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ISBN 978-85-60944-35-4 versión on-line

An 8 Col. LEPSI IP/FE-USP 2011

 

Entre ensino e ato: notas de psicanálise e educação

 

 

Douglas Emiliano Batista

O autor é doutorando pela FEUSP; é professor de filosofia no Colégio FECAP; é membro do LEPSI FE-IP-USP

 

 

É possível operar com a noção de "ato" para refletir sobre questões pertinentes ao contexto do ensino e também da educação?

Em primeiro lugar, precisamos nos descolar da especificidade daquilo que só aconteceria no setting analítico, para que a homologia dos termos não suscite uma equivocada e simplista transposição de idéias de uma práxis para outra. Tendo isso em mente, talvez se possa continuar, ainda se inspirando pela psicanálise, a usar o termo ato para se referir a um tipo de acontecimento singular cujo efeito é causar uma mudança de posição subjetiva, mas não necessariamente uma destituição subjetiva (tal como se espera da análise). Nesta perspectiva, entenderíamos o ato de ensino como aquele que pode levar a uma transformação subjetivante, ou seja, ao engendramento de uma singular subjetividade desejante, ou, ao deslocamento de um sujeito de uma posição discursiva para outra, a partir da transmissão inconsciente de marcas veiculadas entre o dito e o não-dito de um discente para um docente. Nesta medida, o ato do ensino, assim como o ato analítico, seria também insondável, e, por isso, não passível de ser planejado didaticamente e não verificável a partir de avaliações pedagógicas. Em outros termos, o ato de ensino é o que ensejaria ao outro e no outro um novo início no que diz respeito à aquisição de conhecimentos e à consolidação do interesse geral pelo mundo (encetando, dessa forma, um "trabalho de cultura").

O ato, por excelência, chama à existência algo novo, inaugura algo inédito, preside um novo começo (um recomeço imprevisível a priori), ou, em outras palavras, o ato é mesmo o marco a partir do que se estabelece um antes e um depois. E dado que é então um marco temporal, o ato - embora se trate de invenção ou criação propriamente ditas - não implica meramente um começo novo a partir de uma espécie de "grau zero", isto é, a partir de uma "tábula rasa" do passado (se assim o fosse, não seria propriamente o marco de um antes e um depois). E mais: para que efetivamente venha a presidir uma renovação, o ato é por assim se dizer um "ato sem potência", isto é, um ato sem potencialidades prévias que determinariam a priori o devir de um sujeito. Ora bem, mas em que termos poderíamos pensar então em um "ato de ensino"?

 

Ensino e educação: diferenças e articulação (im)possível

Inicialmente, seria preciso estabelecer a diferença entre ensino e educação bem como a sua sutil articulação (articulação essa que é "frágil" o bastante a ponto de nos obrigar a dizer que a educação é mesmo (im)possível).

Ensinar é "ensignar", é colocar em signos, é mostrar, é demonstrar. Nesse sentido, pode-se dizer que o ensino diz respeito ao que é "dito" pelo professor, isto é, diz respeito a conteúdos que são propriamente representáveis, a conhecimentos que mobilizam os processos secundários do psiquismo (conhecimentos esses que, portanto, bem podem ser socialmente validados, socialmente compartilhados). De certa forma, na escola ensina-se (ou dever-se-ia ensinar) o "Conhecimento constituído", seja ele matemático, químico, filosófico, literário, físico etc. Mas por outro lado, a educação, que não se confunde estritamente com tudo aquilo que é passível de ser colocado em signos (ao mesmo tempo em que não está totalmente desarticulada daquilo que é ensinável), implica um saber não sabido, isto é, implica o que não é representável enquanto tal (ou seja, implica o "não-dito" pelo professor). Em outras palavras, a educação implica a Outra cena, a saber: a falta, o equívoco, a divisão psíquica, os processos primários, ou simplesmente o inconsciente. Claro que ao se propor aqui tal esboço de diferenciação entre ensino e educação não se está pretendendo cindir irremediavelmente uma coisa da outra. Ao contrário, o ensino (consciente) e a transmissão (inconsciente) não deixam de constituir, de certo modo, dois lados da mesma moeda (mesmo que no caso em questão uma das efígies não tenha exatamente o mesmo "peso" que a outra, e o que faz com que aí o jogo de "cara ou coroa?" não esteja inteiramente submetido às leis do acaso, dando-se antes a sobredeterminação da "efígie" consciente pela inconsciente). Restaria ver como o desdobramento dessa diferença e dessa articulação sutil entre ensino e educação poderia ou não estar implicado pelo "ato de ensino".

Mas antes disso propriamente, não será demais lembrar aqui que na Pedagogia em geral os termos "ensino" e "transmissão" despontam normalmente como sinônimos. Evidentemente, na medida em que o ensino é pensado nesse campo enquanto veiculação de conteúdos epistêmicos dirigidos por um indivíduo consciente (isto é, não-dividido) a outros indivíduos conscientes (também não-divididos), o ensino não aparece como outra coisa senão uma transmissão mais ou menos calculada de conteúdos socialmente validados, transmissão essa que teria como emissor o professor e que teria como destinatários os alunos. E dado que o inconsciente não é teoricamente suposto em tal cenário, então a ilusão em torno da possibilidade de "garantir o aprendizado" fica, no mais das vezes, como que hipertrofiada. Ou seja, na Pedagogia, ao menos de modo geral, a suposição de uma "articulação forte" entre ensino e aprendizado (entre ensino e educação, se se preferir) lhe é propriamente falando constitutiva, ou, ao menos, lhe foi constitutiva desde Comenius até o início do século XX, quando o Escolanovismo transformou profundamente as práticas e concepções pedagógicas. Em outros termos, a "ausência" do inconsciente nas teorias pedagógicas costuma produzir a convicção de que haveria – ou de que poderia haver - uma complementação satisfatoriamente harmônica entre "aquilo que se ensina" e "aquilo que se aprende".

Entretanto, mediante o advento do Escolanovismo assistiu-se a uma declinação dessa idéia de ensino (declinação que acabou arrastando consigo o próprio professor e o seu professar, reduzindo aquele a um suposto "educador" ou "facilitador" que rechaça o ensino bem como as aulas "expositivas" e "tradicionais"). Em outras palavras, desde a Escola Nova que o ensinar passou a ser entendido, hegemonicamente, como transmitir conhecimentos mortos e petrificados ao aluno. Por sinal, o único modo então de, supostamente, educar sem "violentar" o aluno consistira fundamentalmente em desenvolver aquilo que o aluno já traria dentro de si mesmo: suas alegadas capacidades maturacionais, suas potencialidades inatas, seus "dons" naturais.

De certo, em tal cenário o ato de ensino – que é criador, e que nunca deveria se resumir a meramente desenvolver aquilo que preexistiria no sujeito – torna-se mesmo um fato de improvável acontecimento. Ou como diz Arendt (2000, p. 246-47): "Não se pode educar sem ao mesmo tempo ensinar; uma educação sem aprendizagem é vazia e portanto degenera, com muita facilidade, em retórica moral e emocional. É muito fácil, porém, ensinar sem educar, e pode-se aprender durante o dia todo sem por isso ser educado". Eis que o ensino é absolutamente imprescindível para se educar alguém, já que uma educação sem ensino degenera facilmente em "retórica moral e emocional" (a pedagogia do amor é uma de suas formas mais recentes no Brasil). Mas por outro lado, uma vez que o ensino não é "garantia" de educação, pode-se ensinar sem que com isso se eduque alguém (tal como ocorre com muitas escolas que procuram retomar atualmente – embora de forma no mais das vezes irrefletida - o "furor pedagógico" de outros tempos). Em uma palavra: em que pese que o ensino não seja "garantia" de educação, ele é sem dúvida condição sem a qual não há qualquer educação possível. Mas por outro lado, é preciso reconhecer que o ensino não é propriamente a condição pela qual há uma educação. Por sinal, pode-se indagar, em face disso, se seria possível dizer com clareza e distinção qual é a referida "condição pela qual" a educação é tornada possível. Diante de tal pergunta, a nossa resposta seria não, na medida em que conhecer a condição pela qual se dá a educação seria o mesmo que torná-la literalmente possível, ou em outras palavras, seria o mesmo que extricar definitiva e cabalmente o enodamento RSI, ou implicaria então aniquilar de uma vez por todas o desejo inconsciente, ou exigiria simplesmente suprimir irremediavelmente a divisão psíquica que é estrutural ao psiquismo. A condição pela qual se dá uma educação é da ordem do impossível.

 

Ensino enquanto atividade; ensino enquanto ato

Ato não é atividade. Nesses termos, o ensino enquanto atividade não se confunde com o ato. Isto é, a atividade de ensino bem pode ser – e deve mesmo ser – planejada, executada e repetida ano após ano ("repetição" essa que sofre ou não mudanças que vão das mais discretas às mais radicais). Tal atividade possui uma finalidade estabelecida com determinada clareza (podendo-se por isso dizer que é intencional), ou seja, ela visa incitar o aprendizado por parte do aluno de conteúdos ministrados ao longo de um determinado número de aulas. Após tal ministração de conteúdos, os alunos podem então ser avaliados por meio de um ou de outro sistema de verificação.

Pois bem, mas já o ato analítico não se trata, de forma alguma, de uma veiculação de conhecimentos específicos ou "objetivos" da parte do analista ao analisando. O ato analítico refere-se antes a uma destituição subjetiva para além do saber do Outro (isto é, ele singulariza o sujeito na medida em que ultrapassa até mesmo a busca, da parte desse sujeito, pelo "saber no Outro", no campo do significante). O ato se refere, assim, à precipitação de uma "perda", isto é, à falta em saber. O ato é pois um acontecimento singular, insondável, irrepetível, e é na medida mesmo em que é um ato inaugural que chega então a demarcar um antes e um depois para um sujeito. Eis que o ato, nesse sentido, não remete o sujeito ao "conhece-te a ti mesmo", embora seja graças ao ato que o sujeito se autoriza a se haver com o impossível da dialética do desejo inconsciente.

Mas diferentemente do ato analítico, o ato de ensino não poderia implicar tal destituição subjetiva, até mesmo porque não se trata da "travessia do fantasma" enquanto tal. O ato de ensino, no entanto, bem pode fazer efeitos no que toca à transformação subjetiva, isto é, no que toca ao deslocamento discursivo do sujeito. O ato de ensino implicaria, então, uma mudança de posição simbólica. Desse ponto de vista, o ato de ensino também seria insondável (isto é, não seria planejável previamente e tampouco seria posteriormente verificável por meio de sistemas avaliativos). Ora bem, mas então o que tal ato de ensino inaugura? Se ele dá início a algo novo, a um novo início que é de antemão imprevisível, se funda algo novo, e se esse "algo" não preexistiu em potência ao ato mesmo, do que se trata afinal nesse caso?

Pois bem, a particularidade do ato de ensino seria a de encetar um singular "trabalho de cultura". O ato de ensino enseja, pois, ao outro e no outro um novo início no que diz respeito à aquisição de conhecimentos e à consolidação do interesse geral pelo mundo. Em outras palavras, o ensino enquanto ato fecunda ou erotiza o aprendiz, e assim o impulsiona ao saber e também a saber, relançando-o – ao mesmo tempo em que o captura uma vez mais - na dialética do desejo inconsciente de saber. Em uma palavra, o ato de ensino, para além da imprescindível atividade de ensino pela qual se pode mostrar aos alunos uma parte dos Conhecimentos constituídos, é aquilo graças a que o aluno pode vir a autorizar-se a adquirir um Saber do qual ele é herdeiro e que comporta a face instituinte daquilo que é já do Conhecimento do Outro, daquilo que é socialmente compartilhado no mundo (e em particular no interior dos diversos campos epistêmicos) pelos sujeitos.

 

Referências bibliográficas

ARENDT, H. (2000). Entre o passado e o futuro (M. W. Barbosa, trad.). São Paulo, Perspectiva.

LACAN, J. (s/d). O seminário, livro XV: o ato Psicanalítico, 1967-1968. Mimeo.