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ISBN 978-85-60944-35-4 versión on-line

An 8 Col. LEPSI IP/FE-USP 2011

 

Como formar bons professores nos dias de hoje: efeitos do mercado de saber sobre a Educação

 

 

Elizabeth dos Reis SanadaI; Gisela WajskopII

IPsicanalista. Doutora e Mestre em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano pelo Instituto de Psicologia da USP. Docente nos cursos de Graduação em Pedagogia e Pós-Graduação em Inclusão e Psicopedagogia Escolar do I.S.E.S.P. Singularidades
IIMestre em Educação pela PUCSP e Doutora em Metodologia e Educação Comparada pela Faculdade de Educação da USP. Diretora Acadêmica do Instituto Singularidades

 

 

O objetivo deste trabalho é refletir sobre os efeitos do mercado de saber na prática docente cotidiana e apontar para a possibilidade de um trabalho que se coloque na contramão de um processo de massificação, favorecendo que professores e alunos possam se revezar na posição de sujeitos, no processo de ensino e aprendizagem.

Lipovetsky (1989), ao discutir a comunicação de massa, afirma que:

o objetivo maior é "agarrar" o público mais numeroso pela tecnologia do ritmo rápido, da sequência flash, da simplicidade: nenhuma necessidade de memória, de referências, de continuidade, tudo deve ser imediatamente compreendido, tudo deve mudar muito depressa. A ordem da animação e da sedução é prioritária (p. 230).

Esta afirmação nos coloca diante de uma importante reflexão no campo pedagógico, no qual este modelo vem se reproduzindo, sobretudo no ensino superior.

Alguns trabalhos têm discutido os efeitos da contemporaneidade, do mercado de saber e do discurso do capitalista na constituição social e familiar, estendendo-se para o espaço educacional.

No entanto, o foco na educação ainda se restringe às séries iniciais de escolarização, alcançando, no máximo, os alunos adolescentes. Muito pouco tem se discutido no âmbito do ensino superior, sobretudo quando se trata de cursos de formação de professores.

Neste âmbito Pimenta (1997) faz coro ao dizer que:

A educação não tem sido suficientemente tematizada como área de investigação pelas ciências da educação. Estas, em geral, pesquisam sobre, e não a partir da educação. Ou seja, não colocam os problemas da prática educativa no princípio de suas preocupações (p. 28).

Como uma experiência que se coloca na via oposta ao modelo mercantilista, apresentamos um trabalho que vem se desenvolvendo, ao longo de dez anos, numa instituição de ensino superior de pedagogia – Instituto Singularidades1 – como uma possibilidade de promover um ensino de qualidade, que seja capaz de formar profissionais aptos a enfrentar e a atender as demandas do mercado de trabalho, sem abrir mão do ato educativo em nome da sedução, responsabilizando-se por sua prática e concebendo seus alunos como sujeitos.

Com vistas à formação do professor cidadão, também se propõe a instituir-se como um centro de investigação sobre a formação docente, mediante a extensão universitária, a investigação e a difusão, sistematização e produção de conhecimentos referidos aos processos de ensino e aprendizagem e a e educação escolar básica em seu conjunto, em um campo de atuação específico e delimitado (WAJSKOP, 2006, p. 239).

Ao analisar o modo como vem se desenvolvendo o ensino superior no Brasil, Wajskop (2010) afirma que "os professores, em sua formação inicial, experimentam cursos teóricos e generalistas que reiteram para os licenciados a ideia geral de docência associada à missão salvadora de infância idealizada" (p.50).

A noção de infância idealizada nos remete aos textos de Lajonquière (1999), sobretudo no que se refere à crítica acerca do discurso psicopedagógico hegemônico e a uma série de procedimentos e teorias criados a partir dele para justificar o fracasso dos alunos e eximir a responsabilidade do professor da função de ensiná-los.

Trata-se de uma discussão crucial para o campo da Educação, pois muitos cursos de formação de professores não preparam seus licenciandos para trabalhar com alunos reais. Pautados em modelos teóricos e ofertando poucas oportunidades de estágio supervisionado desde o início da formação docente, não favorecem o aprendizado de seus os licenciandos acerca do que significa ensinar nos dias de hoje e do que significa lidar com as dificuldades concretas do espaço da sala de aula e as com demais articulações necessárias no âmbito educacional.

Deste modo, muitos professores levam para as salas de aula a crença no desenvolvimento natural das habilidades e competências de seus alunos, esquecendo-se que o processo de desenvolvimento e aprendizagem se dá de maneira articulada, por meio de um processo sócio-histórico, que preconiza a importância das interações e da mediação do professor junto aos alunos.

Segundo Lajonquière (1999):

A pedagogia atual explica tudo aquilo que considera um fracassoeducativo em termos de resultado de uma falta de adequação, ourelação natural, entre a intervenção do adulto e o estado psicomaturacional das crianças e dos jovens (p. 28).

Lajonquière (1999) prossegue dizendo que "o interesse em ajustar a intervenção a um suposto estado natural das capacidades dos escolares implica na renúncia ao ato Isto é, implica na demissão do adulto do papel de educador..." (p. 33).

Ao discutir os requisitos necessários à formação de professores para a educação básica e a qualidade dos cursos de graduação em Pedagogia, Wajskop (2006) destaca a importância de oferecer um currículo capaz de habilitar os licenciandos a intervir efetivamente sobre cotidiano escolar, de modo a desenvolver um olhar capaz de reconhecer as necessidades de seus futuros alunos, fugindo da ilusão outorgada pelos diagnósticos e rótulos impingidos pelo que se configurou como a "psicopatologiazação do cotidiano escolar".

Neste sentido, além de contemplar os conteúdos desenvolvidos em aula, a práticas de ensino no Instituto Singularidades têm como preocupação:

O contato com a dinâmica da sala de aula em seus mais diversos aspectos: a gestão e a relação com os alunos, com seus pares, com a comunidade e a família, assim como com o debate social mais amplo relativo à educação (WAJSKOP, 2006, p. 240).

Para ilustrar parte do trabalho do Instituto Singularidades, temos como exemplo o Programa de Inclusão que é desenvolvido com os alunos do curso de Pedagogia que apresentem necessidades educacionais especiais, seja por deficiências no processo de escolarização, ou mesmo, físicas, sensoriais ou intelectuais. Além de um currículo que tem como base a articulação da Psicanálise à Educação.

Trata-se de um projeto que acredita que "a experiência do aluno, especialmente num curso de formação, é constitutiva do papel que exercerá futuramente como docente", e que possibilita a convivência com as diferenças e com um saber não-todo.

Assim, partilhamos do princípio apresentado por Allaud, ao dizer que as:

Condições nas quais se desenvolvem as aprendizagens deixam marcas a partir das quais aprendemos a organizar e significar nossas experiências, emoções e pensamentos: a formar hábitos. Estes modelos internos "matrizes de aprendizagem" (pessoal e socialmente determinados) incluem, também um sistema de representações acerca de quem somos quando aprendemos, que lugar e que tarefa nos cabem nessa relação. Ao interpretar a realidade a partir dessas representações, põe-se em jogo determinadas concepções sobre o conhecimento, o sujeito e o poder (1998, p. 5).

Na prática, significa desenvolver um trabalho que primeiramente contempla as diferenças sociais e econômicas, que na maioria das vezes se refletem sobre o nível de aprendizagem dos alunos, no caso dos menos favorecidos, causando falhas que poderiam comprometer a formação e transmissão posterior de conhecimentos aos seus alunos.

Em decorrência dessa defasagem socioeconômica, muitos licenciandos, ao ingressarem no curso, chegam desprovidos de autoestima, esvaziados da crença de que sejam capazes de aprender e muito menos de produzir e de transmitir conhecimento, sendo necessário fazer um trabalho de reconhecimento e de "apoderamento" da própria identidade, da própria fala e de seus direitos como sujeitos.

Além disso, há os casos de dificuldades de aprendizagem oriundas de outras deficiências, como casos de alunos que sofreram maus tratos na infância e tiveram perdas visuais e déficit intelectual; sequelas de microcefalia; surdez; transtornos psíquicos, entre outros, demandando uma intervenção mais individualizada e a revisão dos encaminhamentos pedagógicos na formação desses licenciandos, por meio do que se constituiu como um Projeto de Inclusão do Instituto Singularidades.

O Programa de Inclusão envolve a constante reflexão sobre os alcances e limites da ação dos profissionais (professores do Instituto) que participam da formação desses alunos-professores; a adaptação de atividades e de avaliações aplicadas e um acompanhamento contínuo durante todo o curso, visando garantir a qualidade no processo de aprendizagem do aluno-professor em aula e nas atividades extraclasse, que abrangem atividades acadêmico-culturais e os estágios supervisionados desde o primeiro semestre.

Obviamente para que um projeto como este se concretize é necessário rever os objetivos da formação docente e o próprio compromisso da instituição de ensino superior.

Wajskop (2010) destaca a importância de os professores poderem "compreender e construir, ao longo de seu percurso estudantil, uma identidade docente associada à profissionalização e aos procedimentos de ensino associados à aprendizagem" (p. 52).

Assim, é no próprio contexto em que são formados e a partir das práticas que são desenvolvidas com eles, que os licenciandos podem colher exemplos de como intervir de forma reflexiva e crítica no cotidiano escolar, promovendo um ensino de qualidade e comprometido com a diversidade.

Outro diferencial desse trabalho é a adoção de um currículo que considere o importante papel da Psicanálise no currículo de Pedagogia, neste sentido, lembramos com Mrech (2005) três aspectos fundamentais na transmissão da Psicanálise:

a importância do conteúdo das disciplinas; a necessidade de privilegiar o inconsciente numa leitura viva, estruturado pela singularidade de cada sujeito, privilegiando o específico de cada relação; e a importância de o aluno tecer um laço social com o mundo (p. 15-6).

Uma das reflexões que o discurso psicanalítico nos permite entrever diz respeito à nova dinâmica que se estabelece na sociedade contemporânea e seus reflexos para a Educação, apontando para a necessidade, cada vez maior, de um olhar que se desvie do universal para centrar-se nas singularidades do sujeito.

Este movimento não significa que devamos perder o contato com o mundo exterior ou abrirmos mão de pensar a coletividade. Sabemos o quanto a capacidade de articular o individual e o coletivo no campo educacional é preciosa.

Levantamos a importância de considerar os aspectos processuais envolvidos na aprendizagem, e a capacidade de se distanciar dos conteúdos tecnicistas e reprodutores de práticas sociais alienantes, a fim de desenvolver um olhar crítico e reflexivo sobre a práxis. Nas palavras de Wajskop (2006) é necessário que o licenciando possa primeiramente "construir uma atitude ética a respeito de sua função social, que lhe permita enfrentar com segurança, justiça e solidariedade todas as questões atuais relativa ao direito universal de educação para todos" (p. 240).

Para isto, é preciso que leve a cabo um trabalho de reconstrução e reflexão acerca das representações, das teorias e dos preconceitos que tenha elaborado ao longo de sua vida a respeito das diferentes crianças, jovens, adultos e suas famílias, para ser capaz de exercer uma ação docente livre, compreensiva e baseada em conceitos, procedimentos e atitudes provenientes da ciência, das artes da cultura (WAJSKOP, 2006, p. 240).

O que resulta desse processo é possibilidade de abalar as certezas, desconstruir ideais, e assim analisar a sala de aula a partir daquilo que ela realmente tem a oferecer, ou seja, a multiplicidade de percursos, envolvendo aspectos sociais, econômicos, psíquicos e cognitivos.

Trata-se da necessidade de introduzir a palavra que ponha a andar o discurso antes engessado, preso a um gozo representado na queixa e na atribuição de responsabilidades a terceiros. Assim, ao trabalhar para que o licenciando construa gradativamente sua autonomia, sua bagagem teórica e prática; contribuímos para que se aproprie também de sua fala, de seus desejos, direitos e deveres, para que implique em seus atos e tenha condições também de formas futuros alunos-sujeitos.

As dificuldades no espaço da escola existem, mas diante da impossibilidade de resolvê-las em curto prazo e de modo mais abrangente, os alunos saem do curso comprometidos a se responsabilizar pelo que lhes compete neste processo.

 

Referências Bibliográficas

Lajonquière, Leandro. Infância e Ilusão (psico) pedagógica: escritos de psicanálise e educação. Petrópolis, RJ: Vozes, 1999.

LIPOVETSKY, Gilles. (1989). O império do efêmero – a moda e seu destino nas sociedades modernas.

MRECH, Leny Magalhães (org.). O impacto da psicanálise na educação. São Paulo, Avercamp Editora, 2005.

PIMENTA, Selma Garrido. (1997). Didática e formação de professores: percursos e perspectivas no Brasil e em Portugal. São Paulo: Cortez Editora.

WAJSKOP, Gisela. La cultura y La escuela en La formación docente: princípios y contenidos de una experiencia curricular en curso. In: Experiencias y reflexiones sobre La educación inicial: uma mirada lationoamericana / compilado por Ana Malajovich – 1ª ed. – Buenos Aires: Siglo XXI Editores Argentina, 2006. (Educación), pp. 238-249).

________________. Lacunas na formação de professores. In: Pátio. Ano XIV, n. 53. FEV/ABR (1996). São Paulo, SP: 2010, pp. 50-53.

 

 

1 Instituto Superior de Educação de São Paulo – Singularidades. Criado de acordo com a LEI 9394/96, Propõe uma formação profissional docente, inicial ou continuada, baseada na docência, na investigação e na intervenção educativa, por meio de cursos de graduação e pós-graduação, de programas de intervenção educativa em instituições com convênio com o Estado ou não e de programas de ação social ou de extensão universitária (WAJSKOP, 2006, pp. 240).