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On-line ISBN 978-85-60944-35-4

An 8 Col. LEPSI IP/FE-USP 2011

 

O discurso pedagógico no contexto contemporâneo: notas sobre a proposta curricular do estado de São Paulo

 

 

Flávia Zanni Siqueira

Faculdade de Educação - USP

 

 

Apresentação

No início de 2008, foi decretada a execução imediata e integral, em toda rede estadual paulista, da chamada Proposta Curricular do Estado de São Paulo (PCESP). Em muitos aspectos esse projeto foi considerado polêmico, tanto na academia quanto em algumas unidades escolares. Com o presente trabalho, pretendemos refletir sobre a maneira pela qual a Secretaria da Educação tornou público esse projeto, a partir dos textos oficiais de apresentação e de princípios gerais da PCESP, à luz da teoria do discurso de Lacan.

Segundo o site do órgão do governo1, o propósito da Secretaria de Educação de São Paulo, no que diz respeito à PCESP, era a de propor "uma ação integrada e articulada, cujo objetivo era organizar melhor o sistema educacional de São Paulo". Uma videoconferência proferida pela então Secretária da Educação, Maria Helena Guimarães de Castro, e transmitida para todas as escolas da rede pública estadual, abriu os trabalhos de planejamento de 2008 nas unidades escolares, que seguiram estritamente a pauta de discussões preparada pela Secretaria para implementação imediata da proposta. Da seguinte maneira essa ação foi justificada:

Neste ano, colocamos em prática uma nova Proposta Curricular, para atender à necessidade de organização do ensino em todo o Estado. A criação da Lei de Diretrizes e Bases (LDB), que deu autonomia às escolas para que definissem seus próprios projetos pedagógicos, foi um passo importante. Ao longo do tempo, porém, essa tática descentralizada mostrou-se ineficiente. Por esse motivo, propomos agora uma ação integrada e articulada, cujo objetivo é organizar melhor o sistema educacional de São Paulo [...] Mais do que simples orientação, o que propomos, com a elaboração da Proposta Curricular e de todo o material que a integra, é que nossa ação tenha um foco definido (site da SEE-SP, grifos nossos).

No começo do ano em questão, os então recém-nomeados professores-coordenadores participaram de um curso de capacitação promovido pela Secretaria com a intenção de que esses profissionais pudessem "ocupar com competência seu lugar de gestor pedagógico na organização escolar, apoiando a implementação da Proposta Curricular e planejando outras ações para construção de uma escola pública de qualidade" (caderno do gestor - vol. I, p. 7, grifos nossos).

Essa primeira investida da Secretaria, insistentemente tratada no material enviado aos professores-coordenadores (caderno do gestor - vol. I), procurava "subsidiar o Coordenador em suas práticas, para implementar o currículo estadual, organizar sua crítica e construir a Proposta Pedagógica que representa a identidade da sua escola em particular" (site da SEE-SP). Ela aponta para um esforço intenso do órgão do Estado para a execução integral e imediata da Proposta Curricular. A ação seguinte circunscreveu a cooptação dos professores da rede, iniciada na reunião de planejamento de 2008, cuja pauta foi idêntica a todas as escolas da rede.

Tanto a videoconferência de apresentação da proposta, transmitida nessa reunião, quanto o material impresso enviado para os professores dividiam as ações da Secretaria, nesse primeiro período, em três frentes principais. A primeira delas se referia-se a um texto base com os princípios orientadores para que as escolas da rede pudessem ser capazes de "promover as competências indispensáveis ao enfrentamento dos desafios sociais, culturais e profissionais do mundo contemporâneo" (PCESP, p.3). O texto versava, principalmente, sobre a relação entre educação escolar e inserção no mercado de trabalho, instituindo quatro grandes princípios norteadores.

A cadeia principal de ideias desse texto parte da noção, já bem disseminada nos discursos em geral, de um mundo que se apresenta de uma maneira mais tecnológica (em relação a um passado não muito distante) e que, consequentemente, exige uma certa capacidade genérica de aprender; impõe, segundo o texto, a "formação de uma 'comunidade aprendente', nova terminologia para um dos mais antigos ideais educativos. A vantagem é que hoje a tecnologia facilita a viabilização prática desse ideal" (PCESP, p. 7). Assim estabeleceu-se o primeiro princípio, "a escola que aprende".

Nessa linha de raciocínio, o aprender se liga a uma articulação entre cultura e conhecimento, levando ao segundo princípio, "o currículo como espaço de cultura". O terceiro princípio dizia respeito às competências a serem aprendidas, com ênfase na escrita e na leitura, configurando-se na ideia das "competências como eixo de aprendizagem". Por fim, o quarto princípio falava explicitamente sobre a "articulação com o mundo do trabalho".

A segunda frente de atuação da Secretaria concretiza-se num documento contendo orientações para a gestão do currículo na escola. "Esse documento não trata da gestão curricular em geral, mas tem a finalidade específica de apoiar o gestor para que seja um líder e animador da implementação desta proposta curricular" (PCESP, p. 3, grifos do autor). Nesse ponto começa a ficar evidente a vertente centralizadora da Proposta Curricular, já anunciada na justificativa das ações. A concepção de projeto pedagógico apresentada no documento endereçado aos coordenadores entende que a única finalidade desse é operacionalizar a proposta da Secretaria em cada unidade de ensino.

O ponto mais importante desse segundo documento é garantir que o projeto pedagógico, que organiza o trabalho nas condições singulares de cada escola, seja um recurso efetivo e dinâmico para assegurar aos alunos a aprendizagem dos conteúdos e a constituição das competências previstas nesta proposta curricular (PCESP, p. 4, grifos nossos).

Essa concepção de projeto pedagógico nos parece ser um conceito estratégico na implementação da política educacional do Governo do Estado. Embora a ideia de uma singularidade esteja anunciada no texto de apresentação da Proposta Curricular, há uma ressalva muito explícita a essa singularidade: a própria Proposta Curricular.

Segundo a LDB 9.394/96, a Proposta Pedagógica da escola deve ser definida com autonomia pelos estabelecimentos de ensino, de acordo com a regras dos sistemas de ensino a que estão subordinados. Esse aspecto legal, muitas vezes, é pouco compreendido. Seu significado é que a escola tem uma autonomia relativa na definição de sua Proposta Pedagógica. Assim, há limites, que são prerrogativas do sistema. No caso de sua escola, quem determina esses limites é o sistema estadual (...) A Proposta Curricular que se anuncia é um desses limites (caderno do gestor - vol. I, p. 29).

Por fim, a terceira frente diz respeito aos cadernos do professor. Esse material foi organizado por bimestre e por disciplina, configurando-se na prática como um conjunto de instruções para serem seguidas em sala, contendo a programação, o material e a metodologia de trabalho para cada aula ministrada.

A partir de 2009, o caderno do aluno foi distribuído por toda a rede, como uma quarta frente nos trabalhos de implementação da Proposta Curricular. Esse material se articula perfeitamente com o caderno do professor, sendo também dividido por disciplina e por bimestre. "Nele, o aluno registra anotações, faz exercícios e desenvolve as habilidades do Currículo com a coordenação e mediação do professor" (site da SEE-SP, grifos nossos). Importante ressaltar o papel destinado ao professor nesse projeto: coordenar e mediar o material enviado pela Secretaria.

 

O Discurso da Ciência ou a substituição do político pela gestão

Embora concisa, essa breve apresentação da Proposta Curricular aponta para um elemento recorrente no material oficial de divulgação da Secretaria da Educação: a convicção de que a melhoria da educação está estritamente ligada à melhoria dos processos de gestão escolar. Em várias passagens do texto de apresentação dessa proposta, o tema da gestão está presente direta ou indiretamente, sendo declarado inúmeras vezes como a ação mais importante no escopo da política educacional do Estado.

Articulando conhecimento e herança pedagógicos com experiências escolares de sucesso, a Secretaria pretende que esta iniciativa seja, mais do que uma nova declaracão de intenções, o início de uma contínua produção e divulgação de subsídios que incidam diretamente na organização da escola como um todo e nas aulas (PCESP, p. 3, grifos nossos).

Essa aproximação entre educação e gestão que, em muitos aspectos, abrevia a discussão sobre a primeira, parece expor sua manifestação mais incisiva na concepção de Projeto Pedagógico, como exposto anteriormente. A não explicitação da qualificação "político" no emprego da expressão "projeto pedagógico", que insistentemente se apresenta ao longo do texto da Secretaria, não nos parece ser uma preferência fortuita.

Muitos autores defendem a ideia de que na palavra "projeto" já está incluída a noção de política, uma vez que ele trata do engendramento da reflexão sobre o contexto histórico da escola na direção de uma ação intencionada acerca do que se quer mudar. Ainda que tal posição possa ser facilmente defendida, nos parece que tal vínculo tácito permite a passagem discursiva do político para a gestão, exprimindo impactos importantes no campo da educação. Para avançar nessa argumentação, consideramos essencial nos voltarmos para a concepção lacaniana de discurso como organizador do laço social; e de laço como aquilo que impulsiona o homem para a tentativa de vincular-se ao outro, de estabelecer algo em comum com o outro.

Os discursos nada mais são do que a articulação significante, o aparelho, cuja mera presença, o status existente, domina e governa tudo o que eventualmente pode surgir de palavras. São discursos sem palavras, que vêm em seguida alojar-se nele (LACAN, 1992, p. 158).

No Seminário 17, "o avesso da psicanálise", Lacan (1992) postula que o laço social é o que condiciona o sujeito. Apoiado na ideia freudiana de que o objeto da pulsão não é fixo, mas construído - o que implica dizer que ele é variável e substituível - e no seu aforismo, decorrente dessa compreensão, de que "a relação sexual não existe", Lacan entende que a palavra deve ser legitimada pela instância do Outro para que haja comunicação.

Dizer que a relação sexual não existe, significa dizer que não há a possibilidade de relação de sujeito a sujeito, e sim de sujeito a objeto. Para tratar desse ponto, Lacan recupera a noção de desejo, em Freud, salientando sua definição como aquilo que, na incompletude da satisfação pulsional, move o sujeito em direção ao objeto da pulsão (variável e substituível). Essa característica fundante do desejo - constituir-se como ligação transitória entre sujeito e objeto - conduz ao laço social, que é entendido por Lacan como compensatório à ausência de relação sexual e que por essa razão faz o sujeito ser impulsionado na direção do outro.

Quando duas pessoas falam, falam consigo mesmas e o que permite a transmissão de uma mensagem é a relação que cada uma guarda com o Outro, ou seja, trata-se da adesão com esse lugar (Outro), que atesta as possibilidades de combinatória dos significantes e que, por essa razão, constitui o registro do simbólico. Dessa forma, o discurso produz laço social na medida em que produz um efeito; para que haja discurso é preciso que duas ou mais pessoas se "engatem" nele, isto é, é preciso que todos estejam imersos numa mesma discursividade. Isso implica pensar o ato de fala determinado, sempre, por duas dimensões: o sujeito endereça sua fala a alguém (outro) ao mesmo tempo em que está em relação ao Outro; e é essa combinação dupla que instala a possibilidade de discursividade.

 

 

O laço social pode ser, então, representado pela combinação de dois matemas do discurso, ambos em relação ao Outro, conforme esquema acima. Lacan (1992) propõe que nas quatro posições fixas de um discurso (verdade, agente, outro, produção) alternam-se, por rotação, quatro termos: sujeito barrado , o significante mestre (S1), o saber (S2) e o objeto a (a), instituindo as quatro modalidades de discurso ou de formas de se estabelecer o laço social (discurso do mestre, da histérica, do universitário e do analista).

O matema do discurso, com suas posições fixas, expressa o cerne da teoria psicanalítica: a divisão dos processos mentais em conscientes e inconscientes. A experiência do inconsciente revelou a Freud que a fala é orientada por elementos não acessíveis diretamente à consciência. Assim, quando o sujeito fala, ele procura estabelecer uma mestria consciente, numa tentativa de coordenar o discurso. Essa tentativa, no entanto, é sempre falha, na medida em que é a verdade inconsciente (posição da verdade) que determina a fala do sujeito (posição do agente), de maneira que, sustentado por essa verdade, o sujeito fala dirigindo-se a um outro imaginário (posição do outro), que é tomado a partir dos lugares sociais e, portanto, necessariamente suposto. A fala dirigida a um outro produz uma mensagem e um efeito decorrente (posição da produção).

É preciso considerar, entretanto, que a linguagem limita o que se pode dizer, ou seja, as regras da linguagem criam o impossível de ser dito. Essa restrição instala a possibilidade de se dar ao dito um sentido diferente do que era esperado. Assim, o que se produz quando se fala não é apenas da ordem da comunicação, mas trata-se, também, da expressão, ou seja, na fala é possível identificar algo de singular (expressão) no que é coletivo (comunicação). É dessa constatação que se pode depreender a diferença entre enunciado e enunciação. Enquanto a análise do discurso politicamente orientado se ocupa do enunciado, a tese do inconsciente conduz à análise da enunciação: quando um sujeito diz algo, diz mais do que pretendia dizer. Há uma intencionalidade desconhecida do próprio sujeito que produz a enunciação, de maneira que podemos afirmar que entre o enunciado e a enunciação opera o inconsciente.

O que pretendemos ressaltar nessa formulação lacaniana é o fato de o laço social ser uma estrutura de três: um sujeito se liga a outro a partir de um objeto em comum ("eu digo algo a alguém"). É a partir dessa lógica ternária que gostaríamos de discutir a passagem do político para a gestão, conforme anunciamos anteriormente. Sobre a experiência política, é preciso ponderar que ela passa, necessariamente, pelo esforço coletivo de construção de um sentido público para a enunciação. Ao introduzir sua reflexão sobre a condição (política) humana, Hannah Arendt (2005) afirma que:

Sempre que a relevância do discurso entra em jogo, a questão torna-se política por definição, pois é o discurso que faz do homem um ser político. Mas, a seguirmos o conselho, que ouvimos com tanta frequência, de ajustar nossas atitudes culturais ao estado atual da realização científica, adotaríamos sem dúvida um modo de vida no qual o discurso não teria sentido. Pois atualmente as ciências são forçadas a adotar uma 'linguagem' de símbolos matemáticos que, embora originalmente destinadas a abreviar as afirmações enunciadas, contém agora afirmações que de modo algum podem ser reconvertidas em palavras (...) e tudo o que os homens fazem, sabem ou experimentam só tem sentido na medida em que pode ser discutido (ARENDT, 2005, p. 11, grifos nossos).

Nessa passagem, identificamos dois elementos necessários para a discussão proposta: a pregnância contemporânea da ciência no campo social e a relação apresentada entre política e discurso. Com relação à primeira, é importante estabelecer uma diferença fundamental entre a atividade específica do cientista e o impacto social que o chamado Discurso da Ciência produz, incidindo na dinâmica de formação dos laços sociais. Arendt evidencia esse efeito da ciência quando se refere ao "conselho que ouvimos com frequência" acerca da relação entre o "estado atual da realização científica" e "nossas atitudes culturais"; relação de submissão dessas sob aquele.

Lebrun (2004), ao tratar da transição das primeiras aspirações científicas do grego Tales para o Discurso da Ciência moderno, estabeleceu três momentos importantes: a emergência da proposta da ciência entre os gregos, sua execução na Idade Clássica - inaugurada pelos trabalhos de Galileu e completada pelos de Descartes - e a redução da atividade científica à sua finalidade técnica. O primeiro assenta-se na construção da ideia de que a linguagem pode ser apurada a tal ponto que seria possível (e desejável) suprimir dela as marcas da singularidade. Nesse momento, a proposta científica pretendia retirar o saber de um nome próprio, ou seja, tratava-se da pretensão de construir um saber impessoal, independente do sujeito. Para isso, constituiu-se a noção de homem de ciência em contraposição ao homem de fé. Entretanto, foi somente na passagem do primeiro para o segundo momento que esse ideal pôde ser concretizado, expressando o início do conflito acerca da legitimidade do saber.

O processo Galileu assinala o crepúsculo da legitimidade que a onipotência de Deus autorizava, em proveito da nova legitimidade permitida pela cientificidade; o início do fim de uma legitimidade fundada na autoridade do enunciador em benefício de uma legitimidade fundada na autoridade concedida pela coerência interna dos enunciados (LEBRUN, 2004, p. 53).

O segundo momento caracteriza-se pela matematização do mundo, ou seja, pelo discurso científico. Os trabalhos de Galileu postulavam a falsidade da experiência sensível do mundo e, dessa forma, apontavam para o embate entre o real (essencialmente, os fenômenos naturais) e uma racionalidade científica nascente, sendo que do primeiro não se podia escapar. Descartes, ao introduzir nesse enfrentamento o "Discurso do Método", institui a possibilidade de fazer deslizar a prevalência do real para a faculdade do entendimento. Para tanto, ele separou, pela primeira vez na história da ciência, a verdade do saber e, com isso, forjou a noção de que a ciência é, fundamentalmente, um método.

O procedimento que Descartes autoriza por seu cogito é o de não se apoiar a não ser em próprio entendimento, para logo esquecer esse passo originário. Assim é conquistada a certeza sobre a qual o saber pode se constituir e até ser acumulado. É por esse mesmo duplo movimento que procede o homem da ciência moderna: enunciar o que afirma para logo esquecer que houve enunciação e reter apenas os enunciados que podem ser transmitidos (LEBRUN, 2004, p. 60).

Essa separação entre saber e verdade e a fundação do método científico produz o efeito de foracluir o sujeito do discurso, isto é, para que o campo da ciência funcione não pode operar o sujeito. Pensando a partir dos fenômenos naturais, Descartes postulou que a verdade vem de Deus e que não cabe aos homens duvidar dela, mas saber como ela funciona. Para isso, a ciência precisou fazer uma cisão entre a verdade e o verdadeiro, pois, ao contrário da primeira, o verdadeiro permite operar, uma vez que designa exclusivamente a coerência interna dos enunciados. É dessa forma que o método passou a ser a premissa fundamental da ciência.

O que se observa no terceiro momento da ciência, segundo Lebrun, é um enraizamento dessa "conduta" da ciência no tecido social, produzindo marcas na linguagem. O Discurso da Ciência se caracteriza, portanto, pela expansão do trabalho do cientista, e do método científico, para o laço social. A partir de Descartes, a ideologia científica criou a condição para a emergência da técnica, ao subtrair da ciência o campo da enunciação. A atividade científica estaria, então, a serviço da produção de técnica; em outras palavras, a ciência estaria reduzida à técnica, uma vez que a criação dessa passou a visar um fim em si mesma.

A partir disso, podemos distinguir discurso do homem de ciência - o da primeira geração, aquela em que a enunciação ainda está presente, mas em que já existe o voto de fazê-la desaparecer -, discurso científico - no qual prima o apagamento da enunciação e no qual é promovida a autoridade dos enunciados apenas - e, por fim, discurso técnico - em que lidamos apenas com enunciados, sem vestígio do apagamento da enunciação que, no entanto, inaugurou a sequência desses discursos (LEBRUN, 2004, p. 65).

Em educação, essa ideologia se apresenta reclamando uma certa eficácia no âmbito da prática pedagógica, de maneira que a técnica passou a ter mais valor que a ética (preocupar-se em "como" fazer isso ou aquilo tornou-se mais importante que refletir sobre "em nome de que" se faz isso ou aquilo), o que pode ser observado pela crescente predominância do interesse estritamente metodológico no campo pedagógico. Para tanto, foi necessário reduzir o real ao que é mensurável, uma vez que a eficácia, apoiada na adesão a um conjunto de procedimentos técnicos, tende à padronização das práticas e à exclusão da singularidade presente nelas. É preciso, contudo, estabelecer uma diferença crucial entre método, que fundamenta-se na universalização, e técnica, que apoia-se na generalização. Universal trata do que todos tem, mas cada um tem de um jeito próprio; geral aborda aquilo que todos tem do mesmo jeito.

A emergência da técnica caracteriza-se, portanto, pela padronização, mensuração e eficácia dos processos, e é justamente nesse ponto que ciência e capitalismo se imbricam. O que o capitalismo faz é reduzir o desejo à necessidade, substituindo o sujeito pelo indivíduo (público-alvo). Isso se deve ao fato de que para operar, o sistema capitalista não pode considerar o sujeito em sua singularidade, pois esse modo de produção sustenta-se pela homogenização típica da linha de produção, isto é, apoia-se na exclusão do sujeito e na emergência do indivíduo. Dessa forma, a padronização exigida pela técnica vai ao encontro da redução das singularidades exigida pelo estabelecimento do público-alvo, de maneira que o Discurso do Capitalista, como postulado por Lacan (1992), trata da fusão entre os interesses do capital e o cientificismo. Ele é assim formulado:

 

 

Dessa formulação lacaniana depreende-se três consequências imediatas. A primeira é a intensificação do lugar do agente, obscurecendo o lugar da verdade inconsciente. A segunda consequência é a circularidade do discurso. Retomando o aforismo de Lacan sobre a inexistência da relação sexual, conclui-se que a relação entre o sujeito barrado e o objeto a é da ordem do impossível: o objeto jamais completa o sujeito, de maneira que essa relação nunca é satisfatória. O impossível da satisfação equivale ao desejo.

Ao inverter o sentido de uma das setas do matema, o Discurso do Capitalista promete a possibilidade de satisfação pelo oferecimento de objetos que sejam feitos "sob medida" para o indivíduo. Essa promessa entra em conflito com a condição pulsional do sujeito, uma vez que a economia do desejo pressupõe que a falta não pode ser preenchida. Para propor o preenchimento da falta, o capitalismo opera uma redução do desejo à necessidade: há uma tentativa de eliminar o desejo fazendo-o regredir à condição de necessidade, através da substituição da condição de sujeito pela de indivíduo.

A necessidade induz no indivíduo um vazio cujo complemento pode ser satisfeito por objetos oferecidos pelo sistema capitalista; o desejo, por sua vez, induz a uma falta que faz o sujeito tender a objetos pulsionais e que jamais pode ser satisfeita. Compreende-se, então, a terceira consequência da formulação desse discurso: o objeto determina o sujeito.

A máscara caiu. Sabemos que o homem, ao invés de possuir pleno domínio sobre o que faz, subordina-se ao que faz (...) Subordinamo-nos ao acúmulo externo de meios e produtos tecnológicos, acúmulo que é visto como progresso, mas que representa também um processo que nem sempre esteve acompanhado pela reflexão (...) tudo isso é nosso, é produto de nossa atividade, mas ao mesmo tempo nos escapa (SILVA, 2001, p. 243, grifos do autor).

A tendência do discurso pedagógico é se constituir nessa imbricação entre ciência e capital, organizando-se na lógica do Discurso do Capitalista. Dessa forma, a dimensão ética da educação fica em segundo plano em comparação à sua dimensão técnica. Essa inversão das posições gera uma série de situações problemáticas, pois, sendo essencialmente um conjunto de propostas de ação, o esforço pedagógico precisa ter suas práticas examinadas a partir de uma reflexão acerca de seus objetivos e não a partir de sua metodologia.

O gesto educativo é da ordem da praxis e não do experimento e, por essa razão, sua essência foge ao controle e à planificação. Entretanto, ao se sustentar no Discurso do Capitalista, o discurso pedagógico escapa à sua especificidade, fazendo deslocar a condição política da atividade educativa para uma lógica operativa, marcada pela necessidade de gestão. Assim, gostaríamos de retomar o segundo elemento importante presente no trecho de Arendt citado anteriormente: o encontro entre política e discurso.

Para Arendt (2005), a experiência política se assenta na condição plural dos homens. Ao definir seu conceito de vita activa, ela pondera que só é humana (e, portanto, distinta da animal) a vida vivida entre homens, que o fazem através dos discurso e da ação. "É com palavras e atos que nos inserimos no mundo; e esta inserção é como um segundo nascimento, no qual confirmamos e assumimos o fato original e singular do nosso aparecimento físico original" (ARENDT, 2005, p. 189, grifos nossos). Essa breve afirmação porta em si a chave de leitura para que possamos estabelecer uma distinção necessária entre política e gestão.

Para ela, a política diz respeito ao esforço de viver como um ser distinto entre iguais; como uma existência singular que compartilha com o outro a condição de semelhante. Segundo Arendt, essa condição só pode se efetivar através do discurso.

De qualquer modo, desacompanhada do discurso, a ação perderia não só seu caráter revelador como, e pelo mesmo motivo, o seu sujeito, por assim dizer (...) Sem o discurso, a ação deixaria de ser ação, pois não haveria ator; e ator, o agente do ato, só é possível se for, ao mesmo tempo, o autor das palavras (ARENDT, 2005, p. 191).

Arendt deixa claro seu julgamento acerca da inevitabilidade da condição de sujeito (autor de ações e de palavras) nos negócios humanos. Segundo ela, "de todas as atividade necessárias e presentes nas comunidade humanas, somente duas eram consideradas políticas (...): a ação (praxis) e o discurso (lexis), dos quais surge a esfera dos negócios humanos (...), que exclui estritamente tudo o que seja apenas necessário ou útil" (ARENDT, 2005, p. 34, grifos nossos).

O apagamento do sujeito, operado pelo enraizamento da técnica no tecido social, e a conversão do desejo em necessidade no âmbito dos negócios humanos, operada pelo deslocamento do sujeito para o indivíduo do público-alvo do capitalismo, retiram dos homens sua condição política e instalam nesse lugar a supremacia da gestão. Essa passagem do político para a gestão aponta para o declínio da ação, ou seja, para o recuo da possibilidade de se produzir o novo do e no encontro de dois sujeitos.

A obsessão de antecipar tecnicamente o futuro na gestão tecnocrática do social, como se a sociedade fosse uma grande corporação que se insere no futuro por via de uma planificação eficaz, manifesta o propósito de desvalorizar o presente e suas tensões como o lugar em que os homens deveriam deliberar sobre o futuro, atuando politicamente no sentido mais profundo e originário do termo, isto é, compartilhando a palavra, e fazendo da palavra política expressão da responsabilidade inerente à ação histórica (SILVA, 2001, p. 249).

Do ponto de vista psicanalítico, a subjetividade não é estática; ao contrário, ela se define pelo encontro. E o encontro remete ao limite da técnica, pois é a partir dele que se estabelece a transferência, o vínculo singular entre sujeitos, a narrativa de uma relação.

É por essa razão que, para Arendt, política e discurso são indissociáveis. Consideramos, juntamente com a autora, que ser agente do ato e autor das palavras são qualidades indispensáveis para o estabelecimento da condição política. O discurso da técnica, por sua vez, ao arraigar no tecido social a proposta de foracluir o sujeito (agente e autor) em favor de uma eficácia supostamente garantida pela padronização dos processos, distancia-se desse campo e cria uma necessidade extrínseca de gestão do comportamento dos indivíduos.

Na Proposta Curricular da Secretaria de Educação de São Paulo, essa destruição da possibilidade de ação do sujeito parece ser expressa de maneira mais contundente na concepção de projeto (não político) pedagógico. Com anunciamos anteriormente, forjar essa noção é imperativo e estratégico para a implementação da proposta estadual, uma vez que o projeto pedagógico, em princípio, representa o que há de singular no encontro de sujeitos (professores e alunos) em cada unidade escolar.

Existe uma variedade de outros programas e materiais disponíveis sobre o tema da gestão, alguns dos quais descritos em anexo, aos quais as equipes gestoras também poderão recorrer para apoiar seu trabalho. O ponto mais importante desse segundo documento e garantir que o Projeto Pedagógico, que organiza o trabalho nas condições singulares de cada escola, seja um recurso efetivo e dinâmico para assegurar aos alunos a aprendizagem dos conteúdos e a constituição das competências previstas nesta Proposta Curricular (PCESP, p. 4).

Assim, em sua proposta para melhoria da educação no Estado, a Secretaria aproxima termos antagônicos, "gestão" e "projeto pedagógico", destituindo o propósito político do último. Essa operação se concretiza pela primazia da técnica no discurso pedagógico, que faz passar por homogêneo aquilo que é, na verdade, hegemônico.

 

Referências Bibliográficas

ARENDT, H. (2005) A condição humana. Tradução de Roberto Raposo. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária.

LACAN, J .(1992). O Seminário: livro 17 - O avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.

LEBRUN, J-P. (2004). Um mundo sem limite: ensaio para uma clínica psicanalítica do social. Tradução de Sandra Regina Felgueiras. Rio de Janeiro: Companhia de Freud.

SÃO PAULO (Estado). Secretaria da Educação. Proposta Curricular do Estado de São Paulo: Ensino Fundamental. Disponível em: <www.rededosaber.sp.gov.br>. Acesso em: junho de 2010.

______. Secretaria da Educação. Caderno do Gestor. Disponível em:<www.rededosaber.sp.gov.br>. Acesso em: junho de 2010.

SILVA, F. L. (2001) O mundo vazio: sobre a ausência de política no contexto contemporâneo. In: SILVA, A.; MARRACH, S. A. (Org.) Maurício Tragtenberg: uma vida para as Ciências Humanas. São Paulo: Editora UNESP, p. 239-250.

 

 

1. <www.rededosaber.sp.gov.br>