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ISBN 978-85-60944-35-4 versión on-line

An 8 Col. LEPSI IP/FE-USP 2011

 

O tratamento em grupo e a imagem inconsciente do corpo

 

 

Carolina Cardoso Tiussi 

Psicóloga associada do Lugar de Vida – Centro de Educação Terapêutica, mestranda do Departamento de Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano – PSA – IPUSP, sob orientação da Profa. Dra. Maria Cristina Machado Kupfer. caroltiussi@yahoo.com.br

 

 

APRESENTAÇÃO

Esse trabalho, parte de uma pesquisa de mestrado, é o esforço de teorizar sobre uma prática de tratamento em grupo que ocorre no Lugar de Vida – Centro de Educação Terapêutica. O grupo pesquisado é formado por crianças de diferentes idades, em diferentes posições subjetivas (neuróticas, psicóticas e autistas) e que estão colocadas em diferentes posições no discurso social (crianças que não aprendem, crianças abandonadas e carentes, crianças que não brincam, etc.). É coordenado por psicanalistas que propõem oficinas como jogos, música, escrita, encenações, rodas de conversa, entre outras, formando assim um campo de linguagem, que permite a circulação da diversidade.

Ao propormos acompanhar os movimentos das crianças em um dispositivo de trabalho que oferece um campo de linguagem heterogêneo, construído sob transferência, temos como objetivo permitir que as crianças vivenciem, mesmo que temporariamente, incursões por lugares discursivos inéditos para elas. Teriam tais vivências força e potência para propiciar a retomada da construção da imagem do corpo? Essa é a questão que queremos investigar.

Para tanto, falaremos primeiramente sobre a constituição da imagem inconsciente do corpo, a partir das teorizações de Françoise Dolto. Esse conceito foi desenvolvido a partir de sua clínica psicanalítica com crianças. Em seguida, discutiremos essa proposta de trabalho em grupo como um outro dispositivo de tratamento que também pode possibilitar modificações na imagem do corpo. Por fim, traremos uma vinheta clínica ocorrida no grupo, a fim de ilustrar a proposta de trabalho.

 

IMAGEM INCONSCIENTE DO CORPO

Françoise Dolto (1984/ 1992), psicanalista francesa reconhecida pelo trabalho com crianças, nos introduz o conceito de imagem inconsciente do corpo, que tem articulações com o conceito de imagem corporal, formulado por Lacan (1966/1995), mas tem também diferenças. Segundo a autora, todo sujeito teria uma imagem inconsciente do corpo, que se trata de vivências de imagens extremamente arcaicas e precoces de corpo, situadas na base do narcisismo. Esta vivência poderia ter início já no ventre da mãe, antes do nascimento do bebê, mas quando este já possui um corpo. A imagem inconsciente do corpo se localiza em um tempo lógico anterior ao narcisismo primário – em que ocorre a instauração do estádio do espelho. Ela estaria na base do que a autora chamou de narcisismo fundamental. Dolto distingue então três narcisismos: o fundamental, o primário e o secundário. Aponta que distúrbios no tempo do narcisismo fundamental, na imagem inconsciente do corpo, podem desencadear graves quadros psíquicos (Dolto, 1984/ 1992). De acordo com a autora,

Se o narcisismo fundamental estiver mal amarrado no corpo, isto é, se a imagem básica pela qual o sujeito se agarra ao seu Eu permanece frágil, surge então a ameaça característica do estado fóbico. Este consiste em vigiar ininterruptamente a manutenção da imagem existencial básica (Dolto e Nasio, 1987, p. 13).

Dolto (Dolto e Nasio, 1987) introduz uma visão diferente da psicose infantil e do autismo. Fala que o que chamamos de psicose infantil e autismo frequentemente pode ser entendido como uma fobia, sendo a fobia entendida por ela como um conjunto de defesas que se armam na tentativa de evitar um risco iminente da perda do laço entre a imagem e o corpo, ou ainda entre imagem inconsciente e esquema corporal1. Segundo Dolto (1984/1992), as zonas erógenas que constituem o corpo são as articulações entre a imagem inconsciente do corpo e o esquema corporal, amarradas pela pulsão.

A autora aponta que a imagem inconsciente do corpo é relacional, ou seja, se constitui a partir do contato da criança com o outro. A imagem inconsciente do corpo nos bebês se constitui na relação deste com a mãe. A partir disso, temos que as imagens arcaicas de corpo podem ser vividas novamente em uma transferência e podem se alterar a partir dessa vivência (Dolto e Nasio, 1987). Dolto nos descreve diversos casos clínicos em que crianças com distúrbios graves puderam modificar a relação entre sua imagem inconsciente do corpo e seu esquema corporal a partir do trabalho analítico.

 

A INSTITUIÇÃO E O TRABALHO EM GRUPO

Atualmente, em instituições que tratam de crianças autistas, é possível encontrarmos crianças já de idade avançada, com nove, dez anos, que não falam, não dirigem nenhum tipo de demanda ao outro e têm uma circulação social extremamente restrita. Por apresentarem questões com o laço social, essas crianças têm inúmeras dificuldades para estarem em grupo. A fragilidade da constituição de sua imagem do corpo faz com que constantemente sintam-se invadidas pelo Outro. Frequentemente, podemos ver, em análises individuais, crianças que permanecem presas em repetições difíceis de serem deslocadas. Um dos trabalhos a serem feitos é a introdução de elementos que tirem a criança de sua repetição e de sua posição de objeto. Como nos mostra Colette Soler (1994) nesses casos, a análise encontra-se invertida, trata-se de construir o Simbólico a partir do Real.

Por conta de tais especificidades, verificou-se a pertinência de colocar as crianças autistas em grupo com outras crianças, bem diferentes dela. Apesar da dificuldade de estar em grupo, a hipótese é de que os ganhos para elas são maiores e de que pode manejar essa situação até que o grupo seja mais possível para a criança autista. As outras crianças que compõem o grupo trazem consigo diferentes questões (queixa escolar, abandono, questões com a lei) em uma posição neurótica. Um ponto importante de ser enunciado é que o grupo, da forma como pensamos, tem que trazer benefícios para todos. As crianças neuróticas se beneficiam desse trabalho de muitas formas (Pinto, 2009). Esse grupo apresenta algumas singularidades, que o diferencia, por exemplo, do que se passa na escola. Além da presença dos analistas, que propõem atividades, sempre formulamos estratégias que promovam a entrada das crianças autistas no grupo, a fim de que formem laço social. As situações que se passam durante o grupo, promovidas por todas as crianças, parecem ter a potência de mobilizar as crianças autistas. Frequentemente, uma fala ou ação de alguma criança funciona como uma provocação que tira o sujeito de sua mesmice.

Entretanto, seria possível que esse grupo, com crianças tão diferentes, promovesse modificações na imagem do corpo, a principal questão das crianças autistas? Não temos ainda dados suficientes para responder esse problema de pesquisa. Mas temos alguns indícios para começar a formular reflexões.

Relataremos uma cena em que tanto está presente uma tentativa de constituição de imagem do corpo, quanto o papel fundamental que o grupo teve para que essa cena acontecesse.

F. é um menino de nove anos que não fala, apresenta diversas estereotipias e tem diagnóstico de autismo. Ele frequenta essa instituição há 1 ano e, no início de seu tratamento, se desorganizava constantemente nos grupos. Apesar de não se desorganizar mais nos grupos, F. ainda tem dificuldades para entrar na sala e passa grande parte do tempo no quintal, tirando a grama do jardim, jogando-a para cima e assistindo-a cair.

Certo dia, algumas crianças começam a brincar com os flocos de isopor que preenchem um puf azul, que fica na sala do grupo. F. não participa dessa brincadeira, apenas observa de longe. Todos dizem que são flocos de neve, brincam de chuva, fazendo os flocos caírem do ar. No fim do grupo, as crianças auxiliam os adultos a recolherem os flocos, recolocando-os no puf e arrumando a sala.

Em seguida, todos saem para a hora do lanche, que é feito no quintal, fora da sala. Durante o lanche, sem que ninguém percebesse, F. volta para a sala e, sozinho, desmonta o grande puf, abrindo-o novamente e esparramando o isopor por todo o chão. Durante essa brincadeira, o garoto é surpreendido por sua fonoaudióloga, que o vê colocando os flocos de isopor na boca. A fonoaudióloga, sem entender o que estava acontecendo, diz para F. que não fizesse isso e convida-o para irem para outra sala.

Na semana seguinte, o grupo ocorre em outro salão. F. permanece nesse espaço com as outras crianças, mas fica insistentemente ao lado da porta, forçando a maçaneta para sair. Pergunto se ele quer ir ao banheiro e digo que nós podemos sair, mas que voltaremos depois para o salão.

Ao sair, F. vai ao banheiro, utiliza-o e, na volta, não reluta, como faz frequentemente. Entretanto, ao invés de ir para o salão onde ocorria o grupo, dirige-se para a sala em que estava o puf. Ele pega o puf novamente e carrega-o para a porta e, com o meu auxílio, leva-o até ao salão em que todos se encontram.

Ao entrarmos, todas as crianças se aproximam e se segue então uma gostosa brincadeira de retirar o flocos de isopor, desmontando o puf, e assoprá-los ou jogá-los para o alto. F. participa desse jogo conjunto, próximo das outras crianças, sendo banhado pelos significantes que seus amigos atribuíram àquela brincadeira. O garoto que evita ativamente o contato com o outro e que não demonstra interesse por quase nenhuma atividade, escolhe, nesse momento de seu tratamento, primeiro experimentar a brincadeira sozinho e em seguida compartilhá-la com seus colegas.

No início de seu tratamento, momento em que apresentava crises, mordendo-se e jogando-se no chão, pelo simples encontro com outras crianças, podemos pensar que F. tinha constituído apenas o que Dolto chama de imagem de base. Ela fica restrita ao nível tátil, sinestésico e, no caso de F. não se ligou a representações que nomeariam as suas vivências, remetendo-as ao registro simbólico, possível de ser partilhado com o outro. Com sua brincadeira de ver a grama cair no ar, F. parece nos mostrar o que vive a cada vez que sua frágil imagem de corpo se vê ameaçada. É como se ele se desfizesse no ar. No início do tratamento, nos momentos de crise, era preciso morder-se para se assegurar de que ali havia um corpo, o que F. não precisa mais fazer atualmente.

F. parece agora poder esboçar uma tentativa de construção de imagem do corpo. A cena montada pelo grupo e reproduzida por F. sozinho, num primeiro momento, nos remete a algo muito primitivo, uma espécie de desmontagem do totem, representado pelo grande puf. Após o desmembramento do totem-puf, os irmãos da horda, ingerem todos o totem, como faz F. ao degustar o puf, se misturando a ele, deixando-se envolver. Ao desmanchar o puf, deixando-o fragmentado no chão, ele nos dá novamente uma imagem de si (Freud, Totem e Tabu, 1913).

Entretanto, quando reproduz a cena, agora não mais sozinho, mas levando por iniciativa própria o totem-puf até seus colegas, ele faz um movimento na direção do outro, de busca pelo outro, e não mais de evitação ativa. Com isso, nos indica que não está mais no mesmo ponto que estava quando veio para o tratamento. Ao buscar o outro, nos indica que algo de sua imagem de corpo foi construída, já não teme mais ser invadido a qualquer momento.

Ainda vemos com freqüência a imagem de base tomar conta de F. Entretanto, nos parece que ele pode construir algo de sua imagem de corpo na transferência e de compartilhar isso com seus colegas. Assim, cabe aos profissionais envolvidos em seu tratamento buscar a ocorrência de mais momentos como esse, momentos em que F. pode se apropriar de uma brincadeira feita por outra criança e tentar nos dizer, através dela, um pouco de si.

 

REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Dolto, F. (1984/1992). A imagem inconsciente do corpo. São Paulo: Perspectiva.

Dolto, F. e Nasio, J.D. (1987). A criança do espelho. Rio de Janeiro: Zahar.

Freud, S. (1913/1996). Totem e Tabu. In Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, vol. 13.

Lacan, J. (1966/1995). O estádio do espelho como formador da função do eu tal como nos é revelado na experiência psicanalítica. In Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.

Pinto, F. C. (2009). Grupo Mix: um campo de linguagem para a circulação da heterogeneidade. Dissertação de Mestrado, Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo.

Soler, C. Le désir du psychanalyste. Où est la différence?. In Lettre Mensuelle. Paris: Campo Freudiano, p. 11-13, julho de 1994.

 

 

1 Esquema corporal é um conceito utilizado por Dolto (1984/1992) para diferenciar o corpo biológico, anatômico da imagem corporal, que é inconsciente.