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ISBN 978-85-60944-35-4 versión on-line

An 8 Col. LEPSI IP/FE-USP 2011

 

Educação e Psicanálise: quando o saber  faz a travessia do desejo

 

 

Eliana de Jesus Menezes

Pedagoga, Psicopedagoga Docente em Cursos de Pós-Graduação em Psicopedagogia Clínica e Institucional menezeseliana@bol.com.br

 

 

Principiando uma escritura

A leitura faz sua inserção no contexto cultural das pessoas desde o início da infância no entorno social e familiar, precedendo a entrada na escola.

O ato de ler é fundante porque tem o poder de desnudar o obscuro, abrindo caminhos para uma consciência reflexiva, interiorizada e transformadora sobre o mundo.  A leitura conduz o homem à instigação, à problematização e ao discurso, ou seja, ela é um instrumento desmistificador das ações humanas.  Portanto, ler representa ser interpelado pelo mundo e por si mesmo, afirma Foucambert (1994).

Porém, milhões de brasileiros não têm acesso à cultura da leitura crítica transformadora e as crianças fazem parte desse contingente.  Os pais desses infantes, na maioria das vezes, não dispõem de recursos suficientes para aquisição de diversas ferramentas para leitura, dentre elas, o próprio livro.  E ainda se tem uma escola que trabalha a leitura de forma mecânica, tradicional, excludente e elitista, favorecendo aos interesses das classes dominantes.  Uma escola cujo papel é de dividir os alunos decifradores e leitores onde quem decifra é conduzido a produzir, em contrapartida, os que leem ao saber e ao poder como afirma Foucambert (1994).

Portanto, essas lacunas no acesso à leitura tornam-se um desestímulo ao ato de ler.  Várias pesquisas sobre leitura provam que crianças que têm pais que leem para elas conseguem fazer dessa atividade um prazer, no entanto, além da falta de recursos, os pais não têm tempo disponível para tal prática.

Leiturabilidade da família surgiu inicialmente com o estudo centrado nos pais como colaboradores da escola no processo de ensinar a criança a ler.  Mas era premente ampliar o foco já que era preciso ver o contexto mais amplo da família, como seus membros exercem as suas leituras e fornecem para as crianças ambientes propícios para que aprendam e gostem de ler.  Atualmente é vista como um dos mais importantes elementos no desenvolvimento da leitura (Witter, 2010, p. 177).

Além do mais, as crianças, na contemporaneidade, estão, cada vez mais, desinteressadas pela leitura devido aos apelos da televisão, entre outros veículos de massa que, além de alienar, prejudicam o desempenho e a criatividade dessas crianças.

A primeira formação do imaginário não passa mais pelo mundo familiar ou das culturas locais, a não ser uma escassa parte, mas, antes, é dominada pela televisão, absorvida pelas crianças europeias por cerca de 5 horas ao dia e pelas americanas por cerca de 7 horas.  E, agindo sobre o imaginário, penetra com seu alimento e seu veneno em toda a personalidade infantil, adolescente e juvenil (sobretudo), determinando condicionamentos de gênero variado: provocando homologações planetárias, transcontinentais e transculturais (a "aldeia global"), ativando processos cognitivos diferentes do passado (se "o meio é a mensagem", como foi dito, a linguagem icônica da televisão empobrece ou substitui a inteligência verbal, conceitual, lógica, com notáveis riscos para a cultura e para a identidade psíquica dos sujeitos) e regulando modas, consumos, modelos de comportamento, afirmando-os como autorizados através da visão reiterada e a fruição imediata que ela produz (Cambi, 1999, p. 631).

Evidencia-se com isso uma dicotomia entre a leitura promovida pelo livro e pela televisão.  A primeira leva o sujeito a (re)construir sua história possibilitando um contato mais próximo com os aspectos afetivos, cognitivos e psíquicos que a leitura traz no seu bojo de (des)encantamento do mundo.  Já a televisão, com seu poder persuasivo e massificador, propicia ao sujeito que não sabe utilizá-la no seu modo de transmissão cultural, efeitos negativos para seu desenvolvimento e sua inserção na sociedade contemporânea.

Portanto, compete à família e à escola buscar possibilidades de acesso à leitura, incentivando o interesse pela leitura como ferramenta para entender o mundo, ou seja, uma leitura significativa que explore a escrita de uma maneira não-linear, com outros sentidos e várias formas de ler como afirma Foucambert, dando à criança uma bagagem muito maior de conhecimentos e motivação à sua imaginação e criatividade.

A sala de aula ainda é um espaço privilegiado para o desenvolvimento do gosto pela leitura. Nela poderá surgir futuros autores, escritores, artistas e bons leitores se  a leitura for um momento de criação, em que o aluno sinta prazer em ler uma história sem encará-la como uma tarefa a mais a cumprir, ou como uma decodificação sem significados.  "A leitura deve ser considerada no seu aspecto mais consequente, que não é o da mera decodificação, mas o de compreensão" (Orlandi, 1993, p. 38).

A escrita tem como objetivo essencial o fato de alguém ler o que está escrito, ou seja, o objetivo primeiro da escrita é permitir a leitura.  A escrita se diferencia de outras formas de representação do mundo, não só porque induz à leitura, mas também porque essa leitura é motivada.  A motivação da escrita é sua própria razão de ser, enquanto que a decifração constitui apenas um aspecto mecânico de seu funcionamento.

A escrita deve ser vista como algo significativo, que possui propósito e que permite ao aluno expressar sentimentos e intenções.  Envolve, pois, não só saber escrever (produto), mas também poder comunicar-se de forma autêntica (Witter, 2010, p. 199).

A escrita introduz modificações cognitivas para o sujeito que a adquire, bem como alterações nas práticas sociais que está envolvido.  Trata- se de uma linguagem estruturante e que dá acesso a outras linguagens e como bem cultural requer por parte dos sujeitos a sua apropriação, pois o sujeito precisa participar do modo de produção e expansão da língua escrita, tornando-os membros da cultura escrita e usuários desse sistema, comenta Ferreiro(1993).

Segundo Soares (2008) o ato de escrever é um processo em que o autor expressa suas ideias, a organização do pensamento através do relacionamento entre unidades sonoras e símbolos escritos.  A escrita tem um potencial para revelar o sujeito na sua dimensão pessoal . Do ponto de vista social está atrelado ao uso e sua função social, ou seja, além ter uma dimensão pessoal, a escrita, sobretudo é uma prática social onde há uma relação do que se faz com a habilidade de escrever e a necessidade, o valor que esse conhecimento tem no contexto social em que o sujeito está inserido.   Ela atende as demandas que a sociedade faz, assim como, pode ter um caráter transformador das relações injustas e indesejáveis que permeiam a sociedade.

Cagliari (1990) vai dizer que a história da escrita vista no seu conjunto pode ser caracterizada como tendo três fases distintas: a pictórica, que se distingue pela escrita através de desenhos ou pictogramas.  Estes aparecem em inscrições antigas, mas podem ser vistos de maneira mais elaborada nos cantos Ojibwa da América do Norte, na escrita asteca e mais recentemente nas histórias em quadrinhos.  A ideográfica se caracteriza pela escrita através de desenhos especiais chamados ideogramas.  Esses desenhos foram, ao longo de sua evolução, perdendo alguns dos traços mais representativos das figuras retratadas e tornaram-se simples convenção da escrita.  As letras do nosso alfabeto vieram desse tipo de evolução e, por fim, a fase alfabética caracteriza-se pelo uso das letras. 

O invento da escrita continua sendo um processo histórico de elaboração de um sistema de representação e não de codificação.  Ou seja, a escrita é a representação da linguagem, afirma Ferreiro (1993).  É um saber construído, carregado de sentido para o sujeito que escreve, marcando o significante e o significado.

 

Desvelando o desejo

Contudo, mesmo diante do recorte anteriormente apresentado sobre a importância da leitura e da escrita, deparamo-nos com uma questão que norteia nossa prática na área da educação ao longo dos anos: se ler e escrever é algo tão fascinante e promissor, por que muitas de nossas crianças não se interessam , não desejam produzir e até mesmo buscar o saber contemplado na leitura e na escrita?  E, como consequência disso, ocorrem situações de fracasso escolar, as dificuldades na relação professor-aluno, dentre outros sintomas.

Poderíamos apontar os problemas econômicos, sociais e culturais de nosso país, a nossa história educacional que mostra como fomos colonizados pelo saber que vinha das escolas jesuítas com suas normas e imposições como uma resposta a essa questão, porém acrescentamos a esses fatores uma falta que se nomeia desejo.

... não existe relação com o saber a não ser de parte de um sujeito, e o sujeito é desejo.  Há então, incontestavelmente, na própria maneira de apresentar o problema do fracasso escolar como questão da relação com um saber, um ponto de encontro com a Psicanálise (Charlot, 2005, p. 46)

Segundo Marilena Chauí (1990), a palavra desejo tem uma imponente origem.  É derivada do verbo desidero que, por sua vez, deriva-se do substantivo sidus (no plural sidera), o que significa a figura formada por um conjunto de estrelas.

Porque se diz dos astros, sidera é empregado como palavra de louvor – o alto – e, na teologia astral ou astrologia, é usado para indicar a influência dos astros sobre o destino humano, donde sideratus, siderado: atingido ou fulminado por um astro.  De sidera, vem considerare – examinar com cuidado, respeito e veneração – e desiderare – cessar de olhar (os astros), deixar de ver (os astros) (Chauí, 1990, p.22).

Na contemporaneidade, o desejo passa de conceito metafísico a conceito psicológico.  Segundo a mesma autora:

De interpretante das estruturas e acontecimentos cósmico-teológicos, o desejo passou a significante das operações e significações inconscientes da psique humana.  O desejo – eros platônico, mímesis aristotélica, simpatia-antipatia universais renascentista, Lust-Begierde dos mistérios teosóficos böhmeanos - deixou de ser o motor e o móvel do universo para recolher-se no interior da alma, simples paixão humana  (Chauí, 1990, p.22). 

Ou seja, deixa a condição e suporte de cosmo para ser objeto da psicologia e do campo teórico da psicanálise.

Daí, cessando de olhar e deixando de ver – desiderium - significa um perda, privação do saber, é a decisão de tomar nosso destino em nossas próprias mãos e o desejo chama-se, então, vontade consciente nascida da deliberação, que os gregos chamavam bóulesis, como também carência, vazio que busca preenchimento que os gregos chamavam de hormê.  Essa natureza ambígua do desejo, podendo ser decisão ou carência, conduz-nos ao sentido de desejar transparente nos dicionários vernáculos: desejar é querer, ter vontade, ambicionar, ansiar, anelar, aspirar, cobiçar, atração sexual, afirma Chauí (1990).

Na Psicanálise, o desejo também aparece como falta, carência e ausência.  Freud utiliza dois termos para designar o desejo: Wunsch e Lust.  Segundo o dicionário Comentado do Alemão de Freud (1996), Wunsch, no original, tem um caráter fortemente imaginário, remete ao ideal, ao sonho e a objetivos mais distantes e almejados.  É o desejo do inconsciente.  Já o Lust se traduz como prazer, vontade, disposição de fazer algo, é o desejo mais imediato e ligado às funções intelectuais e morais. 

Segundo Rosolato (1999), o desejo está no âmago do funcionamento mental e da psicanálise.  É constituinte da fantasia, do sintoma e expressa-se no sonho.  Distingue-se da pulsão por estar ligado às representações e aos significantes das imagens oriundas das primeiras percepções, enquanto esta, a pulsão, se delimita entre o psíquico e o somático, é uma carga energética encontrada no cerne da atividade motora do organismo.

O desejo está seguramente no cerne da pesquisa psicanalítica, nos conflitos entre suas diversas orientações, com os recalques e as defesas resultantes, com as transposições, as sublimações e os ideais que se revelam.  O alcance do desejo é de fato a própria psicanálise (Rosolato, 1999, p. 15).

A busca pelo desejo se faz através da fantasia que o sustenta pelo objeto de perspectiva.   As fantasias originárias – a cena originária (o segredo dos sexo na relação dos pais), a castração  (sanciona a agressão contra o pai), a sedução  (acesso ao amor, ao sexo, ligada à linguagem e à educação), e o retorno ao seio materno (proteção nos sofrimentos e conflitos) – proporcionam  esquemas para se buscar o desejo, afirma Rosolato (1999).

Lacan (1979) vai dizer que o desejo é o desejo do Outro, consistindo em querer saber qual o desejo do outro, para se colocar nesse lugar de desejado.  O grande Outro representando a lugar simbólico de onde provém a linguagem e o outro (minúsculo) significando o semelhante na relação recíproca, fraterna.  Por exemplo, a mãe é suposta, quando ela é o agente da maternagem, como desejante e demanda ao filho, a partir da linguagem, significados para os seus pedidos e choros.  Com isso, configura-se, assim, o processo do desejo humano, donde um pede, o outro responde, mas nunca há o encontro (já que a mãe se ocupa sempre outra coisa: o trabalho, os afazeres domésticos, o pai) dando essa dimensão de falta estrutural, que nunca poderá ser preenchida, uma vez que o objeto perdido (objeto a) jamais será encontrado (apenas existiu no processo primário de alucinação do bebê).

O desejo é no sujeito humano, realizado no outro, pelo outro – no outro como vocês dizem.  Está aí o segundo tempo, o tempo especular, o momento em que o sujeito integrou a forma do eu.  Mas só pôde integrá-la após um primeiro jogo de báscula em que trocou justamente o seu eu por esse desejo que vê no outro.  Desde então, o desejo do outro, que é o desejo do homem, entra na mediatização da linguagem.  É no outro, pelo outro, que o desejo é nomeado (Lacan, 1979, p. 206).

Segundo Dor (1989) a criança no momento de sua constituição passa por uma experiência que Lacan denominou o estádio do espelho organizado em três tempos fundamentais.  No primeiro tempo, a criança vê seu corpo aos pedaços, desintegrado, ou seja ela se confunde com si mesma e com o outro pois, é no outro que inicialmente ela se vivencia e se orienta.  No segundo tempo, ela descobre que o outro no espelho é uma imagem e não um outro real constituindo um momento de identificação que no terceiro tempo se realiza quando a criança se certifica que o reflexo do espelho é puramente a sua própria imagem, ela integra o eu, não se vendo mais esfacelada, mas, integrada, inteira, por completo, nesse instante o desejo se presentifica e entrando no mundo simbólico, da linguagem dar nome ao desejo.

Para a psicanálise, a gênese do desejo de saber está na curiosidade infantil sobre o sexual, na fase dos porquês – de onde vim, como nasci? - são questões que permeiam o imaginário das crianças ainda na fase edipiana.

O Complexo de Édipo é central na teoria freudiana, pois é uma fase estruturante para todo sujeito, decidindo o futuro da sexualidade e da vida psíquica adulta.  Baseado na tragédia de Édipo Rei, em que o filho mata o pai e se casa com a mãe sem saber, ponto que marca o inconsciente, o não-sabido, ou seja, Édipo não sabia que a mulher pela qual se apaixonara era sua mãe. Freud, fazendo uma analogia com a lenda grega e as fantasias que a criança tem em relação aos seus pais, formula a teoria edipiana.

Podemos comparar Édipo com o próprio inconsciente: este, o decifrador de enigmas, que busca a verdade escondida, deformada pelas tramas da linguagem, presa no mal-entendido das gerações; Édipo como o que procura incansavelmente a verdade, mesmo quando os que estão a sua volta dizem "deixa para lá" - Jocasta faz isso em dois ou três momentos da peça (Brunetto, 2008, p. 76).

O Complexo de Édipo é uma experiência psíquica de ordem inconsciente, vivenciada pela criança por volta dos três aos cinco anos de idade na qual tem uma relação libidinal para com a mãe e de hostilidade para com o pai.

Estou pensando no complexo de Édipo, assim denominado porque sua substância essencial pode ser encontrada na lenda grega do rei Édipo, a qual felizmente pôde chegar até nós na versão de um grande dramaturgo.  O herói grego matou o pai e tomou a mãe como esposa.  Que assim tenha procedido inintencionalmente, visto não os conhecer como pais, constitui um desvio dos fatos analíticos que podemos facilmente compreender e que, na verdade, reconheceremos como inevitável (Freud, 1996a, p. 201).

A angústia da descoberta da diferenciação dos sexos vivenciada no Édipo faz com que a criança queira saber. "A criança descobre diferenças que a angustiam. É essa angústia que a faz querer saber. Os instrumentos de que a criança pode dispor são os que Freud chamou de investigações sexuais infantis" (Kupfer, 1992, p. 80). Essa curiosidade que provem da pulsão de saber, se forem fixadas no psiquismo da criança, poderá trazer uma continuidade da busca do saber no período de latência, onde as crianças estão mais voltadas para as atividades intelectuais.

Freud (1996), em seu trabalho sobre Leonardo Da Vinci e uma lembrança de sua infância, faz uma alusão em relação ao cerne do desejo de saber a partir das curiosidades sexuais infantis que Leonardo teve em sua infância.

A sua origem ilegítima privou-o da influência do pai, talvez até os cinco anos, e deixou-o entregue à carinhosa sedução de sua mãe para quem ele talvez fosse o único consolo.  Depois que seus beijos lhe despertaram precocemente a madureza sexual, deve ter provavelmente atravessado uma fase de atividade sexual infantil da qual uma única manifestação foi definitivamente comprovada – a intensidade de suas pesquisas sexuais infantis.  O instinto de ver e de saber foram os mais fortemente excitados pelas impressões mais remotas de sua infância (Freud, 1996b, p. 136).

Com isso, Freud focaliza o desejo de saber nas questões sexuais que a criança formula na infância diante das relações parentais.  Leonardo se interrogava quanto ao lugar que seu pai ocupava na relação entre ele e sua mãe diante desse universo sedutor e afetivo em que viveu intensamente com ela.  Também analisando os trabalhos de Leonardo, Freud coloca que houve uma fixação da libido nessa relação com a mãe e, consequentemente, seu desejo de querer saber se prolongou até sua vida adulta. 

 

Bordando o saber

Portanto, delineia-se com tudo isso que o saber faz uma travessia pelo desejo desde a infância, ou seja, desde quando as crianças elaboram suas questões de natureza sexual, levando-as a querer saber e que, por isso, o desejo e o saber estão intrincados um no outro, fazendo um par que se enlaça nos processos educativos e civilizatórios dos quais a criança passa como mostra a figura abaixo:

A concepção de saber para a ciência é de um saber totalizante, sistematizado e universal e a escola tenta dar conta de reproduzi-lo no cotidiano de suas práticas.  Um saber que, para a ciência, tenta dar conta da falta que é inerente ao homem e que procura ocupar um lugar, uma posição, como afirma Lacan (1992), definindo o discurso do mestre como, por excelência, submetido à lei, onde existe um saber sobre tudo, fazendo um aporte à dialética do senhor e escravo de Hegel.

Está aí todo o esforço de deslindamento do que se chama episteme.  É uma palavra engraçada, não sei se vocês algum vez refletiram bem sobre ela – colocar-se em boa posição, é em suma a mesma palavra que verstehen.  Trata-se de encontrar a posição que permita que o saber se torne um saber de senhor.  A função da episteme especificada como saber transmissível – remetam-se aos diálogos de Platão – é sempre tomada por inteiro das técnicas artesanais, quer dizer, dos servos.  O que está em questão é extrair sua essência para que esse saber se torne um saber de senhor (Lacan, 1992, p. 19).

A ciência busca ocupar o lugar do mestre, de senhor, a partir do saber do escravo.  Ela se apropria desse saber que o escravo tem das coisas, do mundo e de si mesmo para torná-lo um saber absoluto, completo, que dê conta da incompletude do sujeito.

Na Psicanálise, o saber é revelado como incompleto, apresentando furos e impasses, pois é da ordem do inconsciente estruturado como uma linguagem, do não-todo.  O saber na psicanálise é o saber que o sujeito elabora, é sempre singular.

Vou direto ao de que se trata – o saber, ele é um em enigma.  Esse enigma nos é presentificado pelo inconsciente tal como se revelou pelo discurso analítico.  Ele se enuncia assim – para o ser falante, o saber é o que se articula (Lacan, 1982, p. 192).

 

Elucidando a questão

Porém, quando chega o momento de entrada na escola, a criança pode não querer saber porque ainda não ultrapassou o seu movimento edípico e, inevitavelmente, faz sintomas, como baixo rendimento, dificuldades na relação com o professor, indisciplina e outros para se defender do que ela pensa ser a demanda do Outro.

Desde a pré-escola, alguns pais se inquietam com as performances intelectuais de  seus filhos e com suas possibilidades de sucesso; querem, às vezes, fazê-los "pularem" o último ano da pré-escola, pois um ano de avanço é sempre útil para a preparação dos concursos mais tarde!  A criança percebe muito bem que ela tem de responder a uma expectativa.  O sucesso é exatamente este objeto de satisfação que ela deve proporcionar aos pais.  Boas notas, bons curriculuns são destinados a dar prazer.  Ela pode responder docilmente a essa demanda durante um certo tempo, mas, cedo ou tarde, sozinha diante da folha branca ou da tarefa a desempenhar, ela será confrontada com seu próprio desejo (Cordié, 1996, pp. 23-24).

Antes de nascer, a criança já é colocada na posição de objeto para satisfazer o desejo dos pais, quando nasce e posteriormente entra na escola,  procura atender de vários modos a essa demanda, as expectativas que lhe são nomeadas no contexto familiar e social.  Os pais, por sua vez, buscam encontrar nos filhos a satisfação que lhe falta sinalizada pelo objeto perdido (pequeno a) que não se consegue encontrar, devido a estrutura faltante que marca o sujeito da linguagem.

O lugar da criança na família é ambíguo: se de um lado implica renúncia e intranquilidade, por outro, sustenta a tese freudiana da expectativa de continuidade: "Sua Majestade o Bebê" deve realizar os sonhos dos pais.  Espera-se sempre que a criança concretize o ideal paterno, sabendo-se, a priori, tratar-se de um ideal fracassado, pois o sonhador não realizou, ele mesmo, seu desejo (Lima, 2007, p. 90).

Como também, querem, através dos filhos, atender as imposições que a sociedade contemporânea exige em relação ao "sucesso", ao "crescimento" na vida profissional.  Porém, chega o momento em que a criança não responde mais a demanda dos pais, mas busca lidar com o seu próprio desejo frente a esse Outro.

Esse Outro (maiúsculo) que o sujeito internaliza e faz par com ele no campo do simbólico, é o Outro representado pela cultura, pela sociedade, como afirmam Cesarotto e Leite (1993).

... o Outro não é um ser nem possui corpo ou mantém com o sujeito relações simétricas.  Muito pelo contrário: o Outro determina o sujeito, e sem reciprocidade.  Trata-se de um lugar, de um sistema, de uma referência lógica, de uma estrutura constituinte.  Pode ser exemplificado como sendo a linguagem, o inconsciente, a lei, a cultura. Estes termos não são sinônimos, tendo cada um deles sua especificidade, embora suas consistências conceituais sejam interdependentes (Cesarotto& Leite, 1993, pp. 88-89).

Ou seja, a criança se coloca numa posição em que esteja se constituindo sujeito e, por isso, não faz a demanda. Cordié (1996, p. 26) explicita que, em face ao que esse Outro exige, a criança assume posições diferentes, seja em relação ao comer ou ao aprender. 

Quando a pulsão de saber é interditada, o desejo fica abandonado.  Da mesma forma que a anoréxica não come, o sujeito em estado de anorexia escolar despenderá toda sua energia para nada saber.  Antes de voltar a essa problemática da inibição, saibamos, desde já, que a razão mais frequente dessa parada deve ser procurada do lado da demanda esmagadora do Outro, ou seja o "coma" ou o  "aprenda" (Cordié, 1996, p. 26).

A mesma autora traz o momento da resolução do Complexo de Édipo, onde a criança depara-se com a castração, separando-se da mãe a qual estava ligada por desejos libidinais e incestuosos.  É um momento doloroso, implicando um trabalho de luto que a criança terá que se haver.  Ela deixa de ser o objeto da mãe para se constituir sujeito do desejo.  Com esse impasse, a criança também pode dizer não ao saber.

Veremos até que ponto essa problemática edipiana não-resolvida envenena os primeiros passos do sujeito em sua vida escolar.  A resolução edipiana, a superação da angústia da castração, ambas são etapas obrigatórias do desenvolvimento.  A amplitude dessa crise varia de uma criança para outra, bem como o tempo de resolução, que se apresenta mais ou menos longo.  Pode-se, no entanto, afirmar que, qualquer que seja a forma como a criança enfrenta esse período, não ficará sem efeito sobre o despertar de sua inteligência lógica e sobre o interesse que dispensará às aprendizagens escolares (Cordié, 1996, p. 28).

É importante ressaltar que, muitas vezes, a escola e a família não percebem esse momento de resolução em que a criança está enfrentando a problemática do Édipo, inclusive, até porque não tem conhecimento disso e abre-se um leque de rotulações em relação ao não querer saber do aluno, ou seja, a criança torna-se um aluno-problema, tímido, inibido, indisciplinado, desatento e outros mais, propiciando ainda mais efeitos que não ajudarão a criança nesse momento de resolução.

 

Para não-concluir

Pode-se dizer que o desinteresse pelas atividades de leitura e escrita acontece porque o saber não fez a travessia pelo e no desejo, pois para a criança aprender, o saber deve ser transversalizado pelo desejo.   Em contrapartida, a busca pelo saber permite que seja feito um laço com o desejo que nos funde enquanto sujeitos da história em que nós nos inscrevemos, escrevemos e lemos.  Ou ainda, nesse momento o desejo faz uma inscrição, uma marca nas  teias do saber.  E, conhecendo isso, o professor ameniza sua angústia diante do desinteresse de seus alunos.  Ao mesmo tempo, ele, o professor, poderá se implicar nessa causa com uma postura ética na transmissão dos saberes e no cotidiano de sua prática, como pontua Ornellas:

Não temos dúvidas de que a psicanálise pode transmitir ao educador uma ética, um modo de ver e entender sua prática educativa.  É um saber que pode gerar, dependendo, naturalmente das possibilidades subjetivas de cada educador, um lugar, uma posição, uma filosofia de trabalho que aponte para o desvelar dessa desconhecida rede de relações que circula numa instituição escolar (Ornellas, 2005, pp. 52-53).

Nesta escrita, evidenciamos um grande ganho simbólico para a educação através de uma aproximação com psicanálise: esta vem elucidar para os educadores que o sujeito é do desejo, da incompletude e da falta e que ele só se constitui também sujeito a partir de um não-sabido, representado pelo inconsciente freudiano.

Quando o saber é inscrito e marcado pelo desejo, revela que o saber, a língua, é revestido de significante e é, nesse instante, que há uma aproximação com o desejo, este constructo evanescente, que se encontra no campo da ex-existência.

 

Referências Bibliográficas

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