre o que as pessoas sabiam a respeito da síndrome e o que pensavam a respeito dele. Esses questionamentos revelam que a elaboração do livro, mais do que a realização de um desejo de V.S., foi um meio que ele encontrou de conhecer sua história, suas origens, bem como de encontrar respostas para muitas dúvidas que ele carregava.

Pode-se afirmar que

vida nenhuma começa sem história. Sem ela, a vida não avança, não encontra duração, continuidade. É narrando que a vida se transmite e permanece, seja nos escritos, seja na transmissão oral. (...) Trata-se de uma necessidade que nos acompanha para sempre. (...) Na realidade, até a morte. Não sabemos se a morte é o fim da história, mas a falta de história significa a morte psíquica (GUTFREIND, 2010, p.28 e 29).

Para começarmos a pensar a respeito, a pesquisa foi elaborada e dirigida às pessoas importantes em seu círculo de convivência, ou seja, àquelas cuja opinião realmente era relevante – talvez um livro ou folheto contendo todas essas informações não fosse tão útil para V.S., naquele momento. Surpreendeu-se ao ver que a maioria das pessoas lhe respondeu. A primeira pergunta, transcrita com fidelidade à escrita dele, foi: "quais são os verdadeiros motivos de que algumas pessoas nascem com a síndrome de Down?" Todos nós nos questionamos sobre nossas origens, nossa história, fatos que contribuíram para sermos o que somos, e ele se questionava, também, sobre sua diferença.

Qual seria, real e especificamente, o motivo de sua diferença e, por consequência, de suas dificuldades? Complementando essa pergunta, uma questão que V.S. elaborou nos serve de maneira especial no contexto desta discussão. "Quais são as realidades das pessoas que têm a síndrome de Down?". Provavelmente tenha se perguntado diversas vezes se ele era realmente tudo aquilo que estava estabelecido pela denominação de pessoa com síndrome de Down. "Será que realmente eu não posso tudo o que pensam que eu não posso?" deve, intimamente, ter se questionado.

Outra questão que propôs aos entrevistados foi sobre quais seriam as reações de familiares e amigos ao descobrir que teriam que conviver com uma criança com síndrome de Down. Mais que saber o seu lugar entre as pessoas que ama, poderia saber, ou certificar-se, do quanto a sua diferença determinava a aceitação ou rejeição que até hoje sente das pessoas que convivem com ele.

Através dos relatos dos familiares, muitos fragmentos de vida foram revelados, detalhes que V.S. não sabia, aspectos de sua história que ainda eram desconhecidos. A cada relato, um misto de emoções. Ao expor alguns assuntos, lembrar de algumas experiências, chorou diversas vezes. Uma emoção muito especial estampou-se em seu rosto ao saber das dificuldades que seus pais passaram, do medo que sentiram ao pensar que ele não fosse sobreviver a alguns problemas de saúde, e não pôde conter o choro mesmo nas diversas vezes que releu o texto para fazer a revisão. Talvez pelas dificuldades vivenciadas desde o nascimento de uma criança com síndrome de Down é que algumas famílias, como a de V.S., não narram a história pessoal, não falam sobre eventos passados, diferentemente do que se faz para uma criança sem a síndrome. A apropriação pelo sujeito do conhecimento de sua própria história tem, além de grande importância, função terapêutica e propiciadora de novas aprendizagens. Segundo Fernandez (2007), a construção de uma autobiografia implica modificações, transformações, reconstruções, a ressignificação da história, e aprender é construir espaços de autoria, ao mesmo tempo que o sujeito se ressitua perante seu próprio passado.

Hoje se faz mais imperioso que nunca possibilitar a escuta e a palavra aos jovens e as crianças. A historização simbolizante se produz pela conjugação da recordação compartilhada e comunicada, já que construir um passado não significa inventá-lo, e sim recuperá-lo e na recuperação produzir algo novo (FERNANDEZ, 2007, p.83).

Para finalizar sua pesquisa, V.S. questionou seus entrevistados a respeito das possibilidades da pessoa com síndrome de Down na fase adulta. Essa pergunta vem dar conta das angústias vivenciadas por ele na fase que no momento vivencia, especialmente no que diz respeito a sua independência e ao exercício de sua sexualidade, direitos cujo acesso encontra obstáculos para a maioria das pessoas com síndrome de Down.

 

5. Mãos que superam expectativas

V.S., após todo o trabalho de elaboração do livro, teve finalmente realizado seu desejo. Tendo sido seu projeto visto com entusiasmo por diversas pessoas, seu livro foi lançado e ele, muito mais do que todo o trabalho de autoria, passa a ser visto pelos outros como autor.

O lugar destinado a ele, principalmente em sua família, passou a ser outro. Antes seu lugar era o da deficiência, da incapacidade. Tendo se tornado um autor, abriu-se um espaço que permitiu questionar se a sua condição de pessoa com síndrome de Down é, realmente, tão determinante quanto se supunha. O relato da mãe nos dá indícios disso, quando diz que depois deste processo, vendo que ele pode realizar o que todos diziam que ele não conseguiria, acredita muito mais em suas potencialidades e pensa que, talvez, poderia ter aprendido muito mais se, desde o início, tivessem acreditado.

E ao oferecer sua produção aos outros uma nova escrita se fez necessária: a escrita do nome, do autógrafo, comprovando a autoria, a autoridade. E frente a essa nova demanda, sua fala revela a mudança do lugar que ocupa em seu meio social, e a ressignificação da sua síndrome como empecilho para suas aprendizagens: "Eu não acredito que essas mãos escreveram um livro. Eu não acredito que essas mãos autografaram livros". Com suas mãos produziu sua obra, mas sua obra também transformou o significado que, até então, para ele tinham suas mãos.

 

CONCLUSÃO

Ressignificar pressupostos culturais a respeito das deficiências é uma necessidade, tendo em vista que uma sociedade que caminha em direção ao pleno respeito aos direitos humanos é, necessariamente, uma sociedade inclusiva. Em relação às pessoas com síndrome de Down, por ser a síndrome de Down classificada como uma deficiência intelectual, ainda há uma forte tendência cultural em considerá-las deficientes intelectuais desde o momento em que nascem, pelo fato de nascer com a síndrome.

Sendo a intelectualidade e o conhecimento construídos nas relações com os outros responsáveis pela educação da criança, abre-se um espaço para se pensar o desenvolvimento intelectual deficiente da criança com síndrome de Down como uma construção social, e não como uma condição do sujeito.

O sujeito desta pesquisa, tendo sido marcado desde seu nascimento pela expectativa da não aprendizagem, teve seu percurso escolar permeado pela aceitação do não aprender como normal para sua condição, e do aprendizado como superação. A partir de todas as implicações da síndrome na relação dos pais e do sujeito, o conhecimento dos fragmentos de história mantidos como não ditos e um espaço de enunciação surgem, através do projeto de escrita do seu livro, como espaço também, para aprendizagens e uma reestruturação deste sujeito enquanto autor/autoridade.

O espaço criado pela intervenção psicopedagógica propiciou ao sujeito conhecer sua história e seu lugar na família. O processo de escuta, o espaço para que o sujeito falasse, possibilitou passar de uma posição do sujeito que é falado para a posição do sujeito que fala. Muito mais que isso, propiciou que o sujeito ressignificasse sua própria história e construísse uma nova postura, um novo lugar.

 

REFERÊNCIAS

BERGÈS-BOUNES, Marika; CALMETTES-JEAN, Sandrine (2010). A cultura dos superdotados? (Tradução de Maria Nestrovsky Folberg). Porto Alegre: CMC.

CARNEIRO, Maria Sylvia Cardoso (1996). A deficiência mental como produção social: De Itard à abordagem histórico-cultural. In: BAPTISTA, Claudio Roberto (Org.). Inclusão e Escolarização:Múltiplas perspectivas. Porto Alegre, RS: Mediação.

CORDIÉ, Anny (1996). Os atrasados não existem: Psicanálise de crianças com fracasso escolar. Trad. Sônia Flach e Marta D' Agord. Porto Alegre, RS: Artes Médicas.

CORIAT, Lydia F. de; JERUSALINSKY, Alfredo N (2008). Aspectos estruturais e instrumentais do desenvolvimento. In: Escritos da Criança. Número 4. Porto Alegre: Centro Lydia Coriat,

CORIAT, Elsa (1999). Uma psicanalista em Paris. In: JERUSALINSKY, Alfredo. Psicanálise e Desenvolvimento infantil: um enfoque transdisciplinar. Porto Alegre, RS: Artes e Ofícios.

FERNANDEZ, Alicia (2007). Los idiomas del aprendiente. Análisis de modalidades de enseñanza en familias, escuelas y medios. Buenos Aires: Nueva Visión.

FERNANDEZ, Alicia (2008). Poner en juego el saber. Psicopedagogía: propiciando autorías de pensamiento. Buenos Aires: Nueva Visión.

JERUSALINSKY, Alfredo (1999). Psicanálise e Desenvolvimento infantil: um enfoque transdisciplinar. Porto Alegre: Artes e Ofícios.

JERUSALINSKY, Julieta (2002). Enquanto o futuro não vem. A psicanálise na clínica interdisciplinar com bebês. Salvador BA: Ágalma.