8O tratamento em grupo e a imagem inconsciente do corpoEntre ensino e ato: notas de psicanálise e educação author indexsubject indexsearch form
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On-line ISBN 978-85-60944-35-4

An 8 Col. LEPSI IP/FE-USP 2011

 

Da escola para a clínica?

 

 

Daniela Bridon dos Santos Reis BrandãoI; Greice Cristina Contini CarvalhoII; Juliana Fernanda de BarrosII; Luisa do Nascimento Ortega QueirozII

I Professora efetiva do curso de Psicologia da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, campus de Paranaíba. Pesquisa, a partir da teoria freudo-lacaniana, questões sobre a constituição do sujeito e a implicação entre Psicanálise e Educação
II Graduandas do curso de Psicologia da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, campus de Paranaíba.

 

 

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

E, definitivamente, não se constituem nossos filhos
 em nosso único acesso à imortalidade?
(Sigmund Freud).

A ideia de que a infância é percebida de variadas maneiras ao longo do tempo, ocupando lugares sociais de acordo com diferentes épocas históricas, espaços e culturas, já faz parte, de maneira geral, do ideário social, principalmente a partir das pesquisas de Phillipe Áries (1914 – 1984), datadas dos anos setenta do século passado. Sua tese central propõe que a concepção de infância, tal como nos é recorrente hoje, surgiu em meados do século XIX, na Europa; portanto, não existe "A" infância, sendo sua representação uma construção social e histórica do Ocidente.

Por outro lado, em meios psicanalíticos – mas não só nele – também já se torna freqüente questionamentos à tese de Áries.  Independente de ser datada historicamente, a infância depende de significados construídos socialmente para existir como idade diferenciada da vida. Como afirma Lajonquière, "o gesto adulto de se endereçar a uma criança está implicado na produção psíquica de uma infância", infância essa enquanto representação para o adulto (LAJONQUIÈRE, 2005, p. 15). Assim, independente do tempo e do espaço, a relação com a criança está sempre mediada pelas reminiscências da infância do próprio adulto. Freud já havia construído essa ideia, especialmente no texto "Três ensaios sobre a teoria da sexualidade", publicado em 1905, alargando os limites do infantil ao conceitualizar que a criança persiste no adulto a ponto de fazê-lo adoecer, e isso independente da infância ser reconhecida como "idade diferenciada da vida" ou não, como quer Áries. Ao mesmo tempo em que produziu o alargamento dos limites etários do infantil – fazendo-o, portanto, permanecer na idade adulta – introduziu na criança o que, antes de Freud, era uma prerrogativa do adulto, a saber, a sexualidade.

E, como se isso não bastasse, a criança freudiana e, portanto, um sujeito que está sujeito a um inconsciente, não pode ser pensada como alguém cuja construção se inicia com o nascimento: do ponto de vista da constituição daquele sujeito, sua história começa bem antes, começa com seus avós, e o que se passou com eles na sua constituição subjetiva inconsciente marcará também aquele sujeito, que já encontra ao nascer uma trama estendida sobre ele. Trata-se assim de um conceito de infantil ampliado em suas duas pontas (KUPFER, 2007, p. 37).

Podemos pensar, consequentemente, que a infância só existe enquanto uma representação para o adulto, mas não enquanto um caminho natural – ou mesmo cultural – para a criança. Ainda assim – e, talvez, mesmo por isso – fundamental para o advento do sujeito-criança. Lajonquière, a respeito desta falta de co-naturalidade entre o que se entende por infância e as crianças, comenta as respostas de duas delas sobre o que é a infância: "A infância é aquilo do qual os adultos falam quando lembram que foram crianças"; "Essa não é uma pergunta para se fazer a uma criança".  Analisando as respostas infantis, o psicanalista confirma a ideia já secular em meios psicanalíticos freudianos: a infância é da ordem de um relato adulto, ou seja, a criança não sabe sobre o que a determina, justamente por não haver co-naturalidade entre infância e criança (LAJONQUIÈRE, 2005).

 

O LUGAR DO INFANTIL NA MODERNIDADE

Se na Antiguidade grega as crianças deficientes eram lançadas desde
as alturas do monte Taigeto, em nossa civilização ocorre
serem igualmente lançadas a um vazio de significância
desde as alturas da Ciência
(Alfredo Jerusalinsky).

O que se impõe, neste contexto, é a quantas anda o infantil em nossos adultos contemporâneos. O lugar da infância se transforma? E a criança, ser real que ocupa simbolicamente este lugar, como lida com essa transformação? E seus lugares sociais, especialmente os inventados na Modernidade – a família e a escola – como se organizam frente a essas modificações? As condições subjetivantes necessárias à constituição do sujeito humano são garantidas frente às transformações simbólicas do lugar da infância?  Qual seria o lugar privilegiado da criança nos tempos atuais: o consultório de especialistas?  E, finalizando as questões: é possível argumentar a existência de um sintoma social ligado à infância de nosso tempo, assim como havia com as mulheres na Viena freudiana?

Muito se especula a respeito da criança de nosso tempo, de sua falta de limites, de sua precoce sapiência, de sua violência e crueldade. Mas, como apontado acima, se é o adulto que, ao se endereçar a uma criança, se implica na constituição subjetiva de uma infância, como se organizam os discursos adultos hoje e qual o lugar dado a eles ao infantil? Pois, como ressalta Kupfer, "a realidade humana está recortada pelo significante, então o significante ‘criança' será também uma criação da linguagem por sobre algo a que chamamos suporte biológico" (KUPFER, 2007, p. 36).

A humanidade é instituída senão pela via dos artefatos sociais discursivos, resultado de marcas práticas discursivas sobre a indeterminação de base do sujeito humano. Pela indeterminação, é necessário que o corpo se sujeite a uma genealogia, a uma possibilidade de sentidos, que também não se totalizam, justamente porque a ele resta um indizível impossível de nomeação e, por isso mesmo, causador de sua experiência humana. Nesta lógica, a subjetividade não é uma estrutura dada para sempre, é um conjunto de operações ou jogos de linguagem instaurados no sujeito por dispositivos societários.

A simples presença desses artefatos de linguagem obriga o ‘candidato-a-sujeito' a produzir uma série de operações ditas subjetivas. Essa produção dará ao ‘sujeito-efeito-ainda-por-vir' a chance de outorgar um pouco de sentido ao fato de estar-aí no mundo (LAJONQUIÈRE, 2005, p. 04).

Feita acima a ressalva freudiana de que a noção de infantil existe – ou persiste – no adulto, independente de época histórica, de cultura e de sociedade, e que é a partir dela que se torna possível a emergência de uma criança enquanto sujeito, é possível observar que os desdobramentos culturais foram constituindo lugares simbólicos aos seres viventes, que se transformaram e se transformam, justamente porque a linguagem não recobre totalmente o corpo, mas lhe possibilita articulações múltiplas que não cessam de se inscrever. O próprio Ariès (1981), como mencionado acima, que se deteve na análise da infância na sociedade ocidental européia, especialmente a francesa, afirma que na Idade Média – séculos V a XV d.C. – não existia o sentimento – ou lugar simbólico, lugar no Outro social – de infância tal como se observa atualmente. Talvez pudéssemos relativizar essa tese e afirmar que o lugar simbólico da infância era diferente do moderno, surgido então a partir do século XVIII.

Para que esse lugar fosse delimitado, foi necessária uma série de mudanças na estrutura da sociedade, especialmente na composição familiar e na institucionalização das crianças pela educação escolar. Como afirma Elisabeth Roudinesco, em seu livro "Família em desordem", por exemplo, a irrupção do feminino, no século XVIII, foi um dos elementos, ao lado do advento da burguesia, que fez com que a família se transformasse em uma célula biológica que concedia lugar central à maternidade (ROUDINESCO, 2003). Zigmunt Bauman, sociólogo polonês que analisa a transição da Modernidade para o que ele denomina de "Modernidade Líquida", pontua que a emergência de uma concepção de infância como idade privilegiada foi favorecida por uma Revolução Educacional que, a partir do século XVI, passou a: (1) separar parcialmente a criança do convívio do adulto por considerá-la imatura, ainda por se desenvolver; (2) separar a criança do convívio do adulto para receber cuidados por parte de profissionais especializados; (3) conferir à família a responsabilidade pela observação da vida educacional da criança (BAUMAN, 1998). Como aponta Lajonquière, "a chamada escola republicana foi a figuração discursiva mais acabada da infância dita moderna" (LAJONQUIÈRE, 2005, p. 11).

Não é o objetivo deste estudo pontuar exaustivamente as inúmeras transformações históricas, sociológicas e econômicas da sociedade medieval que culminaram no advento da Modernidade. De qualquer maneira, a partir desta breve pontuação, torna-se possível considerar que a família e a escola tiveram um papel fundamental na criação de um lugar simbólico para a infância na Modernidade. "A criança moderna uma criança indissoluvelmente ligada ao escolar, que lhe atribui o lugar social, a inserção social, é o que a constitui, o que lhe dá identidade" (KUPFER, 2007, p. 36). Se, por um lado, tal criação produziu um lugar simbólico para a noção de infância no adulto e possibilitou a ele endereçar à criança um discurso que limitasse lugares e, ao mesmo tempo, contornasse possibilidades discursivas, por outro, essa mesma diferenciação acabou por produzir uma série de necessidades imaginárias de conhecer a criança, dissecá-la, fragmentá-la, impedindo, talvez, a possibilidade do adulto de reconhecer-se nela, tal o mosaico de saberes científicos ali depositados.

A naturalização violenta da infância, via império do tecnocientificismo médico-psico-pedagógico pão-nosso da vida cotidiana, nas últimas décadas, deu lugar a um fantasma singular que ultrapassa toda divisão societária: A-Criança. Esse ser natural, dotado de direitos e necessidades educativas mais ou menos especiais, porém sempre clamante de satisfação, virou parâmetro comportamental onipresente na vida junto a esses seres pequenos, que temos o hábito, até agora, de chamarmos de crianças (LAJONQUIÈRE, 2010, p. 19).

Já na segunda metade do século XX e especialmente neste início do século XXI, o lugar da infância no Ocidente parece refletir essa ambivalência, produzindo efeitos reais, simbólicos e imaginários para a criança em sua constituição subjetiva. O que fez com que o lugar simbólico de infância na Modernidade se tornasse possível foi a consciência das diferenças entre crianças e adultos, e esta linha divisória entre a infância e a idade adulta – e, por extensão, vida privada e pública – parece estar se apagando. Há muitos fenômenos que podem ser observados e que ajudam a comprovar esta hipótese do desaparecimento da infância: o crescente índice de criminalidade infanto-juvenil; a fusão de gostos e estilos entre criança e adulto; a precoce iniciação da vida sexual; o aumento da gravidez na adolescência; a quantidade de jovens acometidos de doenças venéreas, entre outros.

Ainda que a criança permaneça a mesma em qualquer época histórica, com necessidades fisiológicas e psíquicas da mesma ordem, a constituição da criança enquanto sujeito encontra-se dependente das possibilidades discursivas do adulto, que atualiza, em sua relação com a criança real, sua criança imaginária. Desta feita, a maneira como tais necessidades são interpeladas depende da forma como as mesmas são interpretadas pelas possibilidades simbólicas do adulto, pré-existente à própria criança. A questão que surge é: quais as transformações psíquicas a que as crianças ficam submetidas frente a essas transformações simbólicas pós-modernas – especialmente nos lugares da família e, por extensão, na escola – que acabam por afetar o lugar simbólico também do sujeito adulto em nossa época?

 

A ESCOLA E A INFÂNCIA

            Aquilo que herdaste de teus pais, adquire-o para possuí-lo
(Johann W. Goethe)

A instituição escolar, invenção da Modernidade, tornou-se possuidora de grande força subjetivante, como aponta Lajonquière:

A tensão entre a família nuclear e a escola, ambas articuladas em torno da assimetria adulto/criança, continha a possibilidade de operar a recuperação metafórica do resto excedente na produção dessa mesma infância. O cruzamento entre assimetrias adulto/criança e família/escola possibilitava fazer deferir o suplemento do mesmíssimo processo instituinte da infância da época (LAJONQUIÈRE, 2005, p. 12).

Na Modernidade, a escola despontou como um lugar público, não familiar, onde as crianças eram interpeladas a responderem como se fossem os adultos que ainda não eram, criando um espaço de "faz-de-conta", uma quarentena, onde os educadores pediam às crianças para parecerem adultos, sem sê-los. Para a criança, essa demanda tornou-se extremamente importante na medida em que se pedia a ela que ocupasse um outro lugar, um lugar público, em que a ordem social instituía a diferença entre o público e o privado, dando ao sujeito infantil a possibilidade de se constituir a partir de uma legalidade simbólica que está aquém e além dele.

Em nossos dias, se vê um apagamento das diferenças entre família e escola, provavelmente ligado, por um lado, ao imperialismo das escolas particulares – em que "o cliente é o patrão" – e, por outro, aos psicologismos da vida cotidiana – em que as manifestações infantis são, muitas vezes, enquadradas em manuais psicológicos e psiquiátricos, tendo como reflexo uma boa quantidade de teses pedagógicas com fins a adequar esses "transtornos". Como denuncia Lajonquière (1999, p. 25), "se a educação hoje se converte a priori em um fenômeno de difícil acontecimento, tal coisa se deve ao império do ideário (psico)pedagógico contemporâneo". Ou seja, há um "padrão de comportamento" prescrito pelas teses que deve ser seguido; caso contrário, os especialistas intervêm para produzir – ao menos tentar – a normatização.

Ou seja, a criança entrega suas infantilidades a um leque de profissionais que tudo fazem e sabem, mas que a retiram de sua trajetória simbólica em busca de uma filiação, de um pertencimento, pois, neste contexto, só resta à família o não saber sobre sua criança. E, segundo Kupfer (2007, p. 38), "é a criança escolar que os pais trazem ao psicanalista. Para que ele ‘reenquadre' na moldura em que ela deve se conter, e em relação a qual está transbordando". É a criança escolar que é levada, embora ela própria ultrapasse esse lugar.

Talvez, desde o início do que alguns nomeiam como pós-modernidade, a escola não seja mais o lugar privilegiado da criança, como era em outros tempos. O fracasso da educação escolar, manifesto em diversas facetas, como dificuldades de aprendizagem, evasão, violência física e moral contra professores e alunos, atestam que algo está acontecendo com este lugar construído para a infância moderna. Neste contexto, um dos reflexos desse fracasso que se observa atualmente é o encaminhamento, feito por escolas, de crianças e adolescentes para serviços 'psi', como tratamentos psicológicos, psiquiátricos e neurológicos. Uma outra provável consequência pode ser o aumento de prescrições de psicotrópicos a crianças e adolescentes.

O termo TDAH, nosografia descrita no DSM IV, é utilizado por professores, muitas vezes indiscriminadamente, de acordo com pesquisas recentes, para justificar esses encaminhamentos, como aponta Escudeiro, sendo o mesmo termo utilizado para justificar a prescrição de metilfenidato, nome científico da ritalina (ESCUDEIRO, 2010). "Hoje em dia, a psicofarmacologia tornou-se, a despeito dela mesma, o estandarte de uma espécie de imperialismo", ressalta Roudinesco (2000, p. 23). A este respeito, Escudeiro observa:

No Brasil, (...) programas de difusão e tratamento do TDAH vêm sendo criados, tendo como premissa que a hiperatividade infantil é uma doença orgânica e que precisa ser medicada através do uso regular de psicoestimulantes como a Ritalina e o Concerta. O que ninguém ressalta é o fato de que alguns desses grupos de pesquisa e de esclarecimento à população são financiados pelas indústrias farmacêuticas que fabricam os medicamentos indicados no tratamento (ESCUDEIRO, 2010, p. 01).

 

A PESQUISA

O projeto de pesquisa em questão, intitulado "Da escola para a clínica? Análise de encaminhamentos escolares para tratamento psicológico no Laboratório de Psicologia Carolina Martuscelli Bori" visa elucidar essas questões e levantar outras, tendo como objetivo investigar os motivos dos encaminhamentos escolares de crianças para tratamentos psicológicos. Está sendo realizado por acadêmicas do quarto e quinto anos do curso de Psicologia do câmpus de Paranaíba/UFMS e por nós coordenado. O que levantamos como hipótese é que os encaminhamentos realizados pela escola a serviços de saúde mental estão menos relacionados a transtornos individuais das crianças – ao contrário da justificativa esboçada– e mais relacionados ao lugar simbólico da infância na atualidade, reflexo dos desdobramentos culturais, que transformaram os lugares simbólicos do adulto – nas funções de pai, mãe e educador – e, conseqüentemente, as instituições nas quais se estruturam. 

Em linhas gerais, buscamos refletir sobre a seguinte questão: o que sustenta os encaminhamentos de crianças, feitos por escolas públicas e particulares, para clínicas de Psicologia e, de maneira geral, para serviços de saúde mental? Há algo neles que se repete, refletindo um possível sintoma social no campo do infantil, ou as questões que demandam tratamento "psi" são singulares, individuais e atemporais, não havendo implicação entre elas e/ou entre elas e o Outro social, encarnado em adultos na posição de pai-mãe-educador? Através da escuta psicanalítica, sustentada pelo método psicanalítico, procura-se – porque a pesquisa ainda não terminou – investigar as demandas de pais e educadores para atendimento clínico de crianças encaminhadas para a clínica de Psicologia do câmpus a partir dos 04 anos de idade.

Este trabalho teve início em março de 2010 e é constituído por quatro eixos: o primeiro incluiu a discussão das possibilidades teóricas – e práticas – de articulação entre Psicanálise e Educação, especialmente as discussões levantadas por artigos e livros de Leandro de Lajonquière, Maria Cristina Kupfer e Maud Mannonni. O segundo eixo caracterizou-se por uma escuta feita com educadores de três escolas públicas da cidade de Paranaíba/MS, escolhidas por serem as que mais produzem encaminhamentos à clínica de Psicologia do câmpus. O terceiro eixo, que está em curso, envolve a escuta, tanto a pais quanto a crianças, sobre o que motivou os encaminhamentos produzidos pela escola e a consequente demanda de atendimento constituída pelos pais. Até este momento do projeto, foram escutadas cinco famílias, escolhidas por apontarem como queixa, no momento do pedido de atendimento, questões ligadas a dificuldades de comportamento – como nomeia superficialmente o senso comum – tais como desatenção, hiperatividade, agressividade, apatia. O quarto momento, ainda a ser realizado, objetiva implicar os educadores entrevistados nas escutas obtidas, tanto com eles próprios quanto com pais e crianças, a fim de provocar uma reflexão – e, talvez, deflexão – acerca dos encaminhamentos para atendimentos "psi" realizados, bem como instigá-los a se fazerem sujeitos de sua prática, assumindo para si o ato educativo. Esta quarta tarefa será inspirada principalmente em trabalhos realizados por Sandra Francesca Conte de Almeida, acerca da discussão da análise das práticas profissionais (ALMEIDA & KUPFER, 2011) e da ética no campo educativo (ALMEIDA, 2003).

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Trata-se de que a nossa implicação na polis possibilite que
as dores de hoje talvez sejam as liberdades de amanhã
(Leandro De Lajonquière).

O projeto ainda está acontecendo, mas já produziu possibilidades de reflexão a partir da questão que o convocou: por que, na contemporaneidade, a escola encaminha tantas crianças para atendimentos psicológicos ou com outros profissionais "psi", incluindo o neurologista? E por que, a partir desses encaminhamentos, a família de fato procura atendimento psicológico? Na conversa com os educadores, algumas questões se assemelharam, evidenciando um possível lugar simbólico constituído para a infância em nosso tempo. Essas questões apareceram nas entrevistas realizadas nas três escolas, com oito sujeitos, dentre eles diretores, coordenadores e psicólogas.

Uma evidência que surge é a possível desresponsabilização da escola pela criança e sua constituição subjetiva – ou, menos, seu desenvolvimento – e, consequentemente, a culpabilização da própria criança e, por extensão, de sua família, pelas supostas dificuldades civilizatórias, recorrendo a um terceiro – exterior – para dirimir suas dificuldades de educar: o saber técnico e protocolar dos profissionais "psi".  Uma questão que permanece é: o que, no adulto contemporâneo, a criança mobiliza que o faz convocar a ciência para mediar – colocar-se no meio e, assim, parece-nos, impedir – sua implicação com ela?

A convocação de um terceiro – melhor colocando, de uma exterioridade – para a efetivação do ato educativo – família, medicamento, profissional "psi" e o neurologista sustenta a desimplicação e o conseqüente declínio da educação do lugar humanizador, civilizatório, de transmissão de marcas simbólicas, e é cúmplice do conseqüente discurso médico, científico, totalizador, psicologizante e, portanto, obstaculizador, discurso esse sustentado pelo adulto contemporâneo nas figuras de pai – mãe – educador. Este movimento do adulto contemporâneo, que desinveste o ato educativo, simbólico e inventivo – sempre a posteriori, porque fura, abre e interfere – e investe no ato colonizador da ciência, imaginária, reprodutora – e sempre apriorística, porque fecha, tampona e impede – é respaldado pelo o império (psico)pedagógico, como observou Lajonquière há cerca de doze anos. Ao considerar a criança como selvagem, tal como fez Jean Itard com seu Vitor, busca catequizá-la com métodos, técnicas e tecnologias generalizantes, totalitárias, que se anunciam em cátedras pedagógicas e que produzem "O" saber, tomando o lugar da educação mesma. Não dando certo esse empreendimento – fato, geralmente, inevitável, embora não passível de ser escutado – recorre-se a saberes extramuros, tais como os da medicina e, especialmente, das áreas que podem medicar e, por que não, domar o selvagem. Domado, parece um adulto, e assim pode refletir nosso ideal atual.

O filho-criança tem de consumir e competir para pertencer e responder a essa inefável demanda do Outro. Consumida, consumindo-se, a criança consegue ser hoje esse objeto desejoso e gozoso entregue ao espírito que a época atual lhe destina, na sua diversidade alienante. (...) Face à vertiginosa e imperiosa exigência de produzir ‘harmonicamente', colocada pelo discurso atual da modernidade, a criança nos indica o dês-tempo, denunciando com seus sintomas, fracassos, inibições, bloqueios, detenções, ‘hipercinesias' e instabilidades, o mal-estar e a desarmonia de um sujeito" (LEVIN, 2001, p. 45-48).

O adulto contemporâneo, encarnado nos pais e nos educadores, defende-se na criança contemporânea de sua própria castração e de seu próprio recalcado, demandando a ela que pareça adulta, evitando a transmissão da falta e impedindo que invente sua verdade e que lance a palavra ao rodeio, já que "educar é colocar em circulação marcas simbólicas, significantes que possibilitem à criança que os apreende o usufruto de um lugar a partir do qual o desejo seja possível" (LAJONQUIÈRE, 2010, p. 149). É justamente a demanda que pareçam adultas que obstaculiza a inscrição de sua falta e impossibilita que se constituam como sujeitos de desejo, separando-se desse discurso imaginário e, portanto, alienante. Nas palavras de Lajonquière, "A-Criança é um álibi para nada sabermos que alguma vez fomos seres-pequenos. Por isso mesmo, nela investimos nossas energias e desvelos" (LAJONQUIÈRE, 2010, p. 21). O que retorna invertido dessa demanda de perfeição é o fracasso, espelhado no fracasso parental e escolar de transmitir a falta, motor do desejo.

Assim, por um lado os pais vêm à clínica colados no discurso da escola que aponta o fracasso da criança – e o legitima pelo saber institucionalizado que representa – e demandam uma cura, por outro lado, por vezes, escola e família se acusam, espelhando a si próprias e seus fracassos. Defendem-se e se tornam cúmplices nessa desimplicação, colocando a criança para fora da escola e na porta da clínica que, por muitas vezes não poder também escutar essas enunciações produtoras deste sintoma social contemporâneo, cala a boca da criança com as novidades psicofarmacológicas ou com as técnicas ortopédicas de adaptação – no caso das teorias "psi" exteriores ao campo do inconsciente freudiano.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALMEIDA, S. F. C. Psicologia Escolar: ética e competências na formação e atuação profissional. São Paulo: Alínea, 2003.

ALMEIDA, S. F. C.& KUPFER, M. C. M (orgs.). A Psicanálise e o trabalho com a criança-sujeito. Rio de Janeiro: Wak Editora, 2011.

ARIÈS, P. História social da criança e da família. Rio de Janeiro. Jorge Zahar, 1981.

BAUMAN, Z. O mal-estar da Pós-Modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.

ESCUDEIRO, M. L. A medicalização na infância: um mercado em expansão. In www.ufrj.br.

KUPFER, M. C. Educação para o futuro: Psicanálise e Educação. São Paulo: Escuta, 2007.

LAJONQUIÈRE, L. Infância e ilusão (psico)pedagógica. Rio de Janeiro: Vozes, 1999.

LAJONQUIÈRE, L. A Psicanálise e o debate sobre o desaparecimento da infância. Educação & Realidade, UFRGS, v.31, pp.89 - 106, 2006.

LAJONQUIÈRE, L. Figuras do Infantil: a psicanálise na vida cotidiana com as crianças. Rio de Janeiro: Vozes, 2010.

LEVIN, E. A função do filho: espelhos e labirintos da infância. Rio de Janeiro: Vozes, 2001.